O SUS diante das encruzilhadas brasileiras

Nelson Rodrigues dos Santos, um dos fundadores da Reforma Sanitária, lançará novo livro. A partir de ponderações sobre a pandemia, ele sustenta que o SUS (cujo projeto nunca foi executado de fato) está mais que nunca em nosso horizonte. Leia capítulo

por Nelson Rodrigues dos Santos, em Outra Saúde

Nelson Rodrigues dos Santos, o “Nelsão”, é um dos nomes chaves na fundação do Sistema Único de Saúde, talvez seja a maior política pública da história do Brasil. Mesmo após décadas, segue firme na luta pela universalização do direito à saúde de qualidade, com todo o potencial de integração social.

Outra Saúde tem a honra de participar do lançamento e da divulgação de seu novo livro, que veio ao público no Congresso da Abrasco, no final de 2022, e tem o título SUS e Estado De Bem-Estar Social: Perspectivas Pós Pandemia. Na obra, Nelson reflete, com lucidez ímpar, sobre os significados da pandemia de covid-19 para os sistemas de saúde, em especial para o SUS.

Em suas próprias palavras, o autor descreve o livro: “Optei começar pelo tenso desenvolvimento da pandemia no Brasil e a repercussão na sociedade e no Estado; daí, considerei ângulos de situações globais e nacionais, o pré-SUS e os 34 anos do SUS para, ao final, ousar reflexões civilizacionais”.

Outra Saúde, que cobrirá o evento, traz ao leitor um capítulo da obra, especialmente cedida pela editora Hucitec, que mantém um dos maiores acervos do país na área da saúde. A publicação inaugura uma parceria: a cada duas semanas, títulos novos e históricos da editora serão apresentados e presenteados a nossos leitores.

No capítulo 7, que publicamos abaixo, Nelson sintetiza algumas de suas principais ideias sobre as vitórias e derrotas do SUS, ao longo de seus 34 anos – e também os reflexos do que veio antes dele. De maneira estratégica, o autor divide o texto em destaques sobre “reconhecimentos positivos, esforços e avanços”, “reconhecimentos negativos” e “considerações sobre os reconhecimentos negativos”.

Ao longo de todo o capítulo, Nelson exalta a resistência do Sistema Único. Destaca, em especial, a expansão do que ele chama de “ilhas”, em que o projeto original do SUS torna-se exequível e a Atenção Integral à Saúde é realizada na prática, graças ao trabalho e esforço de gestores, equipes multiprofissionais e núcleos universitários. Mas o autor também se dedica a compreender por que o projeto do sistema único não é executado a contento a nível nacional. Há uma chave importante para explicar o fenômeno: o crescimento, ao longo de toda a vida do SUS, do poder e da influência da saúde privada – sustentada, inclusive, pelo Estado.

Com 11 capítulos, o livro divide-se em dois grandes blocos analíticos, denominados A Saúde Pública no contexto histórico do desenvolvimento socioeconômico e A Saúde Pública no contexto histórico da evolução civilizatória da sociedade. O livro conta com apresentação de Gastão Wagner de Sousa Campos, um dos organizadores da Coleção Saúde em Debate da editora, e prólogo de Drauzio Varella.

A obra será lançada em evento público, no auditório da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. O evento será no dia 17/3, às 18:30, em mesa que reunirá ao redor de Nelson outros reconhecidos especialistas do setor: Ubiratan de Paula Santos, Adriano Massuda, Marília Louvison e Gonzalo Vecina Neto. Boa leitura!

E O SUS COM ISSO?

As análises e avaliações da significação do SUS nos seus 34 anos tiveram na pandemia uma melhor visão, em especial: eficiência de sua responsabilidade e experiência em ações prontas ao identificar situações de risco à saúde e subsequente proteção com prioridade às pessoas e aos grupos humanos mais expostos, e atenção a diagnósticos e tratamentos precoces oportunos. É a Atenção Integral à Saúde (AIS), a ser realizada com Equidade em acesso e qualidade de atendimento.

RECONHECIMENTOS POSITIVOS, ESFORÇOS E AVANÇOS: DESTAQUES

Sabe-se que gestores do SUS (federais, estaduais e municipais) assim como a maioria dos profissionais, dos serviços de saúde comunitários até os mais especialistas, apesar de adversidades, assinaladas nos tópicos seguintes, acumularam nesses 34 anos riquíssima experiência e competência nas práticas da AIS, iniciando pela Atenção Básica. Porém, o exercício pleno e resolutivo dessa competência, de acordo com as necessidades e os direitos da população, torna-se exequível somente em condições ainda que excepcionais: em algumas centenas de microrregiões definidas em todo o território nacional, com enorme esforço e persistência de gestores e equipes multiprofissionais, muitas vezes em parceria com núcleos universitários no campo da Saúde Coletiva. São verdadeiras “ilhas” onde as diretrizes do SUS ganham realidade, visão e admiração. Grande parte delas de modo mais constante, e as restantes mais frágeis, podendo regredir, contudo substituídas pelo surgimento de novas “ilhas” em outros lugares.

Nessas “ilhas” de realização mais plena do SUS, pode-se verificar a efetivação de Atenção Básica, uma resolução de 80% a 90% das necessidades de saúde da população coberta, acesso assegurado aos 10% ou 20% restantes nos serviços de ambulatório mais específicos e de hospital. Essa averiguação, ao contrário de ser objeto só de minoria de especialistas e técnicos, por isso inalcançável às “pessoas comuns”, em verdade refere-se ao eixo básico do modelo de atenção à saúde amplamente debatido e vitorioso no processo constituinte nos anos 1980. Fazem parte da secular sabedoria popular: “mais vale prevenir do que curar”, “curar no início da doença” e “cuidados permanentes aos doentes crônicos”. Daí, o cuidado continuado aos afetados por doenças crônicas na unidade básica de saúde ou no domicílio.

Além dessas “ilhas” que demonstraram o acerto do modelo constitucional, o SUS realizou, pressionado pela demanda social, já no decorrer dos anos 1990, pujante inclusão social em cumprimento ao princípio da Universalidade: foi abrangida para quase metade da população antes sem abertura, que evolveu para o Programa Saúde da Família (PSF) – melhor dizendo, Estratégia Saúde da Família (ESF) em 1994 e os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) em 2008. Mas isso com cumprimento ainda muito limitado quanto as diretrizes da Integralidade, Equidade e Regionalização/Hierarquização, o que mantém, na prática, as distorções do modelo “pré-SUS”, agora “modernizado”, em verdadeira promiscuidade com os planos e seguros privados de saúde, problema a ser examinado nos próximos Capítulos.

A Atenção Básica à Saúde conta hoje por volta de 400 mil Agentes Comunitários de Saúde, 51 mil equipes de Saúde da Família, 43 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS), 4 mil Núcleos de Apoio à Saúde da Família, tudo muito maltratado e insuficiente pelo desfinanciamento e omissão do governo federal.

Os avanços a favor de direitos à saúde estão consistentemente expostos e documentados nas  mostras de experiências bem-sucedidas nos congressos dos conselhos de secretarias municipais de Saúde dos estados e nacional (COSEMS e CONASEMS). A Atenção Básica com base na Saúde de Família e Comunidade vem se consolidando nos países e sociedades socialmente mais desenvolvidos: maioria de Europa, Canadá, Japão e outros, sob diversas formas de acordo com suas próprias características históricas, culturais e outras. Além da atenção básica pelos agentes comunitários e demais profissionais de saúde, essas “ilhas” do SUS emergem também na saúde mental (Centros de Atenção Psicossocial, criados em 1992), nas internações e atenção de alta complexidade/custo (exemplo: transplantes), na saúde do trabalhador (Centros de Atenção à Saúde do Trabalhador), no combate à AIDS, no acesso à hemoterapia (hemocentros), Vigilância em Saúde/apoio epidemiológico, imunizações, medicamentos de alto custo, nas centrais reguladoras para urgências/emergências/SAMU, nos protocolos de condutas técnicas e profícua relação com as melhores instituições públicas de ensino e pesquisa em saúde. Essas “ilhas” são exceções que até hoje não conseguem transformar-se em regra, em razão de simples descompromisso federal na sua fatia do financiamento e sua opção pelo “SUS pobre para os pobres”, e nítido e intenso estímulo estatal ao mercado da assistência privada à saúde, e à opção, na prática, por outro modelo de atenção à saúde. A gestão descentralizada no SUS em regra acumulou competências e vontade política para multiplicar as referidas “ilhas”, tornando as exceções em regra, desde que a esfera federal assumisse sua contrapartida financeira e gestão nacional efetivamente compartilhada com os estados e municípios, voltada para um SUS universal, com efetivo cumprimento das diretrizes constitucionais. A persistência dessas “ilhas de exceções” em apontar para o futuro é a primeira e grande verificação positiva nesses 34 anos, que existem teimosamente no conjunto de dez confirmações negativas que serão explanadas mais à frente.

