Erney Felicio Plessmann de Camargo: Depoimento para a Comissão da Verdade da USP

Por Janice Theodoro da Silva*, no Jornal da USP

O professor Erney Plessmann, falecido recentemente, no último dia 3 de março, aos 87 anos, foi Professor Emérito da USP, docente do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e fez parte da Comissão da Verdade da USP. Sua trajetória acadêmica e de gestão, em diversas instituições científicas, foi de grande importância para a ciência e para o Brasil conforme destacou a ministra Nísia Trindade, em matéria publicada neste Jornal, em 04/03/23. Ela relembrou o projeto desenhado por ambos: ir para Rondônia.

O depoimento escrito de próprio punho pelo professor Erney Plessmann, para o relatório da Comissão da Verdade da USP, sugere reflexões sobre os desafios contemporâneos. Observem o que ele diz sobre endemias e política, tema atual, e a boa herança chamada Dráuzio Varella.

O filme Argentina, 1985, dirigido por Santiago Mitre, com Ricardo Darín, lançado em época de crise das democracias, cria olhares sobre as ditaduras latino-americanas. A linguagem cinematográfica aproxima o presente do passado, alterando o foco narrativo tanto para quem viveu naquela época como para quem não viveu. Ver o filme é um bom exercício para os neurônios, para a memória e para compreender a política como tragédia.

O depoimento do professor Erney Plessmann carrega os mesmos ingredientes do filme, dando nomes a todos os envolvidos na cena política. A leitura de seu depoimento, hoje, tem peculiaridades introduzidas pelo tempo. Erney foi perseguido pelo governo militar, vítima de inquérito policial em 1964, demitido pelo governador Ademar de Barros (10/10/1964) e cassado posteriormente pelo Ato Institucional nº 5. Para avaliar o papel da Universidade de São Paulo no combate à ditadura, basta lembrar que dentre os 434 mortos e desaparecidos no Brasil, 47 (mais de 10%) deles tinham relação com a USP.

No documento redigido pelo professor Erney, merecem destaque as relações profissionais entre os docentes e a política antes e depois do golpe militar. Mesmo após a cassação e a aposentadoria, por tempo de serviço, o professor Erney continuou envolvido com a universidade e com os especialistas do Brasil e do exterior. Suas pesquisas em parasitologia e protozoologia tinham foco na Amazônia, na África e na América do Sul (Venezuela e Colômbia), mantendo também a sua atenção para as questões sociais e para os dilemas das democracias em países com forte desigualdade.

No seu texto Erney destaca os protagonistas das perseguições ocorridas na Faculdade de Medicina da USP, dando nome a todos eles. Além dos conservadores afinados com o governo militar, o depoimento menciona a atuação do reitor Gama e Silva, professor da Faculdade de Direito, responsável pela elaboração e aplicação do Ato Institucional nº 5 contra seus próprios colegas de universidade, entre tantos outros.

Na outra margem do rio o relato do professor nomeia a presença de um grupo jovem envolvido com as inovações da pesquisa. Dele participavam alguns professores marcados pelo pensamento científico-libertário, identificado pelos militares como de esquerda. Trata-se de uma rede, de um tipo específico de amizade, onde atores, com ideias distintas, mantinham a sobrevivência de grupos políticos diferenciados, de esquerda e de centro, apegados às ideias de liberdade e democracia, na política e na ciência. Erney relembra a ajuda da UDN, em dinheiro, para garantir a sobrevivência de pesquisadores da USP, perseguidos pela ditadura. Apesar das denúncias prevalecia, entre alguns colegas, o respeito, uma humanidade enraizada, entre pessoas com tendências políticas distintas. Independentemente das limitações impostas pelo regime militar, o centro desempenhava papel importante na construção de equilíbrios instáveis, com promessas de abertura política.

O depoimento de Erney Plessmann de Camargo, membro da Comissão da Verdade da USP, escrito de próprio punho, em 19 de junho de 2015, favorece a preservação de memórias, de vidas bem vividas por aqueles que lutaram por um Brasil mais justo e um mundo, um pouquinho, melhor.

Depoimento

Informo à Comissão da Verdade da USP que este não é um depoimento documental; ele é apenas uma recolecção de fatos e da percepção desses fatos por alguém que os viveu intensamente.

