Associação de exportadores enaltece “carinho” das mulheres com as frutas, mas irregularidades e funções exaustivas dão o tom das vagas de trabalho femininas
Por Mariana Costa, com colaboração de Maíra Mathias, enviadas à Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, em O Joio e O Trigo
Tudo parece árido e inerte, até os primeiros brotos salpicarem com pontinhos verdes os galhos secos das parreiras. Em três meses, a paisagem já terá mudado: as plantas logo estarão carregadas de folhas e uvas.
As mudas crescem agarradas a uma estrutura de madeira e arames, formando extensos corredores. O ciclo começa com a desbrota. Brotos inférteis se intercalam ao longo dos galhos e devem ser retirados, um a um, com as mãos. Assim, a seiva se concentra naqueles que vão vingar e render frondosos cachos – alguns com até um quilo, dependendo da variedade. Concluída a desbrota vêm o livramento e o raleio. Os cachos devem ser soltos para que não se enrosquem e ganhem espaço para crescer. Folhas que possam eventualmente encostar nas frutas e causar manchas devem ser retiradas.
Tudo é feito manualmente com ajuda de, no máximo, uma tesoura. Cada cacho recebe uma atenção individual, cuidadosa e delicada para que as uvas atinjam seu máximo dulçor e peso. Uma vez terminada a colheita, as parreiras são podadas. Dali a poucos dias, novos brotinhos surgirão. E começa tudo outra vez.
“É assim, nunca acaba”, brinca a aposentada Maria Doloroza dos Santos, de 70 anos. Um sentimento nostálgico se instala enquanto ela caminha entre as parreiras. Foram dez anos de trabalho com as uvas em Maria Tereza, zona rural de Petrolina, em Pernambuco.
Petrolina e Juazeiro, no Vale do São Francisco, são estrelas de um mercado em ascensão: a fruticultura de exportação. É de lá que saem grande parte das uvas e mangas que serão despachadas para supermercados mundo afora e para o Brasil.
A presença de mulheres é forte em culturas como a uva de mesa, que requerem habilidade e delicadeza no trato com as parreiras. Atividades como raleio, desbrota e livramento são feitas quase que exclusivamente por mãos femininas.
Elas também são maioria nos packing houses, setor onde uva, manga, melão, mamão e melancia são embaladas e refrigeradas para atender aos altos padrões dos mercados internacionais.
Fundamental para um setor que vem se consolidando e conquistando espaço cada vez maior no agronegócio exportador, o trabalho feminino na produção de frutas é repleto de contradições entre discurso e prática.
É o que mostramos na série especial “No Rastro das Frutas de Exportação”. Percorremos os dois maiores polos de exportação do Brasil: a região do Vale do São Francisco, entre Pernambuco e Bahia, e cidades do Baixo Jaguaribe e da Chapada do Apodi, entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, de onde saem melões, mamões, melancias e outras frutas enviadas ao exterior.
Reorganização da vida
Donas de casa até então acostumadas com o trabalho doméstico, também eram responsáveis pela lida em pequenas roças de milho, feijão e mandioca, pelo cultivo de hortaliças e pelo manejo de plantas medicinais e de abelhas. Até que viram na fruticultura a oportunidade para entrar no mercado de trabalho e assim proporcionar uma vida melhor para suas famílias.
Doloroza foi uma dessas mulheres. Vivia em Salgueiro, cidade com pouco mais de 60 mil habitantes no sertão pernambucano, a duzentos quilômetros de Petrolina. Sobrevivia lavando roupas para fora, costurando e cozinhando. Foi mãe solo dos cinco filhos. Aos 45 anos, sentiu que algo precisava mudar. “Quando passei em Petrolina, vi tudo verdão. Pensei: oxe, eu vou voltar pra cá, vou voltar pra esse lugar”, lembra. “E foi quando vim e fiquei. Só voltei pra Salgueiro pra vender minha casa.”
Foram dez anos de trabalho como safrista, quando se é contratado temporariamente apenas nos meses de colheita.
A organização do trabalho na fruticultura se divide entre assalariados temporários contratados por safra e aqueles que se tornam permanentes. As safristas ficam empregadas entre três e cinco meses por ano. No tempo restante, perdem a renda e passam a viver com a incerteza da convocação para a próxima safra.
Há ainda os diaristas, que atendem a pequenos e médios produtores que não conseguem atender aos altos padrões de qualidade exigidos para exportação. A presença das mulheres é forte em todas essas modalidades de trabalho.
