Talvez o flerte com autoritarismo na origem do acessório explique, ainda que de modo inconsciente, a implicância do cantor: ele não gosta e nem usa gravatas
Por Silviane Neno, Opera Mundi
“Tenho um peito de lata
E um nó de gravata
No coração
Tenho uma vista sensata
Sem emoção
Tenho uma pressa danada
Não paro pra nada
Não presto atenção
Nos versos dessa canção
Inútil”, Cara a Cara, de Chico Buarque
A palavra “gravata” vem do francês “crevete”, uma corruptela de “croat”, em referência aos mercenários croatas que introduziram o acessório na sociedade parisiense. Os engravatados em busca de moedas atuavam a serviço da França na Guerra dos Trinta Anos, travada no século XVII. Os pedaços de tecidos, envolvendo o pescoço dos soldados, causaram furor, apesar de algum estranhamento, e logo viraram moda em Paris. O relato está no livro francês La Grande Histoire de la Cravate (Flamarion, Paris, 1994).
Talvez o flerte com o autoritarismo na origem do acessório explique, ainda que de modo inconsciente, a implicância de Chico Buarque de Holanda: ele não gosta e nem usa gravatas.
Na última segunda-feira (24/04), no entanto, a garganta do compositor, cantor e escritor, que nunca esteve à toa na vida, foi aquecida por uma discreta gravata. Ao vê-lo com o ornamento, Lula estranhou. Antes de partirem juntos para o Palácio de Queluz, onde aconteceria a entrega do Prêmio Camões de Literatura, Chico teria dito ao presidente brasileiro que foi o porteiro do hotel onde estava hospedado quem deu o nó.
“Se meu pai já usou gravata algum dia, não me lembro. Para mim é totalmente estranho”, disse a atriz Sílvia Buarque, filha do cantor, à jornalista Lu Lacerda.
Mas afinal era o Prêmio Camões, o mais relevante da língua portuguesa, no Palácio Real onde nasceu e morreu D. Pedro I. E ele era o dono da festa, pá! E, por educação, não era o caso de quebrar o protocolo.
E Chico apareceu alinhado, na estica. A cor rosa da gravata emprestava leveza à camisa branca, sob o terno azul marinho. Se estava incomodado com o nó no pescoço, ninguém percebeu. Chico ficou bem, muito bem, do jeito que apareceu no palco.
“Foi uma escolha clássica, de quem não queria chamar muito a atenção. Mas devia ter apostado numa cor como o azul, por exemplo, para realçar os olhos”, disse o consultor em moda masculina André do Val.
A gravata do Chico deveria ser um detalhe observado apenas por especialistas em estilo. Mas não foi. Quando o homenageado da tarde nomeava alguns dos presentes, antes de começar seu discurso, riu quando saudou a primeira-dama Janja da Silva. Foram alguns segundos de entreolhares para os presentes. Muito rápido, até que todos entendessem o que viria a seguir.
Ao saudar Carol Proner e pronunciar o nome da mulher, Chico engasgou, e disparou a elegante ironia: “eu estou emocionado porque a minha mulher, a Carol, saiu do hotel hoje cedo, atravessou a rua, e foi comprar essa gravata para mim”.
Ao mesmo tempo em que demonstrava a emoção pelo cuidado de Carol, respondia com a mordacidade de um poeta ao estardalhaço da imprensa em torno da gravata comprada por Janja para Lula, numa loja de luxo em Lisboa.
Rosângela da Silva, a Janja, presenteou o marido com uma clássica gravata de seda listrada da marca italiana Ermenegildo Zegna, para ser usada na primeira viagem oficial do presidente a Portugal. Mas o fato foi tratado como absurdo. Chico fez piada.
Mas sendo quem é, do jeito que sabe fazer, mandou um recado debochado e inteligente, no esteio de um arroubo romântico. Aprendeu nos anos de chumbo, quando mandava “notícias frescas nesse disco”.
Os jornalistas trataram de fazer a conversão: em reais, a gravata de Lula teria custado em torno de R$1.000. O cartão corporativo não foi usado. Janja pagou com o próprio dinheiro. Carol trilhou o mesmo caminho.
Embora, claro, pudesse já Investir parte do valor do Prêmio Camões, de 100 mil euros, um dos mais elevados a nível mundial entre os prêmios literários. Valor suficiente para comprar 556 mil gravatas e o troco em abotoaduras. O que seria mesmo um desperdício, já que Chico não usaria nenhuma.
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Imagem: Chico Buarque mostra assinatura no diploma. Foto: Ricardo Stuckert.