Ataques violentos em escolas não são casos isolados: vivemos num Brasil que destila ódio – e ele tem um longo lastro, não começou em 2018. Precisamos de múltiplas ações para desmontar esse sentimento identitário.
Na DW
Nas últimas semanas, testemunhamos níveis insuportáveis de violência. O Brasil ficou chocado com o assassinato da professora Elisabete Tenreiro, de 71 anos, por um de seus alunos na cidade de São Paulo, e com o atentado contra a creche Cantinho do Bom Pastor, que deixou quatro crianças mortas e outras feridas em Blumenau.
E não era para menos: devemos ficar absolutamente consternados e arrasados, pois estamos diante de uma epidemia de ódio.
O desespero aumenta quando vemos que tais violências tiveram como palco um dos lugares de maior importância na construção de sociedades democráticas: a escola. O espaço que, em tese, deveria ser de segurança para professores, estudantes e funcionários, virou alvo preferido de ações extremistas que se alimentam de ódio, desenvolvendo uma competição doentia e criminosa que vem arregimentando muitos jovens brasileiros a serem mártires de uma seita difícil de ser adjetivada.
As autoridades já estão agindo, e desde o dia 3 de abril vimos uma mudança salutar na postura do jornalismo brasileiro em como tratar esse fenômeno de escalada do ódio, a partir da escuta atenta de especialistas. No mundo que celebra os “15 minutos de fama” – ou os atuais 20 segundos do TikTok –, a epidemia do ódio se constrói em rede, por meio do reconhecimento desses doentes-criminosos, que passam a ser tratados como mártires nessas seitas abjetas. Por isso é fundamental não alimentar essa perspectiva pérfida de sucesso.
Ódio não é novidade no Brasil
Mas, como sabemos, esses casos não são isolados. Nos últimos anos, a escalada do ódio ganhou proporções assustadoras, pautando inúmeras políticas públicas brasileiras, como a tragédia yanomami, ou o desdém de muitas autoridades políticas em relação aos 700 mil mortos na pandemia de coronavírus. Não nos esqueçamos das chacinas que continuam a ditar a vida de muitas pessoas (sobretudo pretas) que vivem nas periferias Brasil afora, no crescimento do feminicídio, nos assassinatos promovidos por brigas banais ou discordância política – como a morte recente do cinegrafista Thiago Leonel Fernandes da Motta, no Rio de Janeiro.
No entanto, é importante dizer isso – sobretudo em plena Sexta-feira da Paixão: o ódio como forma de fazer política e de atuar socialmente não é uma novidade no Brasil. Ainda que tenhamos vivido recentemente a era do “gabinete do ódio”, é preciso reconhecer que tal gabinete encontrou ressonância em parcela da sociedade brasileira, alimentando e sendo alimentado pela besta-fera. Isso parece muito estranho em um país que foi forjado na ideia de ser uma nação pacífica, harmoniosa e multirracial – uma espécie de cadinho do mundo. E talvez parte do problema esteja exatamente nisso: a maneira como entendemos o Brasil e nos reconhecemos como brasileiros, nos impede (propositadamente) de uma percepção mais acurada do que também é o Brasil.
Vivemos num Brasil que destila ódio. E esse ódio tem um longo lastro.
Pode parecer um tanto apocalíptico dizer isso, mas a produção histórica está aí, para não nos deixar mentir.
Crise de identidade
Se recuperamos em parte os antecedentes dos dois últimos casos de ódio, veremos que o pressuposto da supremacia branca está presente em ambos. Há quem possa me chamar de identitarista. Embora ache que esse termo reduz o debate, não fugirei dessa alcunha, porque acredito que o que vivemos é também (ou acima de tudo) uma crise de identidade. Há uma espécie de silêncio tácito nessa cultura de ódio, que defende que todos os não brancos sejam entendidos como seres inferiores, e que justamente por isso são receptáculos do ódio e, portanto, passíveis de serem eliminados, independentemente da idade que tenham.
Digo e repito: nossa cultura do ódio não começou em 2018. Ali ela só passou a mostrar sua cara mais feia. Precisamos de múltiplas e combinadas ações para desmontar essa rede e esse sentimento identitário. Porque o ódio cria laços, constrói relações. Infelizmente as pessoas se reconhecem no ódio, e chegam a defender pertenças pátrias a partir desse sentimento. E esse reconhecimento que acompanha nossa história, agora é alimentada por redes que escapam aos órgãos de controle, aos olhares dos pais, e à própria ideia de civilidade.
Já sabemos que as democracias morrem… de morte morrida e de morte matada. Já estivemos por um fio em muitos momentos. E o que sempre nos salvou foi o exercício amplo e crítico da cidadania.
É profundamente sintomático que os últimos dois episódios de violência e ódio tenham ocorrido em escolas. Esse sintoma também é um sinal, um indicativo de que, mais do que nunca, precisamos olhar com mais cuidado e atenção para esses espaços. E aqui, o sujeito da frase é a primeira pessoa do plural: nós, sociedade, precisamos cuidar e ressignificar nossas escolas. Que possamos construir espaços escolares que sejam, efetivamente, lugares de celebração da diversidade, do respeito, do debate, da busca de conhecimento, da alegria, da saúde e da vida.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
Ataque mais recente, em uma creche em Blumenau, deixou quatro crianças mortas. Foto: Vinicius Bretzke /REUTERS /DW