Entre a população atingida pelos impactos há comunidades tradicionais, quilombolas e assentamentos da reforma agrária
Ministério Público Federal na Paraíba
O impacto socioambiental de usinas eólicas e solares construídas em áreas de comunidades tradicionais, assentamentos da reforma agrária e territórios quilombolas na Paraíba vem sendo apurado pelo Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU) e Defensoria Pública do Estado da Paraíba (DPE/PB), a partir de denúncias recebidas por esses órgãos. O passo mais recente da apuração conjunta ocorreu em 20 de março, quando integrantes dos três órgãos se reuniram com representantes do Centro de Ação Cultural (Centrac), que atua com agricultores familiares; da Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba (Cecneq-PB), Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes da Paraíba (Aacade-PB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), e do mandato do deputado estadual Chió (Rede).
Conforme apurado até o momento, os impactos causados à parcela da população rural em cujas terras são instaladas as usinas de energias renováveis já começam na forma individual como cada pequeno proprietário é abordado, a fim de ser convencido a vender ou arrendar a propriedade rural onde será construída a estrutura da usina. A negociação ocorre de forma pouco transparente, visto que os contratos de arrendamento das terras são firmados e mantidos sob sigilo, impossibilitando a verificação das cláusulas e valores.
Além disso, como os contratos são feitos por longos períodos (20 anos ou mais) e são renováveis automaticamente, os arrendamentos acabam se tornando, na realidade, uma forma de apropriação das propriedades rurais pelas empresas. É o fenômeno da ‘territorialização das energias’, mencionado pelo advogado Claudionor Vital Pereira, representante do Centrac. “Quando falo em territorialização das energias me refiro às transformações nas formas de apropriação dos territórios e seus recursos naturais, quando as empresas de geração de energia, ao ocuparem as terras onde serão instalados os empreendimentos, passam a exercer o controle sobre a gestão e o uso destes territórios e a se apropriar privadamente dos seus recursos energéticos (eólicos e solares), causando transformações nos modos de uso e ocupação da terra, explica Vital.
Problemas já identificados – A partir de envio de ofícios e coletas de informações com as populações atingidas, a Defensoria Pública da União identificou, pelo menos, seis eixos de problemas causados pelas usinas de energias renováveis: abusividades contratuais, especialmente a ausência de transparência e de acesso à informação pelas populações atingidas; danos ambientais expressivos e burla à fiscalização ambiental adequada; danos à saúde das populações; dano ao patrimônio histórico e arquitetônico; poucos impactos sociais positivos; e muitos impactos sociais negativos. Segundo o defensor público da União Edson Andrade, já se sabe que existe um fracionamento nesses parques de energia renovável para fugir da fiscalização ambiental tradicional que se faz através do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (Rima).
Desmatamento de vegetação nativa em extensas áreas para a fixação de pás giratórias ou de células fotovoltaicas, causando morte da biodiversidade; rachaduras em paredes de casas e de cisternas causadas por explosões e pelo transporte por caminhões das gigantescas estruturas das usinas eólicas; comunidades rurais afetadas pela fuga de famílias para a zona urbana por conta da instalação das usinas; danos à saúde mental decorrentes do barulho das torres das usinas eólicas; risco de dano a sítios arqueológicos; silêncio imposto aos camponeses arrendadores por meio de cláusulas de sigilo nos contratos firmados estão entre os impactos negativos relatados decorrentes da instalação de usinas geradoras de energia considerada ‘limpa’.
Êxodo rural e desertificação – Segundo a defensora pública estadual Fernanda Peres, um dos grandes prejuízos causados pelas usinas de energias renováveis é com relação aos descendentes dos agricultores familiares, das comunidades tradicionais e dos quilombolas, por ser o trabalho deles uma tradição que passa de geração a geração. “Com a instalação das torres, os filhos não terão mais como desenvolver as atividades exercidas há anos pelos pais e avós, o que provocará inevitável êxodo e desemprego dessas pessoas no futuro, porque perderão o meio tradicional de trabalho”, prevê Peres. Ela ainda pondera quanto às mudanças ambientais: “temos que nos atentar que é uma região sensível e não houve nenhum estudo acerca dos impactos ambientais. Por ser uma região de vegetação mais sensível, há risco, inclusive, de desertificação, como já ocorreu em outros locais”, alerta a defensora.
