Caso Vicente Cañas: Justiça confirma condenação de ex-delegado pelo assassinato do missionário indigenista

O espanhol Vicente Cañas foi assassinado há quase 36 anos no território do povo indígena Enawenê-Nawê, em Mato Grosso

Procuradoria Regional da República da 1ª Região

Acolhendo parecer do Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) negou recurso e manteve a condenação do ex-delegado da polícia civil do Mato Grosso Ronaldo Antônio Osmar, pelo assassinato do missionário espanhol Vicente Cañas Costa, conhecido como Kiwxí pela comunidade indígena. O crime aconteceu em abril de 1987, na Terra Indígena Enawenê-Nawê, no município de Juína, distante cerca de 730 km de Cuiabá.

O julgamento do recurso pelo TRF1 ocorreu na última semana de fevereiro, o acórdão foi publicado no dia 6 de março. De acordo com o processo, além de arregimentar os executores do crime, orientá-los sobre o modo de execução e realizar o pagamento pelo serviço, o delegado esteve à frente de algumas diligências que buscavam esclarecer a morte do missionário.

Em 2006, Ronaldo Antônio Osmar chegou a ser absolvido pelo Tribunal do Júri do Mato Grosso. O MPF recorreu da decisão e, em 2015, o TRF1 anulou o júri por considerar a decisão manifestamente contrária à prova dos autos, determinando a realização de um novo julgamento.

Atuação do MPF na condenação – Em 2018, Ronaldo Antônio foi submetido a novo Tribunal do Júri e, finalmente, condenado a mais de 14 anos de prisão em regime inicial fechado. A forma de atuação do MPF foi determinante para a condenação do agenciador. No novo julgamento, o procurador da República titular do caso conduziu a acusação com o auxílio do Grupo de Apoio ao Tribunal do Júri da Câmara Criminal (GATJ). Segundo o procurador da República Ricardo Pael Ardenghi, integrante do GATJ que atuou no caso, “a estratégia adotada em plenário, decorrente da expertise do grupo com processos de júri, foi decisiva no julgamento”.

O trâmite da ação, que levou mais de 30 anos para se chegar à condenação do agenciador, foi cercado por muitos entraves. Além do tempo decorrido, o que dificultava a coleta de provas, as principais testemunhas não queriam mais falar do assunto, que foi traumático para eles. Segundo o procurador da República, os indígenas já tinham prestado inúmeros depoimentos e queriam encerrar o caso. “Foi necessário um trabalho intenso de convencimento para tranquilizá-los, assegurando que seria a última vez”, recorda Ricardo Pael.

Outro ponto relevante foi a experiência dos procuradores com temas relacionados à Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR). Nesse caso, o MPF convocou um antropólogo para testemunhar em plenário. O depoimento dele foi fundamental para desfazer uma tese da defesa de que o missionário teria sido assassinado pelos próprios indígenas. Conhecedor da cultura Enawenê-Nawê, o antropólogo explicou aos jurados que Vicente Cañas havia sido batizado pelos indígenas, era um deles, por isso nunca seria assassinado por um “irmão”.

O único branco no céu dos Enawenê-Nawê – Vicente Cañas viveu parte de sua vida como um Enawenê-Nawê e como um deles morreu. É o único branco na história a ser batizado por eles, que dizem que é o único branco no céu dos Enawenê. O resultado da confirmação da condenação do ex-delegado Ronaldo Antônio tem mais um significado para os indígenas da etnia. É que o crânio de Kwxí permanece até hoje vinculado ao processo, como prova do crime. Para os Enawenê-Nawê, enquanto todo o corpo não é submetido ao funeral, o espírito não descansa.

Eles esperam que com a confirmação da condenação em segunda instância, o crânio seja finalmente liberado para ser levado ao território Enawene, com a concordância dos familiares espanhóis do Vicente, onde será sepultado com o restante do corpo dando descanso ao seu espírito.

Entenda o caso — De acordo com informações dos autos e de pessoas que conviviam com Cañas, ele já vivia na região de Juína há mais de dez anos quando foi assassinado, sendo que constantemente denunciava a presença de fazendeiros e madeireiros nas áreas dos povos indígenas que viviam no noroeste do Mato Grosso. Além disso, ele era integrante do grupo de trabalho da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que atuava nos estudos de demarcação do território dos Enawenê-Nawê.

Sua atuação, então, conflitava diretamente com os interesses de fazendeiros e madeireiros da região. Diante disso, eram comuns os relatos de ameaças de morte dirigidas ao missionário espanhol e a outros voluntários que o ajudavam.

Em abril de 1987, enquanto se preparava para voltar à aldeia dos Enawenê-Nawê (chamada, na época, de Salumã), Cañas foi surpreendido pelos assassinos, que o atacaram quando ele voltava do rio, onde estava tomando banho. Em seu barraco, nas margens do Rio Juruena, o missionário foi agredido, morto e deixado ali, caído no chão, sem roupas.

Seu corpo foi encontrado mumificado pela própria natureza cerca de 40 dias depois por indígenas e missionários, entre os quais o Padre Thomaz de Aquino Lisboa, que na década de 1970, junto com Vicente Cañas, tinha feito os primeiros contatos com os índios Enawenê-Nawê. A perícia constatou sinais de violência no local e um orifício na barriga da vítima aparentemente causado por arma branca (faca, punhal, etc.).

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