No início da década de 1960 respirava-se, no Brasil, um clima de confiança no futuro que refletia as conquistas modernizantes e democráticas do recente governo Juscelino Kubitschek. Nas Ciências Biológicas vivia-se também um momento iluminado desencadeado pelas recentes descobertas da dupla-hélice e da estrutura e síntese celular das proteínas codificadas pelo DNA. Desvendava-se, com a microscopia eletrônica, a organização das células e suas organelas. Nasciam a Biologia Celular e Molecular e a Engenharia Genética.

O euforizante cenário político nacional e científico mundial repercutia com vigor sobre um grupo de estudantes e docentes da Faculdade de Medicina (FMUSP). À época, um punhado de estudantes se aglutinava em torno de alguns docentes de cadeiras básicas, igualmente motivados pelas descobertas das ciências biológicas e médicas, onde o conhecimento questionador gerado pela investigação científica contrastava com o doutrinário e consabido conhecimento do establishment. Hoje, não vejo nada de inusitado ou revolucionário nesse processo. Tratava-se apenas de entrar no ritmo imposto pelos novos métodos e descobertas da ciência contemporânea, mas talvez isso incomodasse quem não queria mudanças ou não conseguia acompanhar o novo ritmo.

Entre os docentes de cadeiras básicas, líderes dessa renovação científica, se incluíam os professores Junqueira, Michel Rabinovitch, Ferreira Fernandes, José Carneiro, Ivan Mota, Isaías Raw, Júlio Pudles, Alberto Carvalho da Silva, Abraão Fajer, Pedro Saldanha e Luiz Hildebrando, todos com vivência recente em instituições importantes do exterior. Pena que o casal Nussezweig estivesse no exterior, caso contrário teria se juntado a nós. Entre os docentes das disciplinas clínicas, os professores Ulhôa Cintra e Michel Jamra tinham muita afinidade com o grupo. Quanto aos estudantes, depois de formados, todos se tornaram cientistas e muitos ganharam destaque em suas carreiras, no Brasil ou no exterior, como Erney Camargo, Franscisco Lacaz, Gerhard Malnic, Maurício Rocha e Silva, Nelson Fausto, Núbio Negrão, Paulo Abrahamson, Ricardo Brentani, Sérgio Ferreira, Thomas Maack e Walter Colli. Entre 1960 e 1964, alguns alunos passaram a docentes e eu estava entre eles.

O Departamento de Histologia, dirigido pelo professor Junqueira, defendia posições políticas conservadoras, mas na área científica era progressista e se tornou o epicentro do movimento científico na faculdade. Neste departamento conseguimos os equipamentos mais modernos para a pesquisa biológica: as ultras-centrífugas, câmara fria, microscopia de vanguarda, equipamento para autorradiografias, calculadoras eletrônicas. Enfim, um laboratório de ponta à disposição.

O Departamento de Bioquímica, impulsionado por Isaías Raw, também se modernizava. Luiz Rey, o Hildebrando e eu, pertencentes ao Departamento da Parasitologia, muito pobre em equipamentos, servíamos da Histologia através da associação ao professor Ferreira, de quem éramos colaboradores. Alunos e docentes organizavam reuniões frequentes que resultavam em uma movimentada agenda de atividades, seminários e palestras sobre os mais variados temas. Estas atividades nos estimulavam aos estudos porque, em geral, seus temas traziam sempre novidades. As reuniões foram, mais tarde, classificadas em uma carta anônima e no Inquérito Policial-Militar instaurado como sendo reuniões subversivas, embora nunca tratássemos de política nessas ocasiões.

Alguns dos participantes também atuavam em organizações políticas de esquerda. A Juventude Católica, Juventude Comunista, Partido Comunista e organizações trotskistas eram as mais conhecidas; outros tantos eram de direita. Mas, em termos de ciência, pode-se dizer que todos eram de esquerda, na medida em que questionavam o conservadorismo científico e a erudição estéril de algumas disciplinas.

A petulância desse grupo de pretensiosos arautos da modernidade e da inovação científica devia causar um certo desagrado, uma certa tensão institucional. Porém, não constituía tensão política, pois era puramente institucional e compunha um cenário de distintas visões do ensino e pesquisa em confronto na faculdade dentro de parâmetros de civilidade. Os antagonismos se agravaram em dois concursos catedráticos, ocasião em que o grupo inovador liderou a maioria de estudantes contra os conchavos feitos em torno dos candidatos oficiais. De nada adiantou, mas aborreceu muita gente. Acredito que um segmento importante do corpo docente da Faculdade considerou indevida essa ingerência do corpo discente, incentivada por alguns docentes, atrapalhando o ritual acadêmico dos concursos de cátedra. Ficaram cicatrizes, mas não interferiu no convívio universitário. Existiam divergências plenamente aceitáveis entre o deslumbre dos progressistas com o novo, com um certo grau de infantilismo, e o apego ao tradicional dos mais conservadores, com um certo grau de senilidade. Sob esse aspecto, os primeiros anos de 1960 foram agitados.

Não posso dizer que vivêssemos um momento idílico na faculdade; havia um clima de inegável desconforto. Éramos incômodos. Proliferavam conflitos de opinião sobre temas acadêmicos, dentre eles, dois predominavam: um, a necessidade da modernização na pesquisa e incentivo à investigação experimental versus o conhecimento livresco e erudito de muitas disciplinas; o outro, a necessidade de uma reforma universitária que restringisse o poder do catedrático – mais folclórico que real -, passando pela abolição da Cátedra Vitalícia.

Divergências sobre esses temas, sem conotações políticas, existiam entre os próprios docentes, catedráticos inclusive. Tanto o grupo renovador como o conservador eram politicamente heterogêneos. Em ambos os lados se encontravam descendentes de nobres famílias e proletários, cristãos, judeus e ateus, esquerdistas e direitistas. Opiniões conflitantes e divergências coexistiam, como é próprio das universidades.

Isto até o golpe. A partir de 1964, as discordâncias acadêmicas viraram subversão.

Alguns docentes, liderados pelo Secretário da FMUSP, se articularam contra o grupo renovador, que veio a ser chamado de bloco comunista, bloco que não existia e nunca existiu. Mais tarde ficou evidente que alguns docentes, inclusive do nosso grupo, nutriam rancores pessoais e usaram o golpe militar para investir contra seus desafetos.

Claro que na Faculdade de Medicina da USP havia docentes visceralmente de direita, tanto antes como atualmente. Um dos professores de extrema direita, Geraldo Freire, veio a integrar a Comissão Theodoreto, o que explica a predominância de docentes da Medicina acusados no relatório dessa comissão. Havia também na FMUSP docentes de esquerda e extrema esquerda.

O nosso Departamento, a Parasitologia, era conhecido como o Departamento Vermelho por sua postura política e social. Até 1955 ele foi chefiado por Samuel Pessoa, catedrático, militante comunista e cientista respeitadíssimo por todo o establishment da Faculdade de Medicina. Porém, nunca, até 1964, houve qualquer hostilidade por parte da faculdade a Samuel Pessoa, que pertencia à história da instituição e como tal era honrado.

Prevalecia na FMUSP o esprit de corps. O epíteto de vermelho era justificado porque os docentes mais notórios do departamento eram de esquerda e conhecidos como tal, mas em 1964, do Partido mesmo, eram só o Hildebrando e eu. Por outro lado, em nenhum momento, nosso departamento, como departamento, manifestou ou adotou qualquer posição política.

Mais do que o envolvimento político, foi o envolvimento do departamento no combate às endemias brasileiras que lhe deu a fama de comunista, uma vez que o combate a essas endemias envolvia a denúncia da pobreza e das precárias condições sanitárias da população.

Envolvia também a denúncia dos latifúndios como perpetuadores das endemias rurais. Todos os docentes do departamento militavam nessa frente, mesmo os que não eram de esquerda, como o catedrático Dácio Franco do Amaral, que substituiu o professor Samuel Pessoa.

Acho que tudo seguiria dentro dos padrões universitários de tolerância e controvérsia não fosse o Golpe Militar de 1964, que transformou a polêmica acadêmica em sublevação política. O golpe também criou o cenário para que rancores pessoais explodissem e dele se servissem para agravos e vendetas. Embora comunistas existissem, em verdade éramos poucos, não mais que três ou quatro em todas as cadeiras básicas da faculdade. A maioria do corpo docente era politicamente descomprometida e tolerante.

É verdade que no dia seguinte ao golpe, o Luiz Hildebrando, eu, o Thomas e o Pedro Saldanha reunimos mais da metade dos alunos da faculdade em uma sala e peroramos em defesa da legitimidade democrática e contra o golpe. Ficou nisso. A única consequência é que, três anos depois, o Luiz Hildebrando foi paraninfo da turma cuja maioria esteve presente a essa nossa reunião.

Depois do golpe, o ambiente na faculdade mudou. Já não havia a euforia do conhecimento novo. Nos retraímos. Em junho, um jornalista da Folha nos informou que o Luiz, o Thomas, o Julio Pudles, eu e outros dez docentes estávamos em uma lista que havia sido enviada pela Reitoria da USP à Comissão Geral de Investigações (CGI), então presidida pelo Almirante Bosísio. Mais tarde fiquei sabendo que essa era a famosa lista da Comissão Theodoreto, sobre a subversão na USP, encomendada pelo Reitor Gama e Silva. Fiquei também sabendo que a CGI considerou supérfluas e infundadas as acusações e nos notificou disto. Não obstante, no segundo trimestre de 1964, não sei bem quando, instalou-se na FMUSP uma equipe do Exército, comandada pelo Tenente Coronel Ênio dos Santos Pinheiro, para conduzir um Inquérito Policial-Militar sobre a subversão na faculdade. A equipe foi soberbamente recebida pelo secretário da faculdade e instalada em sala privilegiada do 1o andar, à vista de todos e com benesses providas pela Secretaria.

Começaram os interrogatórios, constrangedores, principalmente para aqueles que não tinham nada a ver com a política da faculdade ou do País e que eram questionados sobre as atividades subversivas de colegas e amigos.

A faculdade perdeu o autorrespeito e foi entristecendo em um ambiente de velório.

Prevalecia a desesperança onde antes havia muita vida e muita esperança no futuro. Acho que esse foi o grande mal do golpe: aprisionou o futuro, amedrontou as pessoas, tolheu-lhes a criatividade, anulou a diversidade acadêmica, privou a Universidade do novo e da polêmica intelectual. A simples presença dos inquisidores já violentava o ambiente universitário.

Os inquisidores não eram truculentos, no geral eram até polidos, frios, profissionais. Apenas inquiriam, mas o clima era de desolamento e de humilhação. A maioria dos inquiridos se evadia de perguntas sobre os comunistas com um oportuno “não sei” ou confirmando aquilo que não era novidade nem comprometia ninguém. Todos concordavam que a Parasitologia era Vermelha e que alguns docentes da faculdade eram de esquerda. Samuel Pessoa era sempre citado, o que não era nenhum segredo com relação a um ex-candidato a deputado pelo PCB. O Hildebrando e eu também éramos citados algumas vezes, o que também não era nenhuma novidade para os inquisidores. Os politicamente mais treinados tentavam despistar os inquisidores seguindo os ensinamentos dos tempos de clandestinidade de que “ao inimigo, nada, nenhuma informação”.

Mais tarde, com o advento da tortura, essa orientação mudou, mas no começo do golpe ela podia ser usada sem problemas. O Luiz estava preso no navio Raul Soares e não podíamos combinar o discurso. Dessa forma, resolvi apresentá-lo aos inquisidores apenas como um liberal de esquerda, militante da democracia.

O coronel deu uma risadinha discreta, como deu risinhos em outras passagens. Mais tarde, quando o Hildebrando e eu adotamos como pombo-correio um marinheiro comunista do Raul Soares, fiquei sabendo que o Hildebrando, em seu depoimento, orgulhosamente se declarara membro atuante do PCB. Aí entendi os risinhos do coronel.

Não me consta que os inquisidores tenham ameaçado ou humilhado qualquer interrogado, mas alguns docentes se sentiram mais pressionados que outros, sentiram-se justamente humilhados. Depoimento acusatório mesmo, com informações inéditas e comprometedoras, nenhum. O depoimento do Dácio do Amaral é um exemplo da humilhação de um docente. Ele não é o depoimento de um gorila ou dedo-duro. É apenas o depoimento de um homem acuado diante de militares e forçado a reconhecer como comunistas colegas que ele respeitava profissionalmente. Nenhuma novidade, nenhum fato, apenas a repetição do consabido e a sua insistente desvinculação das atividades políticas de seus assistentes, o que era verdade. Nenhuma delação. A rigor, em seu depoimento, talvez sem se dar conta disso, Dácio acabou delatando os delatores Dante esse secretário da faculdade, e Elfride Kirchner, técnica da Parasitologia, que o procuraram para acusar alguns docentes. Delata de passagem o direitista Pacheco e Silva e também se autodelata ao revelar que ficou encarregado de levar acusações à Comissão Interna da Universidade – Comissão Theodoreto. Acusações toscas.

