Os primeiros 100 dias de governo foram marcados pela reação ao golpe, retorno de políticas sociais, resgate do povo yanomami e a suspensão das privatizações e o novo ensino médio. Mas para continuar nesse ritmo, Lula vai precisar mobilizar as ruas – ou o bolsonarismo nos ameaçará novamente.
Na Jacobin
A atividade duplica a força
A atividade faz mais fortuna do que a prudência
(Ditados populares portugueses)
Não foram três meses “sem emoção”. Lula teve duas posses. Em primeiro de janeiro assumiu a presidência diante de uma emocionante mobilização que levantou a bandeira “sem anistia” para Bolsonaro. Mas o mandato começou no final da tarde de 8 de janeiro quando respondeu com firmeza à semi-insurreição golpista que durante horas transformou Brasília num cenário de atrocidades caóticas. A relação política de forças mudou em função da vitória eleitoral, e o governo teve uma previsível “lua de mel”. “Vivemos para ver” a mídia burguesa, em especial, a Globo apoiando Lula.
O governo é o poder mais importante no desenho do regime presidencialista: os ministros dos tribunais superiores são um poder não eleito, indicados pela presidência e confirmados pelo Senado, e o Congresso é uma instância onde o poder está fragmentado pela representação de distintos interesses de classe. A derrota de Bolsonaro abriu um novo momento, mais favorável, evidentemente. A presença de Lula na presidência, mas à frente de um governo de Frente Ampla, com Simone Tebet como ministra, representação da ala do MDB de Renan Calheiros e da família Barbalho do Pará, compromisso de Kassab do PSD, e até do União Brasil de ACM Neto estabelece limites claros para as urgentes transformações necessárias.
A temperatura na luta de classes
Um novo momento na conjuntura não equivale a uma nova situação da luta de classes. A relação social de forças ainda não mudou, como podemos observar pelo ambiente dentro das grandes empresas, e constatar pelas pesquisas de opinião. Nas fábricas e nas escolas, nos bairros e nas famílias permanece a fratura política. Na métrica das redes sociais o engajamento da esquerda ampla até diminuiu um pouco.
A capacidade de mobilização da esquerda é baixa. Ainda assim, existiram alguns pequenos, mas animadores sinais de uma recuperação do estado de espírito, em setores de vanguarda, ou em algumas categorias de trabalhadores melhor organizados. O mais importante foi a mobilização nacional de 9 de janeiro, um dia depois do ensaio golpista de Brasília que, em São Paulo, superou 50 mil na Paulista. Também, a Plenária da CNTE dos sindicatos de professores do ensino público, que indicou um dia nacional de greve pela revogação da reforma do ensino médio, ou a greve dos metroviários paulistas pelo abono salarial foram indícios de uma nova disposição de luta. Mas o que prevalece ainda é um sentimento de alívio pela derrota de Bolsonaro e as expectativas em Lula estão intactas, mas são baixas.
“Faltou uma avaliação lúcida da gravidade máxima
do significado do levante golpista.
Um combate frontal foi evitado.”
A agonia, e o sentimento de exaustão acumulados em anos passou, porém, não cessou. As pesquisas recentes do Ipespe e Datafolha sinalizam que o governo mantém suas posições: 38% aprovam a gestão. 29% reprovam e 30% consideram o governo regular. Ou seja, apesar do desgaste de Bolsonaro com o escândalo da apropriação inexplicável das joias sauditas, a extrema direita mantém influência sobre um terço da população. Isso quer dizer que a massa da burguesia, alguns milhões de proprietários, e uma maioria das camadas médias continuam hostis ao governo. O governo não avançou, nem, tampouco, perdeu posições.
Reação ao golpe
Existiram, no entanto, flutuações na conjuntura. O governo se fortaleceu com a derrota do ensaio golpista de 8 de janeiro, mas perdeu o “momento de oportunidade”. A resposta de Lula, ainda em Araraquara, decidindo a intervenção federal na segurança de Brasília, exigindo a presença dos governadores, incluindo os bolsonaristas, em marcha contra os golpistas até o STF e, na sequência, demitindo o comandante do Exército, foi enérgica.
A extrema direita se dividiu, até porque Bolsonaro saiu, defensivamente, do Brasil, se omitindo da presença na transmissão do poder, uma semana antes. Mas não houve uma convocação de rede nacional de TV e rádio, nem chamado à mobilização popular nas ruas. A aposta em uma resposta “a frio”, estritamente, institucional ao golpismo foi uma vacilação grave. Foi polêmica até a convocação às ruas no 9 de janeiro.
“A prisão de Bolsonaro,
sem uma mobilização popular de massas,
não será possível.”
Faltou uma avaliação lúcida da gravidade máxima do significado do levante golpista. Um combate frontal foi evitado. As semanas seguintes, em janeiro, foram as melhores do mandato, mas a oportunidade foi, parcialmente, perdida. O que mais pesou, na sequência, foi a sequência da desaceleração econômica que vinha do final de 2022.
Os primeiros 100 dias
As medidas progressivas os primeiros cem dias, no “varejo”, impressionam, até despertam alento, mas foram parciais e insuficientes, porque não veio o esperado “revogaço”. A PEC da transição garantiu um orçamento que garante o Bolsa-Família redesenhado, o retorno da merenda escolar, um pequeno aumento do salário mínimo, e algum investimento no Minha casa, Minha vida.
A prevista privatização dos Correios foi interrompida. Mais impactante foi a decisão de colocar a força militar em campo para expulsar os garimpeiros de Roraima, diante da tragédia humanitária do povo yanomami. Despertaram esperanças as ações de repressão às empresas que exploravam trabalhadores, impondo condições análogas à escravidão, assim como foi recebida com entusiasmo a suspensão da reforma do ensino médio.
A anulação da facilitação de compra de armas, delegacias de mulheres abertas 24hs, respeito ao piso nacional da enfermagem, os aumentos nas bolsas de estudo da pós-graduação, o anúncio de uma reposição de 9% para os salários do funcionalismo federal, congelados há sete anos para a maioria, assim como a retomada do plano nacional de vacinação, foram medidas emergenciais bem vindas.
No entanto, o “revogaço” ficou por menos da metade. A privatização da Eletrobrás, por exemplo, não será revista. A privatização do metrô de Belo Horizonte não foi suspensa. Se a “herança maldita” não for anulada, o bolsonarismo pode voltar.
Neoliberalismo “com desconto”
A maior batalha destes cem dias foi a luta contra a intransigência do Banco Central. Campos Neto manteve as taxas de juros no patamar de 13,75% ao ano, os juros reais mais elevados do mundo. Nesta iniciativa o governo conseguiu apoio de 80% da população segundo as pesquisas. Não existe qualquer perigo de moratória da dívida pública. A inflação permanece em dinâmica de queda. Não há pressão de demanda com a queda do salário médio. Campos Neto decidiu desafiar o governo eleito, apoiado pela fração capitalista mais concentrada para pressionar Haddad.
O objetivo do Banco Central era exigir uma estratégia de ajuste fiscal que garanta superavit primário. Haddad revelou habilidade nas negociações na apresentação do arcabouço fiscal. Mas o mais importante é que conseguiu apoio da fração mais poderosa da classe dominante, como Palocci em 2003. Trata-se de um plano engenhoso, mais flexível que o atual Teto de Gastos, mas é neoliberalismo “com desconto”.
“A distribuição de renda só é possível se os ricos pagarem, qualitativamente,
mais impostos sobre renda e patrimônio,
e se houver crescimento.”
Na nova regra fiscal o teto de gastos será de 2,5% acima da inflação. No teto herdado do governo Temer os gastos estavam congelados e, durante dez anos, nunca podiam crescer acima da inflação. Era impossível, e nem Bolsonaro pode cumprir. Mas a estratégia, não há como “dourar a pílula”, repousa em uma aposta perigosa: um pacto com a classe dominante que depende de dois fatores chaves. Um aumento da receita sem aumento de impostos e a capacidade do governo de justificar paciência em sua base social. Dilma tentou algo semelhante com Joaquim Levy e foi um desastre. A questão estratégica permanece sem solução. O Brasil está completando uma década perdida de estagnação, andando de lado.
O destino histórico da esquerda é a luta contra a desigualdade social. O papel do governo Lula é ser uma alavanca para a erradicação da miséria. A distribuição de renda só é possível se os ricos pagarem, qualitativamente, mais impostos sobre renda e patrimônio, e se houver crescimento. Investimentos dependem da iniciativa do Estado, dos capitalistas brasileiros ou da “chuva de dólares”. O otimismo de Haddad parece insensato.
“Presidencialismo de coalizão”
A tática de apoio a Lira para presidência da Câmara dos Deputados em troca da PEC de Transição parece ter sido, até agora, um acordo ruim. Nenhuma medida provisória foi aprovada em três meses. Não satisfeito com um mandato de mais dois anos, Lira “subiu no cavalo” do alto dos seus mais de 450 votos e resolveu confrontar o Senado.
O argumento para o apoio a Lira foi a necessidade de garantir governabilidade em um Congresso em que a esquerda é minoritária. Obedeceu a um cálculo de que seria inexorável algum grau de negociação com o Centrão para isolar a bancada bolsonarista, e impedir a paralisia do governo.
O desenho da estabilidade do regime “presidencialismo de coalizão”, quando no Congresso vinte partidos têm deputados, impõe uma negociação ininterrupta. Ou se disputa votos a cada projeto, ou se constitui uma maioria parlamentar, mesmo que não haja acordo com um programa de governo. Ambos os caminhos são complicados. Mas, se a relação de forças política no Congresso é menos volátil que a relação de forças na sociedade, não é impermeável à pressão social. Uma escolha foi feita, outras eram possíveis. Cem dias deixaram claro que Lula decidiu governar “a frio” e não “a quente”. Preferiu a aliança com Lira ao desafio de uma permanente luta pública para garantir apoio de massas.
