“Não basta resgatar, mas libertar da miséria e da pobreza”

Professora na UFMG, Lívia Miraglia analisa os casos recentes de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Neste sábado celebra-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão.

Por Edison Veiga, na Ponte

Em balanço divulgado no início desta semana, o Ministério do Trabalho apontou que foram resgatados 918 trabalhadores em condição de trabalho análogo à escravidão no Brasil no primeiro trimestre — número 124% maior do que no mesmo período do ano passado e um recorde histórico, considerando os últimos 15 anos.

Autora do livro Trabalho Escravo Contemporâneo: Conceituação à Luz do Principio da Pessoa Humana, a professora de direito Lívia Mendes Moreira Miraglia afirma em entrevista à DW que a visibilidade que a mídia tem dado aos casos nos últimos anos contribui para que haja avanços nessas operações de resgate.

“[Isso faz com que] as pessoas vejam que é possível denunciar, entendam o que é a escravidão contemporânea, consigam identificar essas situações e quais vezes elas mesmas são submetidas sem a total consciência do que é errado”, diz ela, que é docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde coordena a Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas.

A conceituação chama esse tipo de exploração contemporânea de “trabalho análogo à escravidão” porque, explica Miraglia, a escravidão só pode ser assim chamada quando se refere a atos anteriores à Lei Áurea de 1888, quando o ordenamento jurídico brasileiro permitia a sua existência. Era, portanto, uma possibilidade lícita.

De lá para cá, esses abusos criminosos precisam ser tecnicamente tratados como formas que se assemelham, pela natureza, à escravidão. E basta que contenham ao menos uma das características para que se configure o crime. São elas: trabalho forçado, servidão por dívidas, submissão a condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas.

Neste sábado, 25 de março, em que se celebra o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos, data instituída pela Organização das Nações Unidas pare recordar a tragédia de 400 anos de escravidão no mundo, Miraglia compara a escravidão histórica do Brasil com a contemporânea.

“A gente vê que várias formas de escravidão contemporânea ainda subsistem, acabam sendo a herança desse passado”, diz.

DW: Nesta semana, o Ministério do Trabalho divulgou dados recordes de regate de trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão. O que explica esse salto nos casos?

Lívia Miraglia: Uma razão é o aumento do número de denúncias e, consequentemente, o aumento [d]o número de resgates, de operações que vêm sendo feitas. O que é de extrema relevância para demonstrar que as nossas instituições vêm funcionando e atuando de forma precisa e de forma bem combativa. Tem havido uma força-tarefa nesse sentido do Ministério do Trabalho, que é o coordenador das operações, junto ao Ministério Público do Trabalho, ao Ministério Público Federal e às polícias rodoviárias federais, para que as denúncia sejam efetivamente apuradas.

Há uma outra razão: esse aumento das denúncias se deve muito também a um trabalho que vem sendo feito por vocês da mídia, de dar destaque aos casos, de levar o assunto para a pauta, para que as pessoas vejam que é possível denunciar, entendam o que é a escravidão contemporânea, consigam identificar essas situações e quais vezes elas mesmas são submetidas sem a total consciência do que é errado. E há também a questão da crise econômica, que assola o mundo e já assolava o mundo antes da pandemia, e com a pandemia foi agravada.

Quem são os mais vulneráveis?

São pessoas de 18 a 35 anos, em sua maioria homens, com baixa escolaridade, negros e pardos. A gente sabe que há um contingente de pessoas que passam por miserabilidade e pobreza, que acabam se submetendo a qualquer tipo de trabalho, inclusive o análogo à escravidão. Se há uma perspectiva de miséria e fome, e de outro lado um trabalho qualquer, não dá nem para falar em escolha: a gente não escolhe entre morrer de fome e tentar sobreviver, simplesmente vai para onde se acredita que haja pelo menos alguma chance de melhorar um pouquinho.

Já é possível comparar a ação do atual governo nesse combate com a gestão anterior?

Estamos apenas em março, então fica difícil traçar um comparativo. Mas acho importante dizer que nos últimos quatro anos houve uma tentativa de desmonte da fiscalização do trabalho, da importância do Ministério do Trabalho. Na verdade, isso é anterior ao governo [Jair] Bolsonaro, começa lá com a extinção do Ministério do Trabalho [a pasta foi reestruturada por meio de medida provisória no governo Michel Temer em 2016, extinta no primeiro dia do governo Bolsonaro e recriada em julho de 2021].

Nos últimos seis anos, o Ministério do Trabalho sofreu de forma reiterada uma tentativa de desmonte, de redução de importância. Dito isso, é digno de nota o trabalho que com todas as dificuldades [os agentes da pasta] estão conseguindo fazer, com resgates em números recordes de trabalhadores. Fico pensando como seria se houvesse um investimento adequado na fiscalização do trabalho, talvez estivéssemos quase chegando à erradicação [do trabalho análogo à escravidão].

Neste sábado, a ONU convida a celebrar a memória das vítimas da escravidão. De que forma esse olhar ao passado contribui para sensibilizar com relação ao presente?

É preciso que a gente conheça o nosso passado para que a gente possa não repetir os mesmos erros e possa construir um futuro melhor. A gente vê que várias formas de escravidão contemporânea ainda subsistem, acabam sendo a herança desse passado de quase 400 anos de escravidão no mundo. Dessa subjugação de um ser humano pelo outro, dessa incapacidade que o ser humano tem de enxergar o outro como espelho.

Isso é muito relevante para que a gente possa pensar novas formas para mudar o nosso presente a partir da perspectiva da lembrança do que já foi feito, do que se permitiu fazer um dia na nossa história com uma outra pessoa.

De que forma essa memória precisa ser feita para que não relativize o ocorrido, tampouco não seja preconceituosa às vítimas e a seus descendentes?

É preciso fazer um resgate histórico para tentar contar essa história do nosso passado escravocrata não apenas a partir da visão do vencedor, do escravizador, dos povos que escravizaram. É preciso resgatar a memória daqueles que foram escravizados, dando voz para aqueles que conseguiram ser resgatados. E que não relativizemos o ocorrido, não reproduzindo preconceitos com a vítima nem seus descendentes.

É preciso fazer, de forma intelectualmente honesta, a recontagem do período da escravidão, para que consigamos enxergá-lo em sua complexidade. A gente não pode esquecer que houve, na verdade, uma tentativa de extermínio dessa população negra que veio ao Brasil como escravizada durante a escravidão e no período posterior à escravidão. E isso continuou e talvez continue até hoje.

Como interromper esse ciclo histórico?

Como diz a [historiadora e antropóloga] Lilia Schwarcz, é preciso evitar que o 13 de maio [Dia da Abolição da escravidão, em 1888] seja o dia mais longo da nossa história, tendo começado em 1888 e não terminado até hoje. Toda vez que a gente liberta alguém, legalmente falando, não basta que essa liberdade seja forma, não basta que ele ganhe a liberdade. É preciso que haja liberdade tanto formal quanto efetivamente, materialmente, porque se as condições de miséria e pobreza que levaram a pessoa a não ter escolha e a se submeter a essa situação continuarem, a gente vai continuar nesse ciclo.

Foto: Sérgio Carvalho /MTE

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