No chão, está mais difícil. Por Eliane Brum

Os destruidores da Amazônia e de todos os biomas agem articulados para perder o menos possível com o novo governo e já fazem seus primeiros movimentos para a eleição de 2026

em Sumaúma

“Sem demarcação não há democracia.” Ao grito do Acampamento Terra Livre de 2023 devemos todas, todos, todes nos somar. Cada cidadão do Brasil, cada cidadão do planeta. Porque demarcar as terras dos povos originários é determinação constitucional que deveria ter sido realizada no prazo de cinco anos a partir de 1988. Porque está provado que é nas terras indígenas que a Amazônia e outros biomas estão mais conservados. Porque precisamos enfrentar a crise climática. Como as lideranças não se cansam de repetir: os indígenas são 5% da população global, mas protegem 80% da biodiversidade do planeta. Portanto, demarcação não diz respeito apenas aos povos originários, mas a toda a população humana da Terra, às outras espécies e principalmente às novas gerações, cuja qualidade de vida na única casa que temos está drasticamente ameaçada pela destruição da natureza.

Vivemos um momento de explosão de potências dos povos originários representados no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Mas cada indígena que hoje colore Brasília com sua cultura e com sua língua pode dizer quanto a situação é dramática no chão da floresta amazônica, no chão do Cerrado, no chão da Caatinga, no chão do Pampa, no chão do Pantanal, no chão do que restou de Mata Atlântica, no chão de cada enclave de natureza que resiste no Brasil protegido pelos indígenas, pelos quilombolas, pelos ribeirinhos e por toda a imensa variedade de comunidades tradicionais que vivem no território em conflito chamado Brasil.

O ecossistema degradado dos centros de poder em Brasília também é tenso para novas ocupantes como Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e Célia Xakriabá (PSOL-MG), deputada federal. Se esta edição do ATL acontece numa gestão presidencial que por enquanto tem demonstrado respeito pelos povos indígenas, carrega também a ponta afiada da flecha: agora que lideranças formadas na luta se tornaram governo, uma experiência inédita na história republicana do Brasil, os lugares se deslocam. A comemoração do novo capítulo acabou (ou está perto de acabar). As lideranças vão cobrar suas representantes – a pressão sobre os territórios exige uma urgência que um governo eleito por uma frente ampla tem dificuldade de dar.

SUMAÚMA faz jornalismo a partir da Amazônia e da perspectiva de seus povos, faz jornalismo desde o chão. É nosso dever com nossa comunidade de leitores manter um papo reto – retíssimo. A guerra contra a natureza não arrefeceu no Brasil com a entrada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no governo. Pelo contrário, como os números do desmatamento têm mostrado. Apesar de todos os esforços de ministras como Marina Silva e Sonia Guajajara, Jair Bolsonaro e sua quadrilha destruíram a estrutura do Estado como parte de sua política de ocupação de poder. Governar em terra arrasada – na Amazônia e em outros biomas literalmente – é um desafio imenso, porque não se recupera uma estrutura material, legal e humana rapidamente. Por outro lado, a crise climática avança aceleradamente por conta dessa destruição.

A questão, porém, é ainda mais dramática. Durante o governo de extrema direita, os destruidores da Amazônia repetiram uma experiência de poder só similar à experimentada na ditadura empresarial-militar (1964-1985), quando mais de 8 mil indígenas foram executados, a floresta foi rasgada por estradas como a Transamazônica e a corrupção com dinheiro e terras públicas se instalou. Nos quatro anos do governo Bolsonaro, a atual geração de grileiros, madeireiros e chefes de garimpo teve o gosto de fazer o que bem entende, apoiada pela figura máxima da República e com frequência com a máquina do Estado a seu favor – desta vez na democracia. Dessa experiência não se esquece.

A vitória de Lula foi apertada. Em parte, porque a máquina do Estado foi usada para boicotar os votos ao petista. Mas não só. O bolsonarismo vai muito além do próprio Jair Bolsonaro e, por mais que muitos preferissem negar, representa uma parte considerável do Brasil. E o que representa segue muito ativo. Para quem vive no chão da Amazônia, neste momento o risco é maior do que nos anos anteriores. A base bolsonarista, parte dela já se descolando de Bolsonaro e buscando outros representantes, está disposta a manter o poder nos quatro anos do governo de Lula e já começa a se movimentar para as eleições de 2026. São os representantes dessa base que comandam e ocupam a estrutura de poder de grande parte dos municípios.

São realidades paralelas, a do enfrentamento do desmatamento e do garimpo e a do cotidiano no chão. A verdade só pode ser encontrada articulando ambas. É o que SUMAÚMA busca fazer com seu jornalismo de profundidade.

Talvez o exemplo mais explícito seja o das vistosas operações do governo federal no território Yanomami e, ao mesmo tempo, o prefeito de Itaituba, Valmir Climaco (MDB), convocar uma reunião oficial e pública no município paraense para afirmar: “Não é hora de parar o garimpo”.

Mas há muito mais, como temos mostrado a cada semana. Destaque para Aldo Rebelo (PDT), ex-comunista e ex-ministro dos governos do PT,  que se transferiu (temporariamente ou não) para Altamira e passou a fazer uma cruzada agromilitar contra a política socioambiental de Lula nos vários estados da Amazônia Legal – e também contra as ONGs que ajudam a proteger a floresta –, aliado a grupos ruralistas da região amazônica.

Até nas comemorações há ameaça de sangue:  Alessandra Korap foi uma de seis ativistas no planeta que receberam um dos mais importantes prêmios ambientais em 24 de abril, mas está ameaçada de morