Vaticano repudia finalmente a “Doutrina da Descoberta”, usada ao longo dos séculos para subjugar povos indígenas

Tania Pacheco

Em Nota emitida pelos dicastérios (‘ministérios’ que compõem a Cúria Romana) para a Cultura e a Educação e para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, o Vaticano repudiou a chamada “Doutrina da Descoberta”. Embasada por bulas do século XV e usada para ‘embasar’ tratados e documentos,  ela justificou durante mais de 500 anos o direitos dos colonos europeus a invadir, expulsar, escravizar, explorar e até buscar exterminar povos indígenas, considerados ‘inferiores’.

“Nunca mais a comunidade cristã poderá deixar-se contagiar pela ideia de que uma cultura seja superior às outras, ou que seja legítimo recorrer a meios de coação dos outros”, afirma a Nota, citando o Papa Francisco. E ainda:

A «doutrina da descoberta» não faz parte do ensinamento da Igreja Católica. A pesquisa histórica demonstra claramente que os documentos papais em questão, escritos num período histórico específico e ligados a questões políticas, nunca foram considerados expressões da fé católica. Ao mesmo tempo, a Igreja reconhece que estas Bulas papais não refletiam adequadamente a igual dignidade e os direitos dos povos indígenas. A Igreja está consciente também do facto que o conteúdo destes documentos foi manipulado com fins políticos pelas potências coloniais em competição para justificar atos imorais contra as populações indígenas, às vezes realizados sem oposição das autoridades eclesiásticas. É justo reconhecer estes erros, consciencializar-se dos efeitos terríveis das políticas de assimilação e do sofrimento vivido pelas populações indígenas, e pedir perdão.”

A íntegra do documento, divulgada pelo Vaticano, pode ser lida abaixo:

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Nota Conjunta dos Dicastérios para a Cultura e a Educação
e para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral
sobre a «Doutrina da Descoberta»

1. Fiel ao mandato recebido de Cristo, a Igreja Católica esforça-se por promover a fraternidade universal e o respeito pela dignidade de todo ser humano.

2. Por esta razão, no decorrer da história, os Papas condenaram atos de violência, opressão, injustiça social e escravidão, incluindo os atos cometidos contra as populações indígenas. Houve também numerosos exemplos de bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis leigos que deram a sua vida em defesa da dignidade daqueles povos.

3. Ao mesmo tempo, o respeito pelos factos da história exige o reconhecimento da fragilidade humana e das falhas dos discípulos de Cristo em cada geração. Muitos cristãos cometeram atos celerados contra as populações indígenas, pelos quais pediram perdão em várias ocasiões os últimos Papas.

4. Nos nossos dias, um renovado diálogo com os povos indígenas, especialmente com os que professam a fé católica, ajudou a Igreja a compreender melhor os seus valores e culturas. Com a ajuda deles, a Igreja adquiriu uma maior consciência dos seus sofrimentos, passados e presentes, devido à expropriação das suas terras, que consideram um dom sagrado de Deus e dos seus antepassados, e às políticas de assimilação forçada promovidas pelas autoridades governamentais da época, que visavam eliminar as suas culturas indígenas. Como sublinhou o Papa Francisco, os seus sofrimentos constituem um forte apelo para se abandonar a mentalidade colonizadora e caminhar lado a lado com eles, no respeito mútuo e no diálogo, reconhecendo os direitos e os valores culturais de todos os indivíduos e povos. A este respeito, a Igreja compromete-se a acompanhar os povos indígenas e a promover esforços destinados a favorecer a reconciliação e a cura.

5. Foi neste contexto de escuta dos povos indígenas que a Igreja sentiu a importância de abordar o conceito denominado como «doutrina da descoberta». O conceito jurídico de «descoberta» foi debatido pelas potências coloniais a partir do século XVI e encontrou particular expressão na jurisprudência dos tribunais de vários países do século XIX, segundo a qual a descoberta de terras pelos colonos conferia um direito exclusivo de extinguir, por meio de compra ou conquista, o título ou a posse destas terras pelas populações indígenas. Alguns estudiosos argumentam que a base da mencionada «doutrina» se encontra em vários documentos papais, como as Bulas Dum Diversas (1452), Romanus Pontifex (1455) e Inter Caetera (1493).

6. A «doutrina da descoberta» não faz parte do ensinamento da Igreja Católica. A pesquisa histórica demonstra claramente que os documentos papais em questão, escritos num período histórico específico e ligados a questões políticas, nunca foram considerados expressões da fé católica. Ao mesmo tempo, a Igreja reconhece que estas Bulas papais não refletiam adequadamente a igual dignidade e os direitos dos povos indígenas. A Igreja está consciente também do facto que o conteúdo destes documentos foi manipulado com fins políticos pelas potências coloniais em competição para justificar atos imorais contra as populações indígenas, às vezes realizados sem oposição das autoridades eclesiásticas. É justo reconhecer estes erros, consciencializar-se dos efeitos terríveis das políticas de assimilação e do sofrimento vivido pelas populações indígenas, e pedir perdão. Além disso, o Papa Francisco exortou: «Nunca mais a comunidade cristã poderá deixar-se contagiar pela ideia de que uma cultura seja superior às outras, ou que seja legítimo recorrer a meios de coação dos outros».

7. Em termos inequívocos, o magistério da Igreja sustenta o respeito devido a todo o ser humano. Por conseguinte, a Igreja Católica repudia os conceitos que não reconhecem os direitos humanos inerentes aos povos indígenas, incluindo a doutrina que ficou conhecida, legal e politicamente, como a «doutrina da descoberta».

8. Numerosas e repetidas declarações da Igreja e dos Papas defendem os direitos dos povos indígenas. Por exemplo, na Bula Sublimis Deus de 1537, o Papa Paulo III escreveu: «Definimos e declaramos (…) que os chamados Índios e todos os outros povos que forem em seguida descobertos pelos cristãos em caso algum devem ser privados da sua liberdade ou da posse dos seus bens, mesmo que não sejam de fé cristã; e que podem e devem, livre e legitimamente, gozar da sua liberdade e da posse dos seus bens; nem devem ser de forma alguma escravizados; caso contrário, o ato será nulo e sem qualquer efeito».

9. Mais recentemente, a solidariedade da Igreja com os povos indígenas suscitou um forte apoio da Santa Sé aos princípios contidos na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A implementação destes princípios melhoraria as condições de vida e ajudaria a proteger os direitos dos povos indígenas, além de facilitar o seu desenvolvimento no respeito pela sua identidade, língua e cultura.

Sínodo. Foto: Andina

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