Vale registrar o apoio jurídico-legal ao nascimento e efetivação do SUS, pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário, fundado em 1988 na Faculdade de Saúde Pública da USP, sob coordenação de Sueli Gandolfi Dallari, e a seguir pelo Instituto de Direito Sanitário Aplicado, fundado em 1994 por Guido Ivan de Carvalho e Lenir Santos. Guido e Lenir participaram ativamente nos debates e elaboração das Leis 8.080 e 8.142, de 1990 e, em 1992, lançaram o livro básico “Sistema Único de Saúde: Comentários à Lei Orgânica da Saúde”, hoje na 5ª edição renovada e comentada por Lenir Santos. Lenir, pelo IDISA, vem permanentemente assessorando o CONASS, CONASEMS, vários COSEMS, com atuação decisiva na formulação e aprovação do Decreto 7.508/2011 e da Lei 12.466/2011. Voltando ao CEPEDISA referido no 2º Capítulo, seu atual diretor Fernando Aith, convidado especial para expor a pesquisa “A Linha de Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid-19 no Brasil”, na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia do Senado, conferiu e consolidou a conduta científica e jurídica de excelência e por isso irreversiva, no apoio àquela importante CPI.

Outra comprovação positiva no SUS ocorre, em 1999, com a criação por lei da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), com competência de regulação de atividades extrativas, produtivas e de consumo para prevenir danos à saúde da população, cujo primeiro diretor-presidente foi Gonzalo Vecina Neto, experiente, coerente e respeitado gestor público no SUS, que imprimiu à Agência atuação em total acordo com as diretrizes constitucionais. Ainda em relação ao SUS, chama atenção, diante de seu baixíssimo financiamento, a impressionante produção de resultado, incumbido pelos gestores descentralizados e trabalhadores de saúde, hoje em torno da média anual de três bilhões de procedimentos na Atenção Básica, dois bilhões na média e alta complexidade e um bilhão nos serviços de diagnósticos e tratamentos.

Ainda outra grande confirmação positiva deu-se em 2020 quando as secretarias estaduais e municipais de Saúde por seus conselhos nacionais e estaduais (CONASS, CONASEMS e COSEMS) – em regra e “a toque de caixa” – avocaram desde o início suas responsabilidades com a população diante da Covid-19: ouviram seus Conselhos de Saúde, intercambiaram rapidamente suas experiências quando era possível e assessoraram seus governos. Esse vem sendo o grande apoio contra a pandemia, o suporte “SUS”, que, ao apropriar-se do atendimento às demandas, tornou-se mais visível desde a atenção íntegra nas comunidades pelas equipes de Saúde de Família, aos ambulatórios de especialidades, de pronto atendimento e de hospital com e sem UTI. Seguramente, tanto a prevenção como a assistência aos doentes estariam em proporções muito mais resolutivas e humanas se a esfera federal estivesse atuando com o mesmo empenho nas trincheiras do SUS.

Retomando os 34 anos do SUS cabe realçar que, por força de direitos humanos constitucionais, os gestores estaduais e municipais e os profissionais do SUS, ao atribuir-se os atendimentos de especialidades, notaram que a maioria poderia ter sido evitada, pois tiveram diagnósticos e tratamentos tardios e aplicação de baixos recursos, grande parte depois de longas esperas, com manifestações de agravamentos de doenças crônicas, sofrimentos e óbitos sujeitos de ser evitados.

Além de tudo isso ser desumano para a população, assinala um custo de assistência identicamente evitável. Este é o SUS que vem enfrentando a pandemia de Covid-19, ao dispor e efetivar toda a experiência acumulada, buscando mais acertar do que errar e, precisamente, retardar e/ou impedir que a população ficasse totalmente refém do “efeito de rebanho natural” no decurso da pandemia.

Enfatizo a riquíssima acumulação de avaliações e edições sobre os 30 anos do SUS feitas a partir de 2018, com destaque à retumbante inclusão social e prestígio do SUS com a efetivação da Universalidade, já antes de finalizar sua primeira década, em 1998. Apesar do hercúleo esforço no rumo do modelo de saúde constitucional, a precária e/ou excepcional e/ou marginal realização da Equidade, Regionalização e Integralidade, com Atenção Básica permanentemente universal de alta resolução, que está mantida em degrau impotente para a efetivação da mudança do modelo.

Ainda assim, a notável inclusão social e o incansável esforço a favor da instituição de conjunto das diretrizes do SUS vêm granjeando inestimável apoio na mídia nacional, na sociedade (diretamente e através dos conselhos de saúde e de entidades da Reforma Sanitária), da universidade pública (áreas da saúde, humanas, de biologia e economia), Organização Pan-Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde, o que ficou mais evidente no esforço para o enfrentamento da Covid-19, ainda que acompanhado da redução de 20% a 30% no atendimento das demais necessidades e direitos de saúde da população.

A propósito, transcrevo a seguir a Domingueira do IDISA, nº 6 de 12 de fevereiro de 2022:

Não Fosse o SUS…

Lenir Santos

A pandemia da Covid-19, nesses dois anos e meio de luto, morte, doença, nos leva a considerar que a desigualdade social brasileira só não é pior pelo fato de haver um sistema de saúde pública que fez a diferença no enfrentamento do combate à doença.

Não fosse o SUS, a expectativa de vida da população, que nos anos 80 era de 65 anos segundo o IBGE, não teria se elevado para 76,8 (2021).

Não fosse o SUS, com suas instalações e serviços de saúde construídos há três décadas, a duras penas, diga-se, a população estaria desassistida e os planos de saúde populares grassariam dando a falsa impressão de cuidados com a saúde das pessoas. O SUS vem se consagrando com uma das mais importantes políticas públicas de combate à desigualdade e respeito aos diretos humanos.

Não fosse o SUS, diversas doenças não poderiam ser tratadas, como o câncer, HIV-AIDS, a doença mental, hemofilia, a não imunização da população ainda seria causa de morte de inúmeras crianças pelas doenças do Sarampo, Varíola, Poliomielite e muitas outras cobertas há décadas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), instituído formalmente em 1975 pela Lei nº 6.529 ainda que implantado anos antes.

Não fosse o SUS o tabaco ainda estaria matando milhares de pessoas que continuariam a fumar. A política de combate ao tabaco do SUS é a principal causa do baixo crescimento de fumantes, de pessoas que abandonaram o vício e assim protegem a sua saúde dos riscos das doenças causadas pelo fumo. Foram anos de políticas sendo implementadas de modo gradual, com proibição de propagandas, de fumo em locais fechados; figuras de pessoas acometidas de câncer nos maços de cigarros, dentre outras.

Não fosse o SUS ainda teríamos manicômios e sua desumanidade no tratamento de pessoas com transtorno mental, tidas, muitas vezes, como prisioneiras sem perspectivas de vida social, sem acesso a medicamentos essenciais à sua qualidade de vida. Hoje os Centros de Atenção Psicossocial elevam a condição dessas pessoas com tratamentos dignos e científicos.

Não fosse o SUS os hemofílicos continuariam a morrer, tanto por falta de medicamentos como pela má qualidade do sangue, uma vez que é da responsabilidade da Saúde Pública o controle da qualidade do sangue destinado às transfusões e como matéria-prima para hemoderivados. Lembramos do Betinho e do Henfil, vítimas do contágio do sangue por serem hemofílicos e terem se submetido a transfusão.

Não fosse o SUS somente as pessoas com poder aquisitivo teriam acesso aos transplantes, hoje coordenados pelo SUS que maneja a lista única de órgão, tecidos e partes do corpo humano para transplante.

Não fosse o SUS a Atenção Primária da Saúde não estaria a promover, prevenir e proteger a saúde das pessoas em seus territórios, com as suas políticas de controle de doenças crônicas, de educação sanitária, de criação de uma consciência sanitária.

Não fosse o SUS não haveria um sistema tão efetivo e qualificado de vigilância sanitária como a ANVISA, reconhecido nacional e internacionalmente.

Por fim, poderia aqui desfiar um rosário de motivos que eleva o SUS ao patamar de uma das mais importantes políticas sociais, responsável pelo respeito à vida e à saúde das pessoas e que nessa pandemia, que surpreendeu o mundo pelo contágio e letalidade da Covid-19, a população pode ver o funcionamento do SUS. A população brasileira, majoritariamente pobre, sem condição alguma de custear despesas com a sua saúde, estaria ao desalento completo vivendo o medo, a dor, o luto, a doença, a morte.

Mas o SUS salvou vidas pelo atendimento das pessoas em seus serviços de saúde nos 5.570 municípios e pela capacidade demonstrada na vacinação das pessoas.

Dizer todos os méritos do SUS cansaria a todos, mas apontar a tragédia que seria a sua ausência nos chocaria brutalmente, nos levando a considerar, simbolicamente, a existência de uma nova Guernica, tão tristemente retratada por Picasso”.

Seguem agora dez averiguações negativas que se estimularam e se consolidam nos 34 anos do SUS no rumo de outro modelo, mas que, afora sérios “arranhões”, pouco vêm, inacreditavelmente, abalando irremediavelmente a imagem de SUS e anima a esperança para a população: seja quanto à inclusão social ou à consciência de direitos humanos em processo de conquista.

CONHECIMENTOS NEGATIVOS: DESTAQUES

1) Já nos seus primeiros anos, com o governo federal descumprindo a indicação constitucional de 30% do orçamento da Seguridade Social, e em 1993, retirando o orçamento da Previdência da base de cálculo da parcela federal para o SUS, essa parcela caiu mais da metade do que foi delineado e aprovado na Constituição e perdura. As repercussões da retirada de parcela da Previdência pelo ministro da Fazenda, sem opção para o Ministério da Saúde, gerou o pedido irretratável de demissão do ministro da Saúde. Desde então a parcela federal estabeleceu-se em torno de 1,7% do PIB, com crescimento somente da parcela estadual e principalmente da municipal, perfazendo o total em cerca de 3,8% para o SUS. Com a aprovação no Legislativo da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) para o SUS, a fixação nos 1,7% relativa ao governo federal foi realizada pelo Ministério da Fazenda por meio da redução de outras fontes do financiamento federal. Essa artimanha gerou o segundo pedido sem retratação de demissão de outro ministro da Saúde. Isso mantém nosso per capita público para saúde entre 1/4 e 1/5 do que é posto em prática na maioria dos países membros da OCDE e numerosos outros observados pela OMS, todos abarcando forma de Estado de bem-estar social com os melhores sistemas públicos de saúde, para os quais são destinados 7% a 8% do PIB. O Título VIII Da Ordem Social da Constituição define fortemente o Estado de bem-estar social

2) Nos anos 1990 crescia na militância pelo SUS e no Poder Legislativo, decidido apoio à PEC 169 (30% do orçamento de Seguridade Social e 10% de receitas de impostos federais, estaduais e municipais para o SUS), mas no fim da década o governo federal em iniciativa solitária e impositiva propôs e pressionou pela EC-29 (mínimos de 12% para estados e de 15% para municípios), ficando a esfera federal somente com a variedade nominal do PIB. Foi aprovada sob a pressão de “ou isso ou continua como está”, ao que a “militância SUS”, incluindo o CNS, CONASS e CONASEMS, foi compelida. Desde então, a esfera federal deve à população, estados e municípios, a responsabilidade de também participar no financiamento do SUS com porcentagem sobre a receita federal. Esse subfinanciamento vai piorando, agudiza-se com a EC-95 de 2016 e torna-se catastrófico com a proposta federal da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, que condiciona parte dos recursos federais para o SUS a emendas parlamentares individuais, de bancada e do relator (orçamento secreto), que dão prioridade a redutos eleitorais, em detrimento de prioridades de investimento e custeio definidas pelas diretrizes constitucionais. Não por outro motivo, e sob pressão de demandas populacionais, a porcentagem média dos orçamentos municipais para o SUS “não falir”, ao longo dos anos quase dobrou, em torno de 30% sobre suas receitas;

Uma explanação didática do que é “orçamento secreto” encontra-se em “Segredos do orçamento”, reportagem de de Breno Pires. Destaco: “[…] O parlamentar vota como quer o governo ou seguindo a posição dos presidentes da Câmara e do Senado, em troca de acesso a verbas milionárias do orçamento, muitas vezes maiores do que aquelas a que tem direito. […]”.

Em três anos o governo atual contestou e/ou entregou ao Congresso Nacional o gasto público total de R$ 65 bilhões com emendas para o Parlamento incluindo o “orçamento secreto”, mas de modo legal, inacessível a qualquer controle público de orçamento e não sujeito a apenações, e esse enorme recurso público é dez vezes maior que os R$ 6,28 bilhões relacionados à Petrobrás, recuperados pela operação Lava Jato. Para uma informação mais sobre outros aspectos do “orçamento secreto”, ver Leandro Demori. Análises sintéticas de grande força com Conrado Hübner foram apresentadas por Bob Fernandes em série de 10 episódios, de 9 de agosto a 18 de agosto de 2022, em “Corrupção Bolsonarista”, cujo episódio 5º é “O Orçamento Secreto esconde o ladrão, aluga o Centrão e seduz oposição”.

3) Desde os anos 1990 a esfera federal não assume a prioridade da execução da diretriz constitucional da Regionalização/Hierarquização dos serviços de saúde, eixo estratégico decisivo na construção da Integralidade, Equidade e Universalidade (modelo SUS), com produção de ações e serviços em escala congruente de alta qualidade e controle de ações desnecessárias e outros desperdícios, em cada região de saúde. A Constituição de 1988 prescreve a autonomia das esferas federal, estadual e municipal para exercício de suas responsabilidades constitucionais, autonomias essas que, também constitucionalmente, se aplicam à articulação das esferas, na consecução de diretrizes constitucionais do SUS, como a Regionalização/Hierarquização, sem o que o SUS poderia significar o simples somatório de 5.570 sistemas municipais e 27 sistemas estaduais de saúde. Não por outro motivo as ações e serviços do SUS com acesso universal e igualitário são caracterizados já no caput do artigo 198 da Constituição, pois “integram uma rede regionalizada e hierarquizada”, daí presidindo as diretrizes da descentralização, integralidade e participação da comunidade. Nos anos 1990, com o pujante engajamento das secretarias municipais e estaduais de Saúde, a articulação e realização da regionalização, ao contrário de diminuir e ofuscar suas decisivas funções, mais ainda ressaltaria esses imprescindíveis exercícios. Já em 1995 oportuna oficina de trabalho da OPAS e do CONASS, com participação do Ministério da Saúde e CONASEMS, concluiu pela insubstituível e inadiável efetuação da Regionalização, e necessárias articulações entre as três esferas visando opções de gerência regional pactuada na construção do modelo SUS em cada realidade regional. Alegando falta de recursos financeiros, o Ministério da Saúde não deu sequência a esse debate em seu espaço na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), maior instância do exercício próprio da parceria entre as esferas. A própria CIT foi reconhecida legalmente somente com a Lei 12.466/2011 e a estratégia da Regionalização, pelo Decreto 7.508/2011 e pela Lei Complementar 141/2012, ambos até hoje quase nada efetivados apesar de esforços do CONASEMS, CONASS, IDISA, e de experientes mas minoritários dirigentes e técnicos do Ministério da Saúde.