Ao se tornarem proletárias rurais, terão de lidar com uma total reorganização da vida pessoal, familiar e doméstica.
Mesmo com muitas dificuldades, Doloroza conseguiu construir sua própria casa e criar sozinha os cinco filhos – todos trabalham com as frutas desde adolescentes. Uma parreira adorna o portão de acesso da casa onde vive. “É pra lembrar dos tempos da uva”, gaba-se a matriarca da família. Ensinou os filhos, a nora e muitas outras mulheres a lidar com as uvas. Há um sentimento de orgulho e gratidão em seu relato.
A moradia de tijolo aparente, dois quartos, sala e cozinha fora construída, literalmente, por suas próprias mãos. No quintal que ladeia a residência, pilhas e pilhas meticulosamente organizadas e limpas com materiais recicláveis que ela recolhe e vende para complementar a renda da aposentadoria.
Antes de nos despedirmos, Doloroza nos convida a entrar em seu quarto. Aponta para uma cama de casal grande e confortável. Ri do nosso inevitável olhar de surpresa ao acionar um sistema de massagem que faz todo o colchão tremer. Um pequeno grande luxo que destoa da simplicidade geral da casa.
Novos modos de viver e trabalhar
A trajetória da família de Doloroza resume uma nova morfologia do trabalho e dos modos de viver que trouxe profundos impactos na vida das mulheres, inclusive entre aquelas que não atuam diretamente na fruticultura.
Ao longo dos últimos trinta anos, o avanço da agricultura irrigada e a reorganização do capital em grandes empresas, muitas estrangeiras, provocaram um duplo processo de desterritorialização e proletarização de homens e mulheres do semiárido. As origens e a consolidação dessa nova ordem produtiva remontam a uma ordenação territorial e institucional criada pelo Estado brasileiro.
Sem acesso a terra e água, com dificuldades cada vez maiores para se manter na agricultura familiar, essas pessoas ficaram reféns de um setor que cresce com base no emprego de mão de obra mal remunerada e migrante, concentração de terra e água, e exaustão dos recursos naturais.
Essa realidade laboral atinge especialmente as mulheres, considerando a centralidade delas na organização familiar e doméstica em um ambiente rural ainda marcado pelo machismo e por uma divisão bastante desigual das tarefas.
Isso se reflete no esforço e na expectativa para que os filhos estudem e tenham outras oportunidades fora da fruticultura.
A pouca ou nenhuma mobilidade social e econômica entre gerações de uma mesma família contrastam com a dimensão da riqueza que vem sendo gerada no semiárido, em mais um exemplo emblemático da lógica de concentração de riquezas e socialização de perdas típica do capitalismo à brasileira.
Gender washing
Criada em 2014, a Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas), entidade que reúne os principais exportadores de frutas brasileiras, vem tendo sucesso em unir e consolidar as demandas do setor. As exportações de frutas no Brasil passaram a apresentar resultados crescentes em volume e faturamento, ano após ano.
Em meio à pandemia e à alta no preço dos alimentos em geral e das frutas em particular, os exportadores comemoraram dois anos seguidos de resultados recorde em faturamento e volume durante o governo de Jair Bolsonaro. Com o real desvalorizado, produtores tiveram lucratividade maior nas vendas ao mercado externo. Houve também aumento na demanda por frutas durante a crise sanitária.
Não é por acaso que a presença da mão de obra feminina é constantemente enaltecida pelos exportadores de frutas. O destaque é estratégico para um setor que atende mercados cujas sociedades conquistaram maior avanço em termos de igualdade de gênero. Notadamente, redes de supermercados de União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos, os maiores compradores de frutas brasileiras.
“A fruticultura nos saboreia com uma novidade boa que é as mulheres. As mulheres estão nos ajudando bastante e em todos os setores. Desde a engenheira agrônoma, até a mulher que embala como ninguém com carinho, com dedicação e jeito pra que possa chegar no exterior com qualidade”, afirmou em entrevista, Guilherme Coelho, presidente da Abrafrutas e proprietário de uma fazenda que exporta uvas no Vale do São Francisco.
Há um esforço em criar a imagem de uma atividade que adota práticas sustentáveis, gera milhões de empregos e proporciona a inclusão de mulheres no mercado de trabalho. “Numa casa geralmente o homem está fazendo seu trabalho, seja no agro ou fora do agro, mas você tem outra oportunidade, outro salário mínimo que é da sua mulher. Faz uma família ter uma renda mais robusta e qualidade de vida melhor, que é o que nós queremos”, acrescentou Coelho.
Nos cerca de dois mil quilômetros rodados e em dezenas de entrevistas realizadas ao longo de duas semanas de viagem, vimos uma realidade bastante distinta daquela descrita pelo presidente da Abrafrutas. Os relatos das mulheres que trabalham na fruticultura, incluindo funcionárias de grandes empresas exportadoras, foram de preocupação e dificuldades em arcar com as despesas básicas, como alimentação e roupas para as crianças.
A grande maioria dos agricultores e agricultoras assalariados recebe um salário mínimo e nada mais. Muitas dessas famílias não consomem as frutas que produzem e estão vivendo em algum nível de insegurança alimentar.
Essa contradição também se faz evidente na comparação entre as condições de vida e rendimentos das mulheres que produzem e das mulheres que consomem essas frutas. Abordamos essa disparidade no episódio especial do Prato Cheio “No Rastro das Frutas de Exportação”.
Entramos em contato com a Abrafrutas, mas não fomos atendidos.
A uva de mesa também é o cultivo que mais emprega mulheres no campo. Além de ser uma das principais frutas exportadas pelo Brasil, é a cultura de maior valor agregado quando comparada às demais cultivadas nas duas maiores regiões produtoras do semiárido: a produção total somou R$ 1,8 bilhão em 2021, segundo o dado mais recente da Produção Agrícola Municipal, do IBGE.
A Abrafrutas argumenta que elas são maioria entre os 5 milhões de empregos supostamente gerados pelo setor. O problema é que o número não é verdadeiro: usando dados da Embrapa, chegamos a 440 mil empregos em 2021, como expusemos em outra reportagem da série. Dentre esses 440 mil, é difícil saber ao certo quantas mulheres são efetivamente empregadas: não há dados oficiais disponíveis setorizados para a fruticultura.
Sub-representadas também no âmbito patronal
Enaltecer o trabalho feminino na fruticultura também é estratégico para os crescentes esforços em valorizar a presença das mulheres no agronegócio brasileiro, uma atividade ainda fortemente dominada por homens e atrelada a um certo ideal de masculinidade que hoje vem sendo colocado em xeque.
E é aqui que encontramos mais um aspecto controverso: as iniciativas que promovem mulheres, em geral, miram em proprietárias e gestoras de grandes fazendas. Exemplo disso é o Prêmio Mulheres do Agro, patrocinado pela Bayer, e atualmente em sua quinta edição.
Ainda assim, as mulheres seguem sub representadas mesmo no âmbito patronal e também nas entidades que representam os interesses do setor. Na fruticultura, são os homens que estão à frente das grandes empresas exportadoras. Ter mulheres no comando dessas fazendas poderia, numa perspectiva otimista, trazer um olhar mais sensível para as particularidades do trabalho feminino.
Rotina que começa antes de o sol raiar
A integração de fazendas exportadoras a mercados internacionais exigentes trouxe relativos avanços para os trabalhadores, como o alto índice de formalização dos vínculos trabalhistas, a retirada de moradias nas instalações dessas empresas e regras mais rigorosas no manejo dos agrotóxicos – esta, uma atividade exclusivamente masculina.
Filha de Doloroza, Elaine Maria dos Santos Oliveira começou a trabalhar aos 14 anos, em uma época em que era comum ter adolescentes na labuta nas roças. Aos 35, acumula quase duas décadas de trabalho com as frutas.“A rotina é acordar quatro, quatro e meia e fazer comida. Leva o menino nas casas das babás. Vai trabalhar, volta, pega menino”, conta Elaine, descrevendo um cotidiano comum a tantas mulheres e mães, mas especialmente pesado para aquelas que trabalham no campo, sob o sol forte do semiárido.
É preciso levar todas as refeições, desde o café da manhã até o lanche, inclusive o cafezinho para ajudar a despertar. As fazendas oferecem, na melhor das hipóteses, cesta básica. A pauta da alimentação se repete, ano a ano, sem grandes avanços, nas negociações anuais entre sindicato e categoria.