Os militares e a extrema direita
O problema militar permanece intocado e, embora haja relativa autonomia, mantém relação com o destino de Bolsonaro. As Forças Armadas foram um dos pilares do governo de extrema direita. Lula afastou o comandante do Exército, mas manteve Múcio à frente do Ministério da Defesa.
Três questões de fundo, talvez, incontornáveis, parecem decisivas: (a) a revisão da anistia de 1979 e o início da responsabilização jurídica dos crimes da oficialidade; (b) a desmilitarização das polícias militares; (c) a revisão dos incríveis privilégios arcaicos e anacrônicos da alta oficialidade, em especial, os Tribunais Militares.
Estivemos quatro longos anos, dois de pandemia, com falta de oxigênio. Respiramos, nestes cem dias. Mas Bolsonaro ainda está, politicamente, “vivo’ e não deve ser subestimado. A derrota eleitoral de outubro não enterrou o bolsonarismo. A extrema direita continua sendo a maior corrente política de oposição ao governo nas ruas e nas redes. Não é alimentada, somente, pelo ressentimento social e ideologia fascistizante. Há um caldo de cultura que “naturaliza” a violência. O horror da onda de ataques insanos nas escolas é, tragicamente, uma expressão.
“A ‘normalização’ do bolsonarismo como uma legítima corrente política,
que já se insinua na mídia burguesa,
é uma aberração.”
O desenlace dos processos na justiça contra Bolsonaro é, por enquanto, incerto, ainda que a hipótese mais provável, depois de 8 de janeiro, seja a perda de direitos políticos. Se confirmada, a impossibilidade de concorrer a eleições, abrirá uma disputa pela sua substituição. Bolsonaro permaneceria sendo a liderança mais importante do movimento político-social da extrema direita, e teria a última palavra na escolha. A “normalização” do bolsonarismo como uma legítima corrente política, que já se insinua na mídia burguesa, é uma aberração. A prisão de Bolsonaro, sem uma mobilização popular de massas, não será possível. Mas a sua punição é uma condição incontornável da defesa das liberdades democráticas. Qualquer vacilação diante do neofascismo será fatal.
Geopolítica
O contexto mundial não é favorável para o governo Lula, muito diferente de vinte anos atrás, quando prevaleceu uma atitude muito amigável dos governos dos países centrais com a presidência de um operário moderado.
São quatro os fatores chaves no sistema internacional de Estados: 1) a guerra na Ucrânia continua sem solução militar, portanto, indefinida; 2) a dinâmica econômica no mercado mundial parece ser de desaceleração com viés de contração, apesar do crescimento chinês acima de 5%; 3) na luta pela preservação de sua supremacia, os EUA exigem um alinhamento imediato contra a China; 4) a crise do aquecimento global assumiu emergência mais dramática pelo impacto crescente de eventos extremos.
Ainda não está claro qual será a linha da diplomacia brasileira. Há quem defenda uma aproximação com Washington, como se viu pelo voto na ONU de condenação da Rússia pela guerra. Há quem defenda uma aproximação com a China, em função de uma interpretação campista de que Beijing seria o eixo de um movimento de países do “Terceiro Mundo”. Há quem, finalmente, defenda uma aproximação com a União Europeia, na esperança de que Paris/Berlim se desloquem, algum dia, da pressão norte-americana na OTAN. Uma priorização de relações na América Latina parece ser, no entanto, o caminho mais animador.
O que fazer
O desafio estratégico mais sério que fica sem solução depois de cem dias é a capacidade de iniciativa do governo. A relação social de forças desfavorável não pode ser, eternamente, um álibi. O que remete ao protagonismo de Lula.
O papel pessoal de Lula é intransferível e exige, além de intuições certeiras, um pouco de “arte”. Sem ele a possibilidade de mobilizações populares de massa se reduz. Os movimentos sociais, sejam sindicais ou populares, de mulheres, negros, estudantes, LGBT’s ou ambientais só conseguem colocar em movimento setores de vanguarda.
Existe ainda o perigo de um adesismo, por deslumbramento ou triste oportunismo, como nos mandatos de vinte anos atrás. Só que o mundo mudou, e o Brasil mudou demais. As lições do golpe de 2016 não podem ser esquecidas. Ativismo, ativismo, ativismo. A “frio”, nada é possível. Ou a governabilidade, assediada pelo Centrão, será a “quente”, ou o bolsonarismo vai nos ameaçar de novo.
VALERIO ARCARY é historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor do livro “O Martelo da História. Ensaios sobre urgência da revolução contemporânea”(Sundermann, 2016).
Foto: Tânia Rêgo | Agência Brasil