4) A partir de 2003, a militância SUS e da Reforma Sanitária lutou pela parcela federal de 10% da receita corrente bruta, que elevaria a porcentagem do PIB para o SUS em 0,7% (de 3,8 para 4,5%), com crescente apoio da sociedade e do Congresso Nacional. Foram os Projetos de Lei 01/2003, 121/2007, 141/2012 na Câmara dos Deputados e o PL de Iniciativa Popular 321/2013, sendo esta a última tentativa, com mais de dois milhões de assinaturas de eleitores e grande mobilização na sociedade, coordenada pelo CNS, CNBB e mais de 200 entidades. As quatro tentativas, na fase final da de trâmite, sob pressão do Executivo federal, foram retiradas de pauta ou substituídas. Em 2013, a PEC 358, prescrita pelo Executivo, rebaixou o financiamento federal inicial do SUS para 13,2% da Receita Corrente Líquida, e em 2015 foi sancionada a Lei 3.097 que tornou admissiva a entrada do capital estrangeiro no mercado de saúde no país. De outro lado, a Reforma Administrativa realizada no Estado nos anos 1990, limitou-se às desestatizações de entes públicos, não se estendendo à desburocratização e ao controle do clientelismo na prestação de serviços públicos, assim como à imprescindível elevação de efetividade na oferta e utilização desses serviços, no caso do SUS, sob as diretrizes constitucionais da Universalidade, Equidade, Integralidade e Regionalização/Hierarquização. Sem a direção dessa estratégia maior, o chavão isolado da eficiência permanece refém de fazer mais gastando menos, próprio do mercado.

5) Nos países europeus, em regra no Canadá, Japão e outros, os serviços privados de complemento que optam por integrar o sistema público, são real e efetivamente de complemento, pois minoritários perante os serviços públicos, e funcionam como se fossem públicos. De outro lado, a esfera federal, também nos 34 anos do SUS, passou a subsidiar intensamente as operadoras de planos privados com renúncia fiscal de valor maior que o lucro líquido por elas declarado. Assim, o valor médio do gasto per capita dos 25% da população consumidora de planos privados é 4 a 6 vezes maior que o dos 75% da população somente usuária do SUS. O gasto total da Saúde Suplementar para 25% da população ultrapassa o gasto total com o SUS para os outros 75%.

Em razão da reconhecida predominância dos valores do pluralismo e convivência em nossa sociedade, e da garantia constitucional desse convívio, não há como se opor às práticas privadas e do Estado, desde que:

a) na captação de clientela sigam os preceitos éticos vigentes quanto aos direitos humanos, do consumidor e de diretrizes científicas;

b) na opção da venda de serviços ao SUS prestem serviços como se públicos fossem, seguindo condutas sob a lógica das diretrizes constitucionais da Universalidade, Equidade, Integralidade, Regionalização/Hierarquização, Controle Social e demais, isto é, o modelo de atenção SUS.

Nesses termos, são possíveis em princípio: entes privados de saúde contratados e sob convênio de governos, Organização Social (OS), Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), parcerias público-privadas (PPP), planos de saúde por operadoras privadas e outras modalidades. Mas, nos 34 anos do SUS, ocorreu a substituição do investimento federal não realizado e respectivo custeio público, pela compra de serviços privados centrados na média complexidade de assistência, hoje com 65% das internações e mais de 90% dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos feitos por serviços privados comprados para atender os mais de 150 milhões da população não compradora de planos privados (classe média-baixa, trabalhadores e autônomos mais pobres urbanos e rurais, desempregados e miseráveis). Acompanhando o estancamento e o baixo desempenho da Atenção Básica para atingir de 80% a 90% da população com ótimos resultados, a relação herdada do Estado – setor privado de complemento não é compatível às diretrizes geradoras de serviços mais complexos para absorver plenamente, com efetividade, 10% a 20% da demanda referida pela Atenção Básica, assim como aplicar sua contribuição na qualificação e efetivação de diretrizes de condutas, e de referência-contrarreferência.

Permanece o intenso predomínio de serviços privados contratados, a maioria sub-remunerados por produção, com tabela defasada ao “modelo SUS”, uma vez que é necessário a predominante função de porta de entrada para que não haja atendimento tardio em ambulatórios de especialidades, internações e urgências. O SUS também atende mais de 50 milhões de compradores de planos privados de saúde, fornecendo medicamentos, imunizações, vigilância sanitária e epidemiológica, assistência de alta complexidade, urgência/emergência, próteses e outros. Esse drástico desinvestimento na infraestrutura própria do SUS contrasta com os vultosos empréstimos subsidiados pelo BNDES entre 2008 e 2012 aos hospitais privados de grande porte, mais requintados, sob convênio com o SUS e acreditados por grandes operadoras privadas de planos e seguros de saúde, para ampliações que quase dobraram sua capacidade instalada, como também para a construção de hospitais próprios dessas operadoras. É inegável nesses 34 anos pós-constitucionais a evidência da constância de consciente estratégia federal anticonstitucional, mas hegemônica, para se persistir subfinanciamento do SUS e financiamento direto e indireto do setor privado na saúde.

6) Os dirigentes do SUS obrigam-se a gerir 65% dos “seus” recursos humanos de saúde, alocados por empresas fornecedoras de pessoal, por um custo compatível com os recursos públicos disponíveis, quando comparado ao custo da seleção pública e planos de carreiras. A decorrente precariedade das relações de trabalho e alta rotação de empregados atenta contra a decisiva função do pessoal de saúde na efetivação dos direitos constitucionais à saúde. Ainda assim predomina, até agora, atitude solidária aos direitos da população, demonstrada no atendimento à Covid-19. Mas está também evidente a acumulação, por 34 anos, de desvios e distorções contra o atendimento equitativo e íntegro à saúde que requerem correções impostergáveis. Gastão Wagner, lúcida e competentemente, tem alertado contra o crescimento, nesses 34 anos: a) das vantagens classistas na utilização dos serviços e produtos do SUS, iniciando pelos cidadãos consumidores de planos privados; b) das vantagens corporativas para os servidores públicos que consomem planos privados de saúde parcialmente remunerados por recursos públicos; c) da permanência em muitos profissionais do SUS, incluindo concursados estatutários, da incompreensão ou resistência de realizar para todos os usuários, a prática do direito de cidadania, acima dos seus interesses (e poderes) corporativos; d) da impunidade daqueles dirigentes em todos os níveis do SUS, que no seu âmbito distorcem ou desviam as finalidades públicas da saúde para interesses de mercado e/ou corporativos e/ou fraudulentos; e) da desconsideração pelo governo federal e de parte de dirigentes do SUS das opções mais apropriadas, avançadas e eficazes que ocorrem na administração pública de pessoal em vários países com sistemas públicos universais de saúde melhor sucedidos. De qualquer modo, trata-se de por volta de dois milhões de trabalhadores “não reconhecidos” em atividades indispensáveis, segundo pesquisa do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz: auxiliares e técnicos de enfermagem, de radiologia, de laboratórios clínicos, maqueiros, motoristas de ambulância, pessoal de limpeza, manutenção e cozinha de hospital, agentes comunitários —, mal remunerados, com vínculos precários e má infraestrutura de trabalho — e outros aspectos negativos em suas atividades.

7) Os mais de 50 milhões de compradores de planos e seguros privados de saúde, dos mais baratos aos mais caros, são atendidos em consultórios, clínicas de diagnósticos e terapias, hospitais privados e alguns hospitais públicos tipo fundação, compondo o segmento do mercado de Saúde Suplementar. Para tanto as empresas de planos e seguros privados e seus clientes gozam de renúncia fiscal no IRPJ/IRPF, cujo valor total ultrapassa o valor total do lucro líquido legalmente declarado pelo conjunto dessas mesmas empresas. Assim, o Estado banca a renda desse ramo de empresários, que é um dos setores do mercado que aumentaram sensilvelmente o faturamento na crise financeira desde 2015, e que se elevou muito mais na vigência da pandemia de Covid-19, ficando poupados da suspensão de reajustes de 2020, ano em que, junto da indústria farmacêutica, foi nicho de mercado que deu potência a seus ganhos no resultado de lucros bancários. Segundo a revista Forbes de fevereiro de 2021, os bilionários das empresas privadas de saúde destacaram-se no crescimento de suas fortunas em 2020: a Rede D’Or passou de US$ 2 bilhões para 13 bilhões e o grupo Dasa de diagnósticos clínicos teve suas ações valorizadas em 62,5%. Esse ramo de empresários do mercado responde por mais da metade dos gastos de saúde no país, para atender 25% da população. Integram esses 25% a elite, as classes média-alta e média-média, incluindo os trabalhadores públicos da administração direta e indireta nos três poderes, que são atendidos total ou parcialmente com pagamento institucional de seu plano privado de saúde. Compõe esses 25% todo o primeiro escalão dos dirigentes e corporações do governo, a começar pelo federal; no Executivo, incluindo as empresas estatais, no Legislativo e no Judiciário e Ministério Público Federal, isto é, toda a cúpula dirigente do Estado. Só como ilustração, o Tribunal de Justiça de São Paulo acaba de elevar para mais de R$ 3.500,00 o teto mensal de ressarcimento de gastos com a saúde de cada desembargador, com base em resolução do Conselho Nacional de Justiça de 2019. Por volta de metade desses 25% da população estão os trabalhadores do setor privado e público, filiados a todas as centrais e federações sindicais, com base nas categorias mais tradicionais e organizadas, que fazem parte a classe média-média e parte menor da classe média baixa.

Nos 34 anos do SUS, mesmo mantendo representações nos Conselhos de Saúde do SUS, vêm optando pela “oferta do arranjo Saúde Suplementar Governo Federal”, ao alinhar-se às vantagens negociadas anualmente junto da Justiça do Trabalho no dissídio salarial, entre elas as dos contratos coletivos de planos privados de saúde, aí concentrando seu grande poder de pressão sindical e social, sem mais compromisso para gestores do SUS e os poderes executivo e legislativo. Lembramos que o custo médio do per capita anual desses 25% de clientes dos planos privados, vem sendo 4 a 5 vezes maior que o dos 75% atendidos só pelo SUS. Sob esse claro predomínio de interesses de empresários na saúde, é promulgada, em 2015, a Lei 13.097 que ampara o capital estrangeiro explorando a saúde no país. Vale ainda considerar que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada em 2000 para regular a oferta e o consumo de planos e seguros privados de saúde, opera essa regulação sem considerar as contradições e os conflitos em relação ao desfinanciamento do SUS, a dupla cobertura dos seus consumidores quando usuários do SUS e o cumprimento de diretrizes constitucionais.

8) Nos mais de 30 anos do SUS, com o drástico subfinanciamento federal de investimento em infraestrutura e nos seus recursos humanos, não é possível a expansão de serviços básicos resolutivos e das “ilhas” já referidas de avanços concretos. A impressionante produção de atendimentos apresentada no início do tópico anterior, revela, no seu perfil, a baixa cobertura efetiva por Atenção Básica e sua baixa resolução (afora exceções já indicadas), que mantêm nos serviços de média e elevada complexidade características de porta de entrada da população no SUS, com porcentagem alta e inaceitável de diagnósticos, tratamentos tardios e de óbitos evitáveis, além de sofrida e desumana repressão de demanda e postergação da mudança do modelo de saúde, já referidas neste tópico. Considerando que é na média e alta complexidade que se dá a compra de serviços no setor privado, permanece espaço para interesses do mercado fornecedor de medicamentos, equipamentos e de serviços médicos, com prioridade aos de maior rendimento.

Formal e explicitamente está proposto o “sistema” público-privado sob hegemonia do mercado na saúde, com o vistoso rótulo de Cobertura Universal de Saúde, cunhado no BIRD (Banco Mundial), e expressado em 2013 e 2016 por dois alentados projetos de política nacional de saúde, o primeiro com explícito predomínio de empresas e prestadores privados, e o segundo acrescido pela área industrial de saúde. Ambos com propósitos, metas, meios e financiamento, expostos aos ministérios “de Estado” (Fazenda; Planejamento, Orçamento e Gestão e Casa Civil) e diretamente à própria Presidência da República. De forma mais simples, há os projetos de acreditação universal pelos governos, dos profissionais e serviços privados com um “cartão similar ao SUS” para o cidadão, além da proposta de projeto de desestatização do componente consulta médica no âmbito da Atenção Básica.

9) Além da entrega indevida de nacos da estrutura e serviços do SUS a entes privados e mercado, apontadas no 5º e 6º reconhecimento negativos, outro grande naco foi também entregue à iniciativa privada, no caso da delegação para as Organizações Sociais de Saúde (Oss), desde os anos 1990, e Parcerias Público-Privadas (PPP), a partir de 2010. Salvo exceções positivas, apenas “modernizam” formas de venda de serviços de saúde aos governos estaduais e municipais, “atendem demandas”, mas permanecem descomprometidas na construção do modelo de atenção à saúde definido pelas diretrizes constitucionais. A limitação da Lei de Responsabilidade Fiscal para o município contratar pessoal de saúde necessário ao cumprimento das diretrizes do SUS, junto do desfinanciamento federal, leva, segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais e Estaduais (IBGE, 2019), os Estados e 83% dos municípios acima de 500 mil habitantes a contratarem as OSS, entidades privadas “sem fins lucrativos”, para assistência de ambulatório e de hospital. Exemplo de distorções no município de São Paulo: 65% do pessoal de saúde das unidades municipais são contratados pelas OSs, há grande rotação de pessoal, principalmente de médicos, e há esperas para atendimento de especialidades que duram de meses a anos; essas entidades receberam da prefeitura, em 2019, R$4,3 bilhões (38% do orçamento municipal da saúde). A maioria das OSS no país não abre suas contas para entidades de pesquisa e para a sociedade, a verificação de gastos dos recursos públicos a elas transferidos e consideram normal a “quarteirização” – serviços “terceirizados” que contratam outros entes privados que passam a ser responsáveis por serviços na unidade pública de saúde.

Resistem em cumprir metas quali-quantitativas da referência e contrarreferência, assim como da educação continuada e da avaliação, em razão de diretrizes constitucionais para mudança do modelo de atenção à saúde. No Rio de Janeiro uma rede de OSs, com notória precariedade do atendimento à saúde e desvios financeiros, é objeto de investigação pelo Tribunal de Contas do Estado e pela Assembleia Legislativa, com prazo de um a dois anos para anulação dos contratos. Em São Paulo foi aberta a CPI das Quarterizações em 2020 na Assembleia Legislativa. No plano estadual e nacional as entidades de OSs atuam por lobbies em bancadas nos parlamentos e suportes em eleições. As PPP atuam na área de edificação e administração de hospital, e têm formalmente fins lucrativos. Salvo raras exceções as OSs, PPP e assemelhadas atendem demanda de assistência nos moldes do modelo tradicional, à margem das diretrizes constitucionais, cuja iniciativa mais  importante foi Projeto de lei Complementar nº 50/2018, com trâmite na Comissão de Constituição, Justiça e Redação até 14 de fevereiro de 2019.

10) Nesse contexto de estrutura contra o SUS, foi concebido e realizado, a partir de 2013, o Programa Mais Médicos, que não toca nessa estrutura, mas em curto prazo torna visível e com grande repercussão a real possibilidade de acesso a cuidados básicos resolutivos, ainda que apenas de efeito de demonstração a uma franja da população, cuja ampliação requer profundas e amplas mudanças de estrutura. Estas, dirigidas à consecução de diretrizes constitucionais do SUS. A antinacional e antissocial EC 95/2016, que, ao limitar o financiamento federal na área social somente à correção da inflação no ano anterior, desobriga sua elevação de acordo com a elevação da receita, e da esperança de vida média na sociedade: constrange mais ainda o já catastrófico subfinanciamento federal nos 34 anos do SUS. Além do rude golpe financeiro no SUS, essa emenda é também um duro golpe na responsabilidade federal constitucional pelo desenvolvimento socioeconômico no país, a ponto de, segundo Oscar Vilhena Vieira, “demarcar a regressão do pacto social construído nos anos 80 e consagrado na Constituição”.

