Dia 17 de abril último (2023), dia internacional de luta camponesa, dia que marca os 27 anos do massacre de 21 Sem Terra em Eldorado dos Carajás, no Pará, crime hediondo que continua impune. Neste dia, no auditório Esperança Garcia, na Universidade de Brasília (UnB), em Brasília, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou o livro-relatório Conflitos no Campo Brasil 2022. Esta é a 38ª edição anual, desde 1985, de pesquisa da CPT, que faz diagnóstico dos conflitos e violência no campo. Os dados recolhidos por centenas de agentes de pastoral da CPT, tabulados e analisados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (CEDOC, da CPT), com uma equipe com competência técnica e compromisso ético com a causa do campesinato nas áreas dos conflitos agrários e socioambientais.
Foram apresentados os dados referentes à violência contra as pessoas no campo. O documento ressalta que no ano de 2022 foram registradas 2.018 ocorrências de conflitos no campo no Brasil, envolvendo 909.450 pessoas e 80.165.751 hectares em disputa. Na Amazônia Legal a CPT registrou, em 2022, 1.107 ocorrências de conflitos no campo, representando 54,86% de todos os conflitos registrados no país.
Em 2022, aconteceram 47 assassinatos (206 ameaças de morte e 123 tentativas de assassinato), por Conflitos no Campo, um crescimento de 30,55% em relação a 2021 (36) e 123% em comparação com os dados registrados em 2020 (21). Dos 47 assassinatos, seis eram mulheres, uma criança (Jonatan), de 9 anos, e seis indígenas em luta contra o agronegócio e contra os órgãos policiais e judiciários. Foram assassinados também Dom Phillips e Bruno Pereira que trabalhavam na defesa dos Povos indígenas da Terra Indígena do Vale do Javari, na Amazônia.
Entre 2013 e 2022, houve 1.935 invasões de territórios. Porém, somente entre 2019 e 2022 – os quatro anos de Governo Bolsonaro – foram registradas 1.185 invasões. No período de dez anos, 61,25% das ocorrências de invasões ocorreram nos últimos quatro anos! E mais de 37% dessas ocorrências de invasão durante este governo se deram em Terras Indígenas. A grilagem teve crescimento relevante entre 2013 e 2022. Das 1.310 ocorrências de grilagem nesta década, 659 ocorreram entre 2019 e 2022, 50,30% de todas as ocorrências do período. A pistolagem também aumentou nos últimos quatro anos. Das 1.379 ocorrências de pistolagem registradas entre 2013 e 2022, 505 ocorrências se deram no governo Bolsonaro, 36,62% das ocorrências dos últimos 10 anos.
Houve também um aumento exponencial da contaminação por agrotóxicos nos números de ocorrência de violência contra a pessoa. Em 2020, foram duas pessoas contaminadas. Em 2021, foram 71. Em 2022, o número subiu para 193 casos. Em 2022, 6.831 famílias foram contaminadas pelos agrotóxicos, um número 86% maior que o registrado em 2021 e o maior já registrado pela CPT. Esses números demonstram que o agronegócio com o uso abusivo de agrotóxico está causando uma brutal epidemia de câncer, Alzheimer e doenças respiratórias.
Em 2022, foram registrados 207 casos de trabalho análogo à escravidão no meio rural, com 2.218 pessoas resgatadas, o maior número dos últimos dez anos. Somados, o número de ocorrências de conflitos trabalhistas no campo em 2021 e 2022 representam mais de 32% do total registrado na última década. Aumento brutal. Entre 2021 e 2022, apesar de 50% dos cargos de Auditor Fiscal do Trabalho estarem vagos, houve uma explosão nos números de autuação constatando trabalho escravo. Eis um exemplo: Marinaldo Soares Santos trabalhava em uma fazenda no Maranhão quando foi resgatado pela primeira vez. Ele conta que estar perto da família tornava a situação menos penosa. Quatro anos depois, foi levado para trabalhar como “escravo” em uma fazenda no Pará, onde pensou que iria perder a sua vida. “A minha cidade não oferecia emprego para eu sustentar minha família. Encontrei um “gato”, capitão do mato da atualidade. Na fala dele a situação lá era bonita, mas na verdade não era. A pessoa não quer ver sua família passando fome, então ela vai”, relata Marinaldo, que, após o segundo resgate, começou atuar como defensor de direitos humanos.
Entre 2016 e 2022, período que vai do golpe que deu início ao desgoverno do golpista Michel Temer ao final do desgoverno do fascista de extrema direita, 27,36% dos territórios onde ocorreram os assassinatos também sofreram pelo menos uma ação de pistolagem, 15% sofreu pelo menos uma ameaça de expulsão, 9% sofreu pelo menos uma ação de invasão e 13% uma ação de grilagem. No mesmo período, em 59% dos territórios onde ocorreram assassinatos, houve também pelo menos uma tentativa de assassinato e, em 52%, houve registro de ameaça de morte. De 2019 a 2022 foram os anos mais violentos dos últimos dez anos, seguindo uma tendência iniciada já a partir de 2016, mas intensificando-a. Dos grupos sociais que sofreram as violências 55,86% têm formação sócio-histórica-cultural com raízes no campesinato.
No ano de 2022 foram registrados pela CPT um total de 225 conflitos pela água, principalmente na Amazônia e tendo os indígenas e ribeirinhos como vítimas.
Importante lembrar que para os agentes pastorais da CPT contar a cada dia os números dos conflitos e da violência no campo não é fazer um registro frio. É o serviço de alguém que está ao lado dos/as camponeses/as, sofrendo com eles/elas, mas conspirando lutas de resistência e de enfrentamento ao sistema do capital na convicção de que a mãe terra, a irmã água, a biodiversidade e toda a cultura popular jamais podem ser privatizadas como insistem o sistema do capital e seus vassalos.
Enfim, enquanto perdurar a iníqua estrutura fundiária, pautada no latifúndio e no agronegócio com monoculturas, a injustiça agrária e socioambiental se reproduzirá e se ampliará e não será possível superar as gravíssimas injustiças sociais que se abatem sobre a maioria do povo brasileiro. Conscientes disso, centenas de agentes da CPT seguem acompanhando pastoralmente o campesinato, em sua imensa pluralidade, e conspirando a democratização e a socialização da terra. Com o profeta Isaías, da Bíblia, seguimos denunciando: “Ai dos que ajuntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo, até que não haja mais lugar, de modo que habitem sozinhos no meio da terra!” (Isaías 5,8). Segundo o Evangelho de Marcos, uma pessoa que estava diante de Jesus crucificado, viu-o expirar e exclamou: “De fato, esse homem é Filho de Deus” (Marcos 15,39). Dói ver e constatar tanta violência acontecendo no Campo Brasileiro, mas somente quem tem a sensibilidade e a coragem de contemplar olho no olho os/as crucificados/as da história pode construir dias de ressurreição, de vida e liberdade para todos os seres humanos e para todos os seres vivos. Que a indignação continue nos transformando em militantes aguerridos/as para que da mãe terra brote ressurreição!