Os depoimentos, em seu todo, não trazem nenhuma informação concreta sobre subversão, pois na verdade não havia e, tanto não havia, que o próprio promotor militar pediu o arquivamento do processo resultante do IPM. Em verdade, a peça central do inquérito, além do relatório Theodoreto, foi uma carta anônima composta por duas ou quatro mãos, duas delas sabidamente da técnica da Parasitologia. A carta não listava fatos, apenas destilava ódio, principalmente contra todos os docentes da Parasitologia e até seus cônjuges e alguns da Histologia. Um documento alimentado por rancor incontido, doentio. Não sabemos a origem desse rancor, porque a Elfride era no geral afável e sem conflitos explícitos com qualquer um de nós. Esta carta deveria ser publicada um dia, mas com a advertência de que pode causar náuseas. Como exemplo cito o que ela disse de mim – não contarei o que disse de outros. Disse que eu era um docente com um currículo duvidoso. Má fé. Em realidade eu não tinha currículo nenhum. Acabara de ser contratado após um período de treinamento em Bioquímica no [Instituto] Butantã com uma bolsa da Capes no laboratório do Baeta Henriques. Eu tinha apenas dois trabalhos com o Hildebrando e um com o Baeta. Era um currículo muito fraco, mas não tinha nada de duvidoso. Disse também que eu levara ingênuos estudantes da Medicina a um cabaré na Bahia, em viagem de Bandeira Científica chefiada por mim. Verdade parcial. Em realidade foram os estudantes, alguns mais velhos que eu, nada ingênuos, que me convidaram a tomar uma cerveja no famoso Bataclã do Jorge Amado, de que todos ouvíramos falar e queríamos conhecer. A carta também dizia que usávamos as Bandeiras Científicas para recrutar estudantes para o Partido Comunista. Calúnia. Nunca nenhum de nós se valeu da condição de professor para recrutar alunos. Pelo contrário.

Conto um episódio de que não me lembrava, mas me foi relembrado pelo dr. Dráuzio Varella. Dráuzio foi aluno meu e do Hildebrando e é meu amigo até hoje. Um dia, quando estudante, ele me procurou dizendo que queria entrar para o Partido. Segundo me contou, eu o desestimulei e disse que não havia nada que ele pudesse fazer melhor no Partido do que fora dele. Ele me atendeu. Acho que esses exemplos servem para dar o tom da carta anônima que orientou o IPM e que desaguou num processo junto à Justiça Militar. Acusações puramente pessoais. O processo, de tão ridículo, foi arquivado a pedido da própria Promotoria Militar em 1965. Fomos todos absolvidos, ainda não sei de que. Uma vergonha comandada pelo reitor da Universidade, prof. Gama e Silva, o Gaminha, com o aplauso de áulicos e vivandeiras da Faculdade de Medicina.

O rancor e a vergonha não saíram barato para nós. Em outubro de 1964 recebemos a notícia de que um decreto do governador Adhemar de Barros nos demitia. Foram demitidos 14 docentes, mas comunistas mesmo só uns quatro. A Parasitologia foi quem mais sofreu porque, mesmo não demitidos, os Nussenzweig, que estavam fora, não voltaram ao País, os Deane foram para a Venezuela, Luiz Rey foi para a OMS, eu fui para os EUA e o Hildebrando, logo depois de deixar a prisão no Raul Soares, voltou à França. Em resumo, a Parasitologia perdeu sete de seus dez docentes.

Perguntam-me, com frequência, se o golpe prejudicou e atrasou o desenvolvimento da Parasitologia entre nós ou de toda a ciência da Universidade. Não sei responder. Esse foi um experimento sem controle ou placebo, como queiram. Não sei como seria se não tivesse sido. Mas de duas coisas tenho absoluta certeza. Primeira, o ambiente na Universidade mudou muito.

Na Medicina a euforia do início da década foi substituída por profundo desânimo e apatia. Muitos colegas se retraíram. Reuniões acabaram. Marasmo absoluto. A faculdade parece que se envergonhou ao perder a dignidade, violentada por uma gang militar-universitária. Os docentes perdidos pela Parasitologia atingiram os níveis mais altos da carreira científica. Ruth e Victor Nussenzweig foram Professores Plenos da Universidade de Nova York, Hildebrando foi chefe de Divisão da Instituto Pasteur em Paris, onde colaborou com três prêmios Nóbeis. Leonidas e Maria Deane, depois da Venezuela, voltaram para a Fiocruz como pesquisadores titulares. Luiz Rey fez carreira na OMS e também voltou para a Fiocruz.