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RECONHECIMENTOS NEGATIVOS

1. Os dez reconhecimentos negativos expostos, entre outros, compõem vasto campo de acompanhamentos, análises, estudos, proposições, pesquisas e edições que se desenvolvem desde os anos 1970, ainda na ditadura, iniciadas com o histórico documento cuja versão preliminar feita pelo grupo do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, entre seus integrantes Hesio Cordeiro, discutido por núcleos do CEBES, e apresentado por Sergio Arouca, na Câmara dos Deputados, em 1979 (denominado “Democratização e Saúde”) e, até nossos dias, referido por entidades da Reforma Sanitária Brasileira tais como CEBES, ABRASCO, ABrES, AMPASA, APSP, Rede Unida, IDISA e outras, em profícuo intercâmbio com a universidade, Fiocruz, IPEA, IBGE e outros. Essa riquíssima e imprescindível produção foi condensada em 2018 e 2019 em números especiais das edições do CEBES, ABRASCO, CONASS, CONASEMS e outras entidades, voltadas à avaliação dos 30 anos da criação do SUS segundo a Constituição Federal de 1988. Não há como não concluir pela configuração de um “SUS real” que expressa comprovações negativas, na prática, contundentemente hegemônicas sobre o “SUS constitucional e legal” que se tornou universal, mas, quanto à Equidade, Integralidade, Regionalização e mudança do modelo de atenção permanece estacionado em baixíssimos degraus;

2. Convimos que a formulação e efetivação dessas dez averiguações negativas, sua persistência e uniformidade por mais de três décadas, não podem ser debitadas ao acaso e coincidências, e sim a um projeto de estrutura: um forte nicho de mercado de bens e serviços privados de saúde nas entranhas do Estado Nacional. Um projeto implícito do capitalismo neoliberal financeirizado assumido pelos ministérios da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão e Casa Civil da Presidência da República e seus sucedâneos, bem acima do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e municipais de Saúde e respectivos Conselhos de Saúde. Este “bem acima” dos ministérios, articulado à Comissão Mista de Orçamentos do Congresso Nacional, é o estamento de Estado definidor e operador da estrutura de gastos e renúncias fiscais (gastos indiretos) apontados nos reconhecimentos negativos quinto, sexto, sétimo, oitavo e nono. Não por acaso, Relatório do Banco Mundial de 1995 recomendou ao governo federal: evitar a descentralização com acesso universal e equidade, instituir o copagamento e mercados internos no SUS, estimular os planos privados, reduzir o investimento público na assistência médica e limitar a tecnologia e seu acesso.

3. Esses dez reconhecimentos negativos integram estruturas do Estado brasileiro, com hegemonia construída desde os anos 1990, voltada à efetivação da financeirização de orçamentos públicos. Isso vem bloqueando não só o desenvolvimento e apropriação de tecnologias para o desenvolvimento e execução de políticas públicas quanto aos direitos de cidadania, como também prioridades estratégicas, por exemplo, a execução da Regionalização/Hierarquização mostrada no terceiro reconhecimento negativo. Esse bloqueio, ao impedir a efetivação das Regiões de Saúde com sistemas regionais de atenção íntegra, universal e equitativa, como nos países com sistemas públicos de saúde mais avançados e equilibrados (maioria dos países europeus, Japão, Canadá, Austrália e outros), não só priva nossa sociedade de seu avançado modelo constitucional, como também, sob a grande fragmentação municipal e microrregional, mais expõe os fragmentos aos terçamentos (as “terceirizações”) e desestatizações com finalidades mercadistas para a uma suposta expansão de cobertura.

4. Vale frisar os consistentes e amplos esforços de recuperação de diretrizes constitucionais pelo financiamento do SUS: nos anos 1990 com a PEC 169 e nos anos 2000 com 10% da receita corrente bruta, com acréscimo em torno de 0,7% do PIB (quarta comprovação negativa). Os quatro projetos de lei entre 2003 e 2012 atrelavam esse acréscimo, ainda que pequeno, à devida mudança do modelo de atenção à saúde, com base nas diretrizes legais: planejamento e orçamento ascendente, regionalismo, equidade intermunicipal na região de saúde, equidade inter-regional no estado e equidade interestadual no plano macrorregional e nacional, com funções e responsabilidades definidas aos municípios, Regiões de Saúde, Estados e União e respectivos Conselhos de Saúde. Na Lei Complementar nº 141 de 2012 constam todas essas diretrizes, com exceção dos artigos originais referentes aos 10% da receita corrente bruta e o vínculo de recursos adicionais à efetivação de artigos da lei, que foram retirados da versão original sob pressão da área econômica do governo federal;

5. É sob as dez constrangedoras comprovações negativas que emerge outra  parcialmente inacreditável: apesar dessa franca hegemonia, as instâncias estaduais e  municipais de gestão, os trabalhadores do SUS e conselhos de saúde resistem e persistem em esforços contra-hegemônicos: ganham criação e consistência, no “SUS real”, como no caso das já referidas centenas de “ilhas” que, com imenso esforço, demonstraram na prática, durante mais de 34 anos, o acerto das diretrizes constitucionais, estimulando horizontes para as ainda “não ilhas”, cujo desempenho e esforço são amplamente reconhecidos. Da mesma maneira, a dedicação e resultados no controle da Covid-19. Contudo, esses resultados no controle da pandemia acarretaram graves retrações no atendimento de outras demandas e direitos como, entre janeiro de 2020 e junho de 2021: 35% nas ações de promoção e proteção da saúde, 37% nas consultas, 16% nas internações, 27% nos exames de laboratório (39% nas biópsias para diagnóstico de câncer), e elevação de 30% de mortes mal definidas;

6. O que se assinalou na consideração anterior tem raízes no nascimento, nos anos 1970, do movimento municipal de saúde com o amplo crescimento de responsabilidades públicas de saúde das prefeituras nas periferias urbanas de cidades grandes e médias, de crescentes encontros intermunicipais (regionais e nacionais) e de troca de experiências de gestão em atenção íntegra e universal à saúde que se estenderam até meados dos anos 1980, já com os COSEMS sendo criados. Entre importantes divulgações desta decisiva fase, realço o primeiro livro do histórico militante do SUS, Flavio A. de Andrade Goulart: “Municipalização: Veredas – Caminhos do Movimento Municipalista da Saúde no Brasil” –, de junho de 1995. Também nos anos 1970, grande parte das secretarias estaduais de Saúde entravam em tensão em razão da insuficiência de centros de saúde estaduais perante o grande crescimento da demanda por saúde nas periferias urbanas. O substrato dessa tensão e mobilização de secretarias municipais e estaduais de Saúde foi o crescente conflito social nas periferias urbanas, em todo o país, decorrente da intensa pauperização da população rural e de minicidades que gerou maciça migração campo – cidade naquela década, em plena ditadura. Não por acaso o CONASS nasce em 1982, os COSEMS nos anos 1980 e o CONASEMS em 1989, refletindo forte acumulação de experiência na atenção íntegra e universal à saúde, um dos fatores determinantes na concepção e aprovação do SUS;

7. Tomando as dez comprovações negativas, avalia-se que elas e seus efeitos por mais de três décadas, muito menos que incompetências, improvisações ou meras sabotagens ao SUS, apontam em verdade para a efetivação de outra estratégia que não a constitucional do SUS. Assim, remetem inevitavelmente para: a) seus fatores geradores acima do Ministério da Saúde e do SUS, no âmbito da dinâmica de poder na sociedade e no Estado, envolvendo Executivo, Legislativo e Judiciário, e b) sua intenção de aplicar formas de desestatizações: as herdadas desde os anos 1950 (pós-guerra) e as acrescidas nos últimos 34 anos.