Auditoria detecta impactos – Na reunião da segunda-feira (20), o deputado estadual Chió apresentou relatório do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (TCE) sobre auditoria em políticas públicas de combate à desertificação no Semiárido. Produzido em 2022, o relatório de auditoria do TCE menciona dados do portal da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre os grandes geradores de energia que comercializam na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Conforme os dados da Aneel, os grandes geradores de energia que comercializam na CCEE somam, na Paraíba, 67 de energia eólica e 68 geradores de energia solar. Ainda consta no relatório que 38 municípios declararam a existência de empreendimentos de energia eólica e/ou fotovoltaica no município, sendo que nove deles informaram já se detectar impacto negativo, em função de desmatamento, e dois, com relação à saída de agricultores dos locais onde as usinas foram construídas.
O que? Como? Por quê? – Quando se trata da implantação dessas usinas, ainda há várias questões que precisam de resposta: Quais são as medidas compensatórias pelos danos causados ao meio ambiente? Por que os empreendimentos estão descumprindo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, que prevê a realização de consulta prévia e informada às comunidades tradicionais? Por que os proprietários de terra abordados individualmente não são também informados dos danos à saúde dos seres humanos e dos animais, decorrentes do barulho permanente das pás giratórias das usinas eólicas? Qual a dimensão do faturamento das empresas que exploram esse novo filão no mercado gerador de energia? Que riqueza essas empresas têm gerado para a região depois que começam a captar a energia dos ventos e da luz solar? Que impostos elas pagam? Afinal, o que está ficando de dinheiro nos municípios onde estão instaladas as usinas?
Soluções possíveis – Entre as medidas discutidas para proteger as comunidades tradicionais, quilombolas e assentamentos da reforma agrária atingidos estão a apuração de possíveis prejuízos previdenciários aos agricultores; apuração dos danos decorrentes da devastação da vegetação nativa e danos nos sítios arqueológicos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); aprimoramento da legislação para garantir licenciamento ambiental real e concreto; busca de medidas para mitigar o impacto negativo ambiental econômico e social causado às comunidades rurais; convocação de audiência pública para esclarecer a opinião pública sobre os aspectos negativos dessas alternativas energéticas, que ganham menos repercussão diante do forte lobby da indústria da energia renovável num cenário de eventos climáticos extremos em que se discute a adoção de fontes de energia alternativa.
O procurador da República Anderson Lima, que atua em Sousa, cidade do Sertão paraibano, ressalta que, independentemente da apuração dos danos, já é possível identificar o nítido descumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) na abordagem às comunidades tradicionais. “É necessário que órgãos como a Aneel e a Sudema façam cumprir a Convenção 169 como fase obrigatória do processo de cadastramento”, afirma. O procurador pondera que uma medida possível, que poderia ser tomada desde logo para corrigir essa falha, seria a propositura de Termo de Ajustamento de Conduta para que a Convenção 169 seja cumprida, pois ela tem status normativo supralegal”, ele ressalta.
Diagnóstico em produção – A Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba está produzindo diagnóstico social sobre o impacto das usinas de energias renováveis instaladas nos territórios ou nas proximidades de territórios quilombolas no estado. Iniciado em fevereiro de 2023, o levantamento já aponta seis comunidades que serão atingidas pela construção em breve dessas usinas. Outras quatro estão sendo impactadas pelas estruturas já implantadas em seus territórios. Numa dessas comunidades, o parque eólico passa a 400 metros de distância das casas das famílias, registra o diagnóstico em produção pela Ceqneq.
O vice-presidente da Ceqneq/PB, Josiel Alves, contou que os relatos que ouviu até o momento no levantamento do diagnóstico é que as empresas só informam as vantagens que as pessoas vão ter, como o valor que vão receber pelo arrendamento da terra, os benefícios que a empresa pode realizar, como reforma da sede da associação comunitária, construção de galpão, construção de sede, realização de oficinas de formação em diversas áreas, a exemplo de empreendedorismo, plantas medicinais e formação de associação. “O impacto que a empresa informa para a comunidade é que as pessoas não podem transitar nas proximidades do local em que vai ser instalado o parque”, relatou Alves.
Ressarcimento – O procurador da República José Godoy destaca que a produção de energia renovável, dita ‘energia limpa’, não pode significar impacto excessivo para agricultores familiares, quilombolas e comunidades tradicionais do Semiárido nordestino, gerando uma situação em que estes ficam com os impactos negativos e o restante da sociedade fica com as benesses e positividades desses empreendimentos. “A política pública de energia renovável precisa precificar e ressarcir as comunidades do potencial energético, seja vento ou luz solar, processado a partir das pequenas propriedades rurais, porque é injusto que os contratos levem em consideração apenas o uso do espaço territorial. O sol que tanto castigou o sertanejo precisa também beneficiá-lo agora que adquiriu valor para o mercado”, enfatiza Godoy.
Política pública de proteção – “Embora se diga que essas energias renováveis são limpas, elas geram um impacto ambiental e, especialmente, socioeconômico, desproporcional na localidade onde são implantadas”, afirma o defensor Edson Andrade. Ele explica que a desproporcionalidade é percebida quando se compara a ausência de impacto sobre a população que se beneficia da energia – que reside muito distante da localidade onde a energia é gerada – com o impacto sofrido apenas pela população pobre da Paraíba. O impacto também é desproporcional frente aos investimentos e ganhos econômicos que as empresas de geração de energia recebem, aponta Andrade. “A DPU não é contra a implantação dos parques de energias renováveis em nosso estado, contudo, a gente entende que é preciso que se crie uma política pública em proteção às comunidades atingidas, condicionando a implantação dos empreendimentos à adoção de medidas que protejam essa população, do ponto de vista social, ambiental e econômico”, reitera o defensor.
O advogado Claudionor Vital relata que famílias camponesas impactadas pela instalação e operação dos parques eólicos, em municípios do Estado do Pernambuco, buscam na Justiça a reparação dos danos à saúde, perda da produção de alimentos e perda do sossego e da segurança. “As famílias relatam casos de insônia, dores de cabeça, zumbido nos ouvidos, hipertensão, decorrentes da emissão de ruídos de baixa frequência e infrassons pelas turbinas eólicas. Também mencionam restrição de uso da terra para cultivo e impactos dos ruídos na saúde dos animais e há ainda relato de queda de um dos aerogeradores em área próxima a moradias, considerando que aerogeradores chegaram a ser instalados a 220 metros de distância das residências”, conta Vital.
Complexo híbrido inaugurado – Dados extraídos do portal do Governo da Paraíba informam que o estado tem cerca de 160 parques instalados e em processo de implantação em vários municípios. Na terça-feira (22) foi inaugurado no estado o primeiro complexo associado de geração de energia eólica e solar no Brasil. O complexo eólico solar está localizado no município de Santa Luzia, no Sertão paraibano e se espalha por uma extensão de 8,7 mil hectares nos municípios de Santa Luzia, Areia de Baraúnas, São José de Sabugi e São Mamede, na Paraíba. Constituído por 15 parques, o complexo abriga 136 aerogeradores com uma capacidade total instalada de 471 MW. O investimento para a sua construção foi de R$ 3 bilhões.
Mais um complexo eólico – Recente reportagem na imprensa nacional sobre o assunto mostrou a existência do empreendimento denominado Complexo Eólico Pedra Lavrada, que visa à implementação de 372 aerogeradores numa área de cerca de 1,6 mil hectares na região do Seridó, alcançando áreas dos estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, atingindo mais comunidades tradicionais e sítios arqueológicos. Conforme noticiado, o empreendimento abrangerá oito cidades: Currais Novos, Acari, Carnaúba dos Dantas e Parelhas, no Rio Grande do Norte; Pedra Lavrada, Nova Palmeira, Picuí e Frei Martinho, na Paraíba. Ainda segundo a reportagem, o projeto aguarda a emissão da licença pela Superintendência de Administração do Meio Ambiente da Paraíba, onde o processo estaria em andamento, para o início das obras.
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Imagem: Vinícius Sobreira/Brasil de Fato