Eu, ao voltar dos EUA, fui professor titular da Escola Paulista de Medicina antes de retornar à USP. Tenho a impressão que a Parasitologia da FMUSP perdeu muita coisa com o golpe militar.

Com a evolução do golpe floresceram ou generalizaram-se posições de direita. Por exemplo, a Congregação da Faculdade proibiu a solenidade de formatura da turma que teve o Hildebrando como paraninfo. A solenidade não oficial realizou-se assim mesmo, sem a presença do diretor, mas com a presença de muitos professores e de todos os alunos de uniforme branco em vez do tradicional smoking.

No cenário engalanado da direita muitos docentes procuraram preservar sua dignidade retraindo-se. Outros, por comodismo ou pusilanimidade, sucumbiram ao poder dominante.

Porém, muitos, muitos, mantiveram-se solidários aos docentes demitidos e, entre esses, muitos daqueles que até então tinham se mantido neutros e distantes. Conto três episódios dignificantes da era dos Atos Institucionais que já contei em outras oportunidades.

Os docentes de tempo integral demitidos não tinham outra fonte de renda. De repente, ficaram sem recursos para atender às necessidades mais básicas. Foi aí que começaram a me repassar recursos suficientes para pagar integralmente os salários de todos os demitidos que ainda permaneciam no Brasil. Não, o dinheiro não vinha de Moscou. Eu recebia, por intermédio de um discreto prócer da conservadora União Democrática Nacional, UDN, o dinheiro coletado entre docentes anônimos de nossa Universidade que certamente não concordavam com o arbítrio e aviltamento da condição universitária. Depois de minha partida do País não sei como continuou a distribuição, porém os doadores permaneceram em sua anônima dignidade.

Quando o Luiz Hildebrando e família tiveram que voltar às pressas para a França em 1969, ele não tinha dinheiro para as passagens. Nessa época, o professor Moura Gonçalves, católico conservador que, como diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, havia impedido o IPM de lá se instalar, me entregou todo um salário para pagar as passagens do Luiz. Pediu-me discrição, não por temor, mas por não querer aplausos.

O terceiro episódio mais singelo e inédito foi protagonizado por modestos servidores da FMUSP que coletaram entre si USD 400 para minha partida para os USA. Era bastante dinheiro à época quando uma bolsa da Capes no exterior correspondia a 200 dólares. Ainda me lembro com emoção de todos esses servidores.

Na minha opinião erram crassamente aqueles que dizem que a USP foi conivente com o golpe e a ditadura. Não foi, nunca. Ela serviu de palco para encenações institucionais grotescas e vendetas pessoais. Serviu de palco para reitores próceres golpistas e docentes fascistas expressarem toda sua raiva contra a democracia e contra o hábito inaceitável de se pensar livremente. Outros, pragmaticamente, usaram a oportunidade para penalizar seus desafetos. O golpe de 64 não foi apenas contra o Estado de Direito, ele se constituiu de subgolpes contra muitas instituições. Uma destas foi a USP que, no entanto, nunca sucumbiu ao golpe, mas a ele se opôs durante toda sua duração. Dizer que a USP foi conivente com o golpe é um ato de desrespeito a todos os mártires, alunos e docentes, que sucumbiram às atrocidades da ditadura.

As punições na FMUSP foram as primeiras na longa história opressiva da ditadura e têm um caráter muito particular. Elas não foram uma resposta militar a ações de enfrentamento ao golpe. A máquina repressiva ainda não estava montada e a ideologia golpista ainda aguardava operadores profissionais. Em verdade, a novela ou drama da FMUSP se parece mais com uma reedição da caça às bruxas de Salem do que com a sistemática repressão à cultura e à intelectualidade posteriormente conduzida pela ditadura em nível nacional.

Em 2009, a Congregação da Faculdade de Medicina, por mediação de seu diretor, professor Marcos Boulos, concedeu o título de Professor Emérito a todos os docentes que haviam sido demitidos em 1964. Na solenidade de posse, tive a oportunidade de dizer que não éramos nós quem estávamos sendo redimidos, era a faculdade que se redimia do espetáculo grotesco de 1964.

Acho que foi assim.

*Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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