8. O propósito e a construção de coexistência público-privado, ao contrário daquela construída nos países com os melhores sistemas públicos de saúde já referidos, em nosso país se tornaram mais claros no decorrer de 34 anos. Naqueles países, cada um sob suas características históricas, consta construção mais assumida e permanente da dinâmica da relação público/privado, com mais transparência de interesses comuns e antagônicos, com os direitos sociais mais mobilizados e empossados pelo Estado nos limites do pacto social possível, incluindo recuos diante de regressiva “austeridade neoliberal”, mas preservando direitos, estruturas e recursos inalienáveis;

9. No país, a promiscuidade público/privado sob dependência do mercado, com desinformação e informação distorcida, baixa mobilização da maioria da sociedade e insuficiente representação social nos poderes de Estado, privilegia a desestatização antissocial, como questão dada ao cabo de 34 anos do SUS. Só para reflexão comparada, vale tomar ao acaso uma ou mais dessas dez averiguações negativas para o SUS aqui descritas, e simular sua aplicação em qualquer dos sistemas públicos de saúde mais avançados e consolidados (europeus, canadense, japonês e outros). Quais seriam, provavelmente, as consequências?

10. Voltando ao país, acresce também que, por coincidência ou não, parte dos serviços públicos carrega ainda precariedade adicional gerada por várias formas de corporativismo, parasitismo e carreirismo da administração direta e indireta, que atingem servidores de qualquer escala. Gastão Wagner indaga a nosso ver com grande lucidez e oportunidade: “como vem se desenvolvendo na sociedade, nos mais de 34 anos do SUS, a informação e consciência do pacto social alcançado pelas mobilizações dos anos 1980, da saúde como direito de cidadania acima do poder aquisitivo e das pressões de corporações?”. Com a observação: “cada estrato social com seus interesses e necessidades, incluindo o corporativismo de profissionais, servidores e demais trabalhadores da saúde”.

11. O sobressalto causado aos defensores e executores do SUS, pela EC-95/2016 e as posições e os atos particulares e obscurantistas anticonstitucionais a partir de 2018, não afeta a compreensão de realidade de um SUS oprimido e desestatizado há 34 anos, na prática e nas entrelinhas constitucionais. Nos dois próximos Capítulos pretende-se contribuir para o aclaramento de estrutura e circunstâncias sobre a hegemonia contra o SUS.

12. O próprio desempenho do SUS no campo jurídico-legal reflete também as estratégias hegemônicas espelhadas nas dez verificações negativas: expressa-se não só ao se retardar ou impedir aprovações legislativas para o cumprimento das diretrizes constitucionais, como, em relação à legislação aprovada e até em atos de ministérios, as escolhas de quais artigos, parágrafos e incisos devem ser executados ou não, passam pelos critérios consonantes com as averiguações negativas, isto é, com o modelo “SUS real”. Gilson Carvalho, referência nacional na Saúde Pública e desenvolvimento do SUS, já em 1993, em cargo de primeiro escalão no Ministério da Saúde, diante de cortes financeiros maciços na parcela federal, formulou o histórico documento “A Ousadia de Cumprir e Fazer Cumprir a Lei”, que muito mobilizou em todo o país os profissionais, gestores e conselhos de saúde. Os próprios CONASS, CONASEMS, COSEMS, e a Comissão Intergestores Tripartite, as Bipartites e Regionais só foram legalmente reconhecidos pela esfera federal com a Lei 12.466/2011, 18 anos depois de sua atuação imprescindível, legítima, mas legalmente frágil. Vale referir as análises e alertas sobre a dependência de cada política pública de setor (como a saúde), feitas pelo geólogo argentino Amílcar Herrera no campo da política científica e tecnológica. Esse cientista internacionalmente reconhecido cunhou no Instituto de Geociências da Unicamp, nos anos 1970, a expressão “política explícita” para o entendimento, sem conflito com a legislação, de decisões e atos de governo e suas consequências. E também a “política implícita” para o entendimento de decisões e atos de governo que efetivamente alteram as relações de produção, acesso, participação e distribuição em cada segmento, mas, em regra, fazem transparecer as lógicas de artigos, parágrafos e incisos a serem efetivados ou que permanecerem no papel;

13. Outra consideração neste tópico é o reconhecimento de que o mapeamento do avanço dessa hegemonia contra o SUS, já por 34 anos, ao contrário de desestimular os esforços históricos pela sua superação, vem embasar diagnósticos realistas das contradições no interior dessa hegemonia, das expectativas, frustrações acumuladas tanto na maioria dos usuários do SUS como na maioria dos consumidores de planos privados, e a consequente consciência dos direitos de amplos segmentos sociais, sindicalizados ou não. Cremos estar em jogo a formulação/reformulação de estratégias de realização das diretrizes constitucionais, com ruptura da atual relação público-privado: democratizando o público para a efetivação da universalidade com equidade e integralidade em cada região de saúde, e em razão da finalidade maior, a consequente regulação do setor privado complementar e suplementar. Vemos que as referências para esse processo deverão ser buscadas na realidade do país assim como nas globais, em prazos históricos maiores ou menores, que não raro surpreendem previsões pessoais. Vale lembrar nestes 34 anos, a permanência, no imaginário do conjunto da sociedade, de um lado positivo e esperançoso para seu direito humano à saúde, da inclusão já iniciada e do que é devido no direito dessa inclusão;

14. Sintetizando o disposto nos dez reconhecimentos negativos e nas anteriores considerações, é importante salientar a uniformidade do real predomínio nos 34 anos pós-constitucionais da política pública de saúde: a larga precedência de interesses particulares de mercado, em flagrante oposição às diretrizes constitucionais de Estado de bem-estar social na Saúde, Educação e Assistência Social. São 34 anos de efetiva hegemonia de interesses de mercado, como política de Estado, porém, raramente explícita mas, implicitamente, rudemente realizada. Vejo nessa situação maior o Estado submeter-se serenamente às circunstâncias menores de períodos do governo e respectivas coligações partidárias.

Para os fins deste capítulo, não vejo como encerrá-lo sem a prospecção da exequibilidade de uma retomada civilizatória, cujo eixo estratégico parece-me estar na efetuação da diretriz constitucional da Regionalização/Hierarquização. A região de Saúde como o conjunto de municípios limítrofes de diferentes portes, cujo conjunto conta com estrutura de saúde suficiente ou pré-suficiente para o atendimento universal, íntegro e equitativo à saúde da população regional, com fácil acesso intermunicipal. O SUS acontece constitucionalmente nos municípios e estados, mas só na Região de Saúde existe como a menor célula sistêmica do SUS, por propiciar a realização do conjunto de diretrizes constitucionais – modelo de atenção à saúde –, para refletir as características de cada região: populacionais, socioculturais, epidemiológicas, econômicas, viárias e outras. Leve-se em conta que todos os países com sistemas públicos universais de saúde em todos os continentes, iniciando pela maioria dos europeus, consolidaram-se declarando a Região de Saúde como a célula básica de organização e função.

As diretrizes constitucionais do SUS, incluindo a Regionalização/Hierarquização, tiveram suas raízes estabelecidas e avocadas desde os crescentes debates da geração do SUS nos anos 1970/1980: Simpósios Nacionais de Políticas de Saúde na Câmara dos Deputados, 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), Comissão Nacional da Reforma Sanitária (1986-1987) e Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), passando por discussões do CONASS, dos COSEMS (em cada Estado) e do CONASEMS. Da mesma maneira, predominava há 34 anos, a visão e perspectiva dos serviços do SUS, privados, de complemento e contratados, cingirem-se a situações especiais realmente de complemento, diante de perspectiva coerente e responsável para o SUS, de investimento público na capacidade instalada própria, o que foi esvaziado pela esfera federal. Com relação aos serviços privados de suplemento (planos e seguros privados), verifica-se que, há 34 anos, estavam em fase ainda incipiente quando comparado aos nossos dias. Não por acaso, o atual ministro da Saúde apresentou em 11 de agosto de 2022, o Plano “Open Health”, com a elevação das ofertas privadas de ações de saúde e queda de custos e preços a toda a população, para abrir ao mercado os dados do SUS quanto à saúde da população em situações de risco, por segmentos sociais, faixa etária, região do país, prevalência de doenças e outros aspectos, desdenhando as diretrizes da Universalidade, Equidade, Integralidade, da cobertura e resolução da Atenção Básica.

