Espoliação fundiária e apartheid
Diante da tragédia nas praias do Litoral Norte, especialmente na praia do Sahy, em São Sebastião, em todo o estado de São Paulo se alevanta um surto de solidariedade com os sem poder, inexistente em tempos normais. O que é humanitariamente necessário e justificado. As principais vítimas são as comunidades tradicionais, pobres e negros que moram nas áreas de maior risco, como nas encostas dos morros e favelas à beira de estradas.
Estamos conscientes, afinal, da esteira aparentemente inexorável da mudança climática e da fragilidade da proteção do meio ambiente no Brasil. Estamos cansados de saber, como Carlos Nobre nos relembrou numa memorável entrevista ao jornal Valor econômico, em 23 de fevereiro de 2023, que 10 milhões de brasileiros vivem em área de deslizamentos e enxurradas, sendo dois milhões em área de altíssimo risco. E que 40 mil áreas de risco já foram mapeadas em 825 municípios, sendo urgente a intervenção do Estado nessas áreas.
Também estamos informados dos esforços em prol de uma justiça climática, visando garantir justiça para a população vulnerável aos impactos das mudanças climáticas que geralmente é esquecida: pobres, mulheres, crianças, negros, indígenas, imigrantes, pessoas com deficiência e outras minorias marginalizadas em todo o mundo e especialmente aqui no Brasil.
Levando esses elementos em conta, persiste a questão porque, não apenas no Litoral Norte de São Paulo, mas igualmente nas regiões do Sul e Sudeste e no litoral do Nordeste do Brasil, as comunidades tradicionais, as caiçaras, pescadores e seus descendentes escolhem morar em áreas de risco, sendo assim as principais vítimas dessa tragédia.
Além de se promover políticas de proteção ao meio ambiente e de justiça climática, temos de levar em conta que nos últimos trinta anos, dado patético pois coincidente com o regime constitucional democrático de 1988, se aprofundou uma espoliação fundiária no litoral brasileiro. Promovida por largos contingentes predatórios da elite branca – “ranzinza, medíocre, cobiçosa”, como dizia Darcy Ribeiro – que expropriou a preço de banana as pequenas propriedades das comunidades tradicionais, caiçara e pescadora.
Na mesma direção foi a onda de apropriação ilegal de praias, de áreas protegidas, não apenas para residências secundárias individuais, mas também para hotéis, resorts, condomínios e clubes, convalidadas por decisões corruptas de câmaras de vereadores e prefeitos, muita vez amparadas pela Justiça, pondo em risco a vida daquelas populações e o meio ambiente.
Os brasileiros que antes tinham alguma condição de subsistência, por exemplo, com a pesca e a pequena lavoura, foram obrigados a ver suas mulheres, filhas e filhos condenados ao emprego doméstico com salários vis em residências suntuosas construídas em terrenos ilegais e a trabalhar nas empresas ligadas ao turismo. Mas, além da visão macro dessa situação odiosa, urge estreitarmos o foco e ver como são tratados esses trabalhadores e suas famílias.
Em todos os condomínios se consolidou um apartheid no qual os proprietários brancos contratam empresas privadas de segurança para vigiar e controlar o quotidiano desses trabalhadores, em sua imensa maioria negra. Como pude verificar num condomínio em Angra dos Reis, na guarita os trabalhadores precisam apresentar documentos na entrada e terem revistados na saída suas bolsas e sacolas. Os proprietários e hóspedes brancos não são sujeitos à mesma exigência. Nesse mesmo condomínio, num passeio no litoral, o barqueiro, com muito orgulho, me mostrava as mansões de novos ricos, construídas ilegalmente em áreas protegidas, impunidade assegurada para seus crimes ambientais.
Um condomínio na praia de Laranjeiras, perto de Paraty, que ocupa 1.130 hectares, 80% dos quais em áreas protegidas, dura 40 anos, marcados por ameaças e restrições de passagens aos moradores. Como demonstraram Isabel Menon e Henrique Santana em matéria publicada no jornal Folha de S Paulo, em 27 de fevereiro de 2022, hoje, o maior problema entre os caiçaras é a restrição da passagem. Condôminos, funcionários e moradores da Vila Oratório, dentro do condomínio, podem passar a pé para acessar as praias. Mas quem vive mais afastado nas praias do Sono e Ponta Negra, cuja principal fonte de renda é o turismo, não pode. Para caiçaras e turistas, resta pegar uma van que faz o trajeto entre a marina do condomínio e o ponto de ônibus, das 8h às 18h. Para chegar até a van, a maioria faz o trajeto via lanchas, que dura de 15 a 25 minutos – devem ficar esperando a lancha dentro de um chiqueirinho guardado por policiais armados.
Face a esses abusos, organizações de defesa de direitos humanos das populações espoliadas precisam ser amparadas nas lutas pela justiça de transição, o Estado assegurando a defesa de seus interesses, aumentando a construção de moradias, intervindo nas áreas de risco. Ao mesmo tempo, as práticas racistas e discriminatórias que continuam a prevalecer no apartheid dissimulado nas praias ocupadas ilegalmente, nos condomínios, nos hotéis e resorts de todo o litoral brasileiro, devem ser investigadas e reprimidas pelas polícias, processados e julgados seus responsáveis.
* é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).