Mudanças climáticas e processos de favelização estão levando o Brasil a recordes sucessivos da doença tropical. Novas vacinas podem ser resposta importante, mas o problema não será resolvido sem pensar em questões estruturais como a reforma urbana
por Gabriela Leite, em Outra Saúde
Não teve tanto alarde um fato relevante sobre a saúde pública brasileira: 2022 foi o ano recorde de mortes por dengue desde o ressurgimento da doença no país, na década de 1980. Foram 1.016 óbitos confirmados pela doença e mais de 1,45 milhão de casos prováveis. O número de pessoas que contraíram o vírus é 6,2% menor que em 2019, ano anterior à pandemia de covid-19, mas já é 156,5% maior que em 2021. O aumento continua em 2023: entre janeiro e fevereiro, houve um salto de 45% de casos em relação ao mesmo período do ano passado. O problema é que o mosquito que transmite a dengue está chegando em locais que não alcançava antes…
Esse fator foi identificado por pesquisadores do InfoDengue, sistema da Fiocruz e da FGV de alerta para arboviroses. Eles publicaram, em dezembro de 2022, um artigo no periódico The Lancet Regional Health Americas. A dengue está se espalhando para locais pouco povoados, onde antes não havia casos de transmissão local. Nos cinco últimos anos, a doença atingiu 481 novos municípios.
“O que a gente tem observado de diferente é uma expansão do número de casos para a região Sul, principalmente Paraná e Santa Catarina, mas está começando a acontecer também no Rio Grande do Sul”, explica Sara Oliveira, assistente de pesquisa do InfoDengue e uma das autoras do artigo. “E essa situação tem nos preocupado particularmente porque são regiões onde até então não havia outros casos, portanto têm uma população muito suscetível, tanto às formas brandas quanto às formas graves da doença.”
Calor, umidade e… moradias irregulares
E há dois fatores para isso, demonstra o recém-lançado ebook do InfoDengue, Enfrentando a dengue nas favelas e periferias. O primeiro diz respeito às mudanças climáticas. Esta causa já chegou a ser aventada no início de 2022, quando especialistas atribuíram a proliferação acima da média ao evento climático La Niña, que causa fortes chuvas. Mas parece ir além disso: o ciclo de reprodução do aedes aegypti se acelera no calor – por isso, em lugares mais frios é mais difícil que a doença se espalhe. Mas as mudanças climáticas parecem estar criando mais ambientes acolhedores para o mosquito.
“No geral, três fronteiras de expansão da dengue estão claramente definidas no Brasil: Sul, Norte e Nordeste do país, ligadas a mudanças climáticas, urbanização e mobilidade”, expõe o artigo. O gráfico acima mostra claramente o fenômeno. O que nos leva ao segundo fator que os pesquisadores consideram crucial para o alastramento do mosquito e, portanto, da dengue: o aumento drástico do número de pessoas vivendo em favelas e moradias irregulares.
Na última década, dobrou a quantidade de favelas no Brasil – de 6.329 para 13.151 –, segundo dados da pesquisa Um país chamado favela 2022. O estudo estima que 17,1 milhões de brasileiros vivem nesses locais com baixa infraestrutura e pouca presença do poder público. Ali, grande parte das vezes faltam saneamento básico, postos de saúde, hospitais e coleta de lixo, serviços essenciais para a mitigação dos fatores que causam a proliferação do mosquito da dengue. É mais um elemento do racismo ambiental, já que 67% dos moradores de comunidades são negros.
O ebook do InfoDengue tenta reduzir esse problema com informação para prevenir a multiplicação do aedes aegypti. São medidas conhecidas, como evitar o acúmulo de água parada e não juntar lixo. Sara Oliveira também frisa a importância da vigilância em saúde: “O que a gente tem de melhor hoje é o monitoramento dessas áreas de risco. Com isso, o governo tem formas de tomar decisões de maneira mais imediata antes que as situações se agravem”. Mas claramente essas medidas serão pouco enquanto o país não pensa uma ampla reforma urbana que dê melhores condições aos moradores de favelas.
Vacina
Ainda assim, a notícia de que uma nova vacina contra a dengue foi aprovada pela Anvisa, no início do mês, traz esperança. A chamada Qdenga é produzida pela farmacêutica japonesa Takeda e declara ter uma eficácia de 80% contra casos sintomáticos. Diferente do imunizante já aprovado Dengvaxia, do laboratório Sanofi, que funciona apenas em pessoas que já foram contaminadas pela dengue, a Qdenga pode ser aplicada em larga escala. É recomendada a indivíduos de 4 a 60 anos e oferecida em duas doses com intervalo de três meses.
Para que a Qdenga chegue ao SUS e seja distribuída aos milhões de brasileiros que precisam dela, precisa passar pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). O ministério da Saúde anunciou, em 3/3, que já fez o pedido para avaliação do órgão. O Instituto Butantan também está desenvolvendo um imunizante de dose única contra a dengue – a fase 3 dos estudos, ainda em andamento, termina em julho de 2024.
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Homem mostra a caixa d’água de sua casa no Morro do Salgueiro, Rio de Janeiro (AP Photo/Silvia Izquierdo)