Aprovada a Constituição, com barreiras até hoje não transpostas à construção da Regionalização/Hierarquização, assinalam-se a seguir oito exemplos reais de exaustivas construções com base nas diretrizes constitucionais e Lei 8.080/1990, que na etapa final foram descartadas pela instância federal:

1. Em 1995, oportuna oficina de trabalho sobre Regionalização patrocinada e organizada por CONASS e OPAS, com participação do CONASEMS e Ministério da Saúde que, sob a positiva repercussão da inclusão social pelo SUS, debateu e deu prioridade à execução da Regionalização, com relatório final enfático pelo pronto início;

2. A NOB-1996 e as NOAS-2001/2002 albergaram crescentes disposições de execução da Regionalização, debatidos e aprovados pelo CONASS, CONASEMS, e Ministério da Saúde, cuja realização pressionava os limites de remessas financeiras federais segundo metas estaduais e municipais pactuadas na Comissão Inter- gestores Tripartite (CIT);

3. Em 2003, simultaneamente: a) efetivação pela Secretaria Executiva do Ministério da Saúde (secretário Gastão Wagner), de proposta inicial de Regionalização a ser debatida com o CONASS e CONASEMS, e realização do oportuno Projeto Integrado para a Qualificação da Gestão Descentralizada; b) entrada na Câmara dos Deputados do PL 01/2003, com contrapartida federal de 10% da receita bruta da União, significando acréscimo ao SUS de 0,7% do PIB. Sua redação final aprovada no fim de 2004, sob riquíssimo debate com representações do CONASS, CONASEMS, CNS, entidades da Reforma Sanitária e com as Comissões de Seguridade Social e Família, Constituição e Justiça e de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. Na redação final, engrandecida e aprovada (Substitutivo Guilherme Menezes), constou a vinculação estratégica desse acréscimo financeiro à execução de diretrizes de Equidade, Integralidade e Regionalização;

4. Queda de Gastão Wagner na Secretaria Executiva do Ministério da Saúde em outubro de 2004, seguida da mobilização pelas entidades da Reforma Sanitária Brasileira, e Comissão de Saúde e Seguridade Social da Câmara dos Deputados, para a realização do VIII Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, o que ocorreu em junho de 2005, com 800 inscritos;

5. Em 2006, novo ministro da saúde apoiou amplo e elevado debate sobre o “Pacto pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão”, entre o Ministério da Saúde, CONASS, CONASEMS e CNS e a favor dos 10% da Receita Corrente Bruta para o SUS;

6. Em 2007, no Senado foi apresentado e tramitou o PL 121/2007 recuperando o conteúdo do PL 01/2003 e também teve trâmite positivo;

7. Em 2011, a emissão do Decreto Federal 7.508/2011, formulado pelo IDISA, CONASEMS, CONASS e Ministério da Saúde, que dispõe sobre conceitos e ângulos básicos do processo da Regionalização, mas sem força de lei para articular a Regionalização entre as três esferas;

8. Em 2012, na Câmara dos Deputados, foi novamente apresentado o conteúdo do PL 01/2003, agora como PL 141/2012, mas foi para votação no plenário sob a condição de aprovação sem o artigo referente à elevação do financiamento federal. Resultou na Lei Complementar 141/2012, até hoje roteiro legal para a efetuação da Equidade, Integralidade e Regionalização, mas sem os recursos adicionais;

9. Em 2013, o mesmo PL 01/2003, novamente na Câmara dos Deputados, agora o PL 321/2013 com amplo apoio de mais de 100 entidades da sociedade civil, encabeçadas pelo CNS e CNBB, com mais de 2 milhões de assinaturas de eleitores.

Reafirmamos: essas nove exaustivas construções de diretrizes constitucionais e numerosas outras na mesma direção, na etapa final decisiva para início de efetivação, foram descartadas pela esfera federal, e essa rejeição, nesses 34 anos, revelou-se gerada acima do próprio Ministério da Saúde, que se mostrou “Ministério de Governo”, subalterno aos “Ministérios de Estado” – os da Casa Civil, da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão, e o da Defesa. Estes são os que articulam na bancada situacionista do Legislativo as votações e trâmites de projetos de Lei, incluindo sua retirada da pauta de votação no plenário, o que aconteceu na maioria dos exemplos acima.

Vale salientar que o inusitado e surpreendente desenvolvimento e admissão pelos municípios, desde os anos 1970, da Atenção Básica e Integral à Saúde, é fato histórico típico brasileiro que, a partir de 1990, foi tratado pela política hegemônica de Estado, como eficaz amortecimento do desgaste causado pela protelação da execução da Regionalização. De qualquer modo, desde o início da Constituição a população vêm arcando com a consequente atrofia da execução da Integralidade e Equidade, em troca da delimitação federal ao financiamento do SUS, mantendo-o tanto por volta de 3,8% do PIB, como vulnerável às desestatizações neoliberais.

Essa mesma hegemonia dos “Ministérios de Estado” com maior ou menor resistência no Ministério da Saúde, nucleou nesses 34 anos as reais relações do SUS com os “subsistemas” privados de saúde, o de complemento e de suplemento, conforme anteriormente já apontado. Sob essa lógica dominante, a almejada cobertura e resolução da Atenção Básica no SUS permanece estacionada em baixos níveis, diante da absoluta predominância de diagnósticos e tratamentos tardios evitáveis, incluindo óbitos, nos ambulatórios de especialidades e hospitais. Por isso os gestores descentralizados, sob a pena de omissão de socorro, veem-se compelidos a dar prioridade a gastos com serviços de média e alta complexidade, com recursos que deveriam estar na ampliação e aumento de capacidade de resolução da Atenção Básica, assim fechando-se o angustiante ciclo vicioso.

Também reconhecemos a clara precedência da hegemonia expressada, tanto implícita como explicitamente pela esfera federal, nos 34 anos pós-constitucionais, na relação de forças do desenvolvimento do SUS: impondo-se frequentemente como política de Estado na sua macroestrutura política e de financiamento que aqui resumimos. Assim, os enfoques e reflexões neste texto referem-se à “macroconjuntura” dos 34 anos, que vemos submeter as “subconjuturas” de cada mandato de governo, suas coligações partidárias e mandatos de ministérios (estes, na Saúde, com duração média de pouco mais de um ano).

Em realidade, até 2019, antes da pandemia de Covid-19, a “militância SUS”, desde os trabalhadores de saúde na Atenção Básica e conselhos locais de saúde até os profissionais especialistas em serviços públicos de transplantes de órgãos e tecidos, gestores municipais (CONASEMS/COSEMS), estaduais (CONASS) e federal (Ministério da Saúde), à produção acadêmica de ensino e pesquisa para o SUS, e entidades da sociedade, apesar de contra-hegemônicos, conseguiram o desenvolvimento de estratégias de resistência e avanços possíveis em todos os níveis do sistema, comprovando na prática o acerto das diretrizes constitucionais, e por isso, bandeiras inarredáveis. E mais, cientes em concentrar esforços para a continuidade de avanços possíveis na efetivação do modelo SUS, reconhecendo a faixa estreita diante do volume de serviços prestados, mas, nesses 34 anos, comprovando, na prática, a excelência da política pública constitucional. E assim, impedir ou postergar o seu desmanche e aguardar mudanças civilizatórias pela sociedade, no Estado nacional, efetivamente voltadas para as diretrizes constitucionais. Como se desenvolvem essa faixa estreita nas repercussões da pandemia?

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