Essa rotina cíclica e desgastante se repetiu nas entrevistas que fizemos com essas trabalhadoras ao longo de duas semanas de viagem. Ao retornar pra casa, começa tudo outra vez: preparar o jantar e cuidar da casa. Para as que são mães, é o único tempo que resta para os filhos.
Mãe de quatro adolescentes e crianças, Elaine não teve direito à licença-maternidade. “Sempre deixei com as babás, desde quando nasciam. Nunca teve esse negócio de passar quatro, seis meses até parar de mamar, não. Eu mesma tirava do peito e ia trabalhar. Não tinha como porque quem trabalhava era só eu mesmo.”
Hoje o mais velho está com 15, e o caçula, com três anos. Embora prefira a roça, Elaine está concluindo cursos de beleza e estética, área em que sonha trabalhar. O mais novo frequentou as aulas a tiracolo. Enquanto o sonho não se realiza, segue trabalhando como diarista na uva.
“A estrutura da mulher não aguenta”
Elaine aguardava diagnóstico para problemas ginecológicos que tornaram difícil seguir com o trabalho no campo. “Segurar esse corpo em pé de sete da manhã até quatro horas da tarde não é fácil. Não aguento mais”, lamenta.
Nenhuma empresa cujos trabalhadores entrevistamos oferece plano de saúde ou qualquer tipo de assistência aos que adoecem. Isso nem sequer entra na pauta de negociações anuais entre empresas e sindicatos, uma vez que é preciso lidar com questões ainda mais elementares na vida desses trabalhadores e trabalhadoras.
Todos vão recorrer ao SUS para lidar com agravos causados, na grande maioria das vezes, pelo trabalho insalubre e por uma rotina que não permite descanso. Mesmo cidades ricas como Petrolina não dispõem de uma rede de saúde pública que dê conta de atender às necessidades dessa população.
Nora de Doloroza, Diana de Souza Lopes, de 42 anos, era dona de casa quando começou a trabalhar com as frutas. Aprendeu com a sogra a lidar com as uvas. Empatia, sororidade e amizade são características presentes nas relações de trabalho entre mulheres. “A gente veio de lá de Salgueiro. Minha primeira ficha foi em 2007. De lá pra cá, não parei mais, não. Ela me levava junto pra roça e me ensinou. Graças a ela aprendi um montão de coisas”, lembra.
Diana trabalhava de carteira assinada no mesmo produtor havia nove anos. Quando a encontramos, em setembro de 2022, ela tinha acabado de fazer um acordo para ser demitida. O objetivo era usar o dinheiro para fazer uma histerectomia – cirurgia de retirada do útero. Ela aguardava para fazer o procedimento pelo SUS desde 2019.
De lá pra cá, os miomas cresceram, o útero aumentou três vezes de tamanho e os incômodos se tornaram difíceis de suportar. “Você vê, a gente está lá no campo colhendo. Depois do campo, vai pro pack embalar a uva. O dia todinho em pé. A gente não aguenta. A estrutura da mulher não vai aguentar.”
Empregada por um produtor considerado médio, teve sorte em conseguir chegar a um acordo. Muitas empresas – incluindo grandes exportadoras certificadas – obrigam o funcionário a se demitir quando adoece para não arcar com as verbas rescisórias. O valor que recebeu na demissão acordada com o patrão foi usado para fazer os exames pré-operatórios em clínicas particulares, dada a demora em ter acesso a esses serviços no SUS.
Diana não conteve as lágrimas. Seu maior medo não é a mesa de cirurgia, mas sim não poder retornar ao trabalho e com isso prejudicar a criação dos filhos – uma moça de 21 anos, um rapaz de 18 e uma menina de 12.
Era dela a única renda regular da família. Duas décadas de trabalho com uvas, mangas e goiabas renderam ao marido, Manuel Ricardo Santos Oliveira, uma hérnia de disco e a aposentadoria precoce por invalidez, aos 37 anos. Assim como a irmã Elaine, Manuel começou a trabalhar aos 15 anos.
Ver os filhos formados é seu maior sonho. Nenhum deles quer trabalhar na fruticultura.
Punidas quando se tornam mães
Enaltecidas pelo setor, as mulheres trabalhadoras também pagam um preço alto em sua vida pessoal e familiar. Pouco recebem em troca. Um exemplo dessa contradição entre a imagem criada para a venda dessas frutas no exterior e a realidade concretamente colocada é a ausência de benefícios ou mesmo a violação a direitos trabalhistas quando elas se tornam mães.
Foram vários relatos de trabalhadoras que sofreram retaliações por se ausentar para levar os filhos ao médico ou acompanhá-los em internações. Ter crianças pequenas em casa torna mais difícil a permanência neste mercado de trabalho.
“O trabalho da mulher na fruticultura é algo muito desafiador. O homem não fica em casa cuidando da criança. Dificilmente vai acompanhar ao médico ou à escola ver o que está acontecendo quando é solicitado. Então culturalmente isso recai sobre as mulheres. Nós precisamos avançar muito nessa questão”, avalia José Manoel dos Santos, o Zezinho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Juazeiro (BA).
Acompanhar filhos menores de idade em consultas ou internações é um direito garantido pela legislação. Mas as faltas, mesmo que justificadas, são muito mal vistas pelas empresas. A exigência é produtividade máxima.
“Pra eles um atestado é coisa do outro mundo, mas pra gente que precisa não é. Principalmente pra quem tem filho. Eles falavam ‘vixi, de novo?’ Sempre diziam, sabe? Atestado de novo?” critica Joana*, de 36 anos, ex-funcionária de uma grande empresa produtora de frutas orgânicas para exportação em Jaguaruana, no Ceará.
Em uma das ocasiões em que precisou se ausentar do trabalho, a filha sofreu uma queda e precisou colocar pinos nos braços. As consultas ao ortopedista em Russas, única cidade onde conseguiu atendimento, tinham de ser acompanhadas pela mãe. “Ela sofreu um bocado. E eu também.”
Joana hoje voltou a ser dona de casa. Vem de uma família de agricultores, cresceu ajudando o pai nas chamadas culturas de inverno (período chuvoso no sertão): milho, feijão, algodão. Trabalhou três anos e meio nesta empresa, e saiu por vontade própria, em outubro de 2021. Os filhos têm entre 17 e 10 anos.
O marido e a filha de Joana ainda trabalham lá – por este motivo não a identificamos com seu verdadeiro nome.
Como a grande maioria, a necessidade de trabalhar fora apareceu após a maternidade. Um caminho para proporcionar uma vida melhor para os filhos. Mas o preço pago foi alto. “Eu saía pra Cacimba Funda pra trabalhar e deixava eles com minha mãe. Dormia na sogra porque a distância era muita. Saía na segunda de madrugada e chegava no sábado ao meio-dia, às vezes três horas da tarde. Minha menina tinha quatro anos”, lembra Joana. “Só via no final de semana. E era uma coisa rápida. Vocês sabem, né? O sábado passa rápido, o domingo mais ligeiro ainda. Passava um dia e meio com eles.”
Conseguir trabalhar na mesma cidade onde vive amenizou o afastamento dos filhos, mas ela seguia dependendo da mãe. “A empresa é boa, mas a minha mãe já estava com eles desde quando eu trabalhava em Cacimba Funda. Tinha que dar uma folguinha também pra ela. Menino pequeno dá trabalho. E eu queria vivenciar meus filhos”, conta Joana.
Hoje se ressente de não trabalhar mais. Sente falta do convívio com as colegas e da renda garantida, ainda que insuficiente para arcar com todas as despesas. Não consegue mais fazer uma diária com as frutas porque não tem carro ou moto. A grande maioria das cidades rurais que produzem frutas entre o Ceará e o Rio Grande do Norte não dispõe de transporte público. Os trabalhadores têm que arcar com seus deslocamentos até as fazendas, já que as empresas também não oferecem transporte.
“Se tivessem acesso a terra e água não estariam ali”
A restrição de água e terra para a maior parte dos trabalhadores não deixa outra alternativa se não se submeter a qualquer tipo de atividade. Foi uma das conclusões do geógrafo e pesquisador Diego Pessoa Irineu de França, autor de uma tese de doutorado sobre o tema.
Em sua pesquisa, rodou por vários perímetros irrigados entre Juazeiro e Petrolina. Queria entender como era a realidade das pessoas que vivem dessa produção, para além dos dados macroeconômicos.
“Há muitos relatos de mulheres que sinalizam isso: é muito bom trabalhar, mas se tivesse acesso a terra e água não estariam ali. É o dilema em que as pessoas são colocadas. Ficam reféns desse modelo”, conclui. “Apesar das condições difíceis, Petrolina admira a grande produção, a fruticultura e a exportação. Há essa dimensão subjetiva: gente que sofre, mas enaltece o modelo como viável. Mesmo nas áreas de assentamentos rurais”, observa.
Mulheres protagonizam resistência em Apodi
Hoje o capital fruticultor mira uma região de maior disponibilidade hídrica: o lado potiguar da Chapada do Apodi. A recente conquista da abertura do mercado chinês para o melão brasileiro, em 2020, aumenta a pressão sobre territórios ainda não explorados pelas grandes exportadoras. Há a expectativa de que a atual produção dobre para dar conta da demanda da China. O melão é uma fruta que consome grande quantidade de água. Um quilo usa, em média, 196 litros.
Nessa região, a retomada do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi, conhecido como Projeto da Morte, enfrenta forte resistência de comunidades camponesas com tradições históricas e socioeconômicas próprias, ligadas à produção agroecológica e familiar. Há dez anos Apodi luta contra a chegada das grandes empresas produtoras de frutas.
“O primeiro impacto, que para mim foi muito marcante, foi ver casas de prostituição próximas a essas empresas, em zona rural. A maioria dos trabalhadores dessas fazendas de melão são homens, não se contrata mulher. Outra coisa que observamos é o fluxo de drogas. Muitas vezes para aguentar o ritmo de trabalho”, relata o presidente do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Apodi, Francisco Agnaldo de Oliveira Fernandes. Houve também incidência maior de gravidez entre meninas e mulheres nessas comunidades.
Secretária do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Apodi, Antonia Gilvana Mota Sousa, de 42 anos, era uma das lideranças presentes em um seminário que aconteceu em setembro de 2022. Centenas de agricultores se reuniram ao longo de três dias para discutir o impacto da fruticultura de exportação. “Como mãe, eu penso logo nos meus filhos. Vamos para onde? Eu vou oferecer o quê? Aqui eu tenho o meu quintal. Eu tenho a minha produção, tem o bode, tem a galinha, eu tenho o ovo, eu tenho a fruta para fazer o suco. Saindo daqui vou dar o quê pra eles comerem?”
Com mais de vinte anos de atuação sindical, Gilvana participou ativamente da formação de base entre jovens, entre as quais muitas mulheres. Ela cita exemplos fortes de protagonismo feminino que testemunhou, fruto do trabalho de conscientização feito diretamente com as agricultoras.
No mais marcante, ela conta das mais de duas mil cartas escritas à mão por mulheres e postadas para a então presidenta Dilma Rousseff em 2011, meses após a publicação do decreto que desapropriou uma área de mais de 13 mil hectares onde viviam cerca de 150 famílias de pequenos agricultores. “Cada mulher na sua comunidade fez o trabalho de formiguinha escrevendo. Mandamos pelos correios e fomos respondidas. E ela [Dilma] falou que estava do lado da vida e que estava orgulhosa por ter sido um trabalho realizado por mulheres. O nome dado foi ‘Somos todas Apodi’”, relembra.
“Chego a me arrepiar porque foi um momento de muita junção, sabe? Muito agrupamento, muita coragem. Foi um período bem crítico que as comunidades enfrentaram”, conta Gilvana.
Mas o apoio expresso na resposta às mulheres de Apodi ficou apenas no campo simbólico: as obras para a construção do perímetro irrigado se iniciaram em 2013. E foram paralisadas dois anos depois com apenas 24% da estrutura do perímetro irrigado concluída.
Atendendo ao apetite do capital fruticultor, em 2022, Santa Cruz de Apodi foi incluído no PPI, o Programa de Parcerias de Investimento do governo federal.
O setor está otimista quanto aos aumento da produção e dos resultados das exportações nos próximos anos. Ainda na fase de transição, a Abrafrutas e a Rede Nacional de Irrigantes, outra importante entidade que representa o setor, estiveram com o vice-presidente Geraldo Alckmin e puderam apresentar suas pautas: aumento das áreas irrigadas e a abertura de novos mercados.
Conciliar interesses e poderes tão distintos dá uma ideia do tamanho do desafio que o governo Lula enfrentará nos próximos anos.
*a série especial sobre fruticultura de exportação teve o apoio da Oxfam Brasil
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Filha de Doloroza, Elaine Maria dos Santos Oliveira começou a trabalhar aos 14 anos, em uma época em que era comum ter adolescentes na labuta nas roças. Hoje sonha em trabalhar com beleza e estética. Foto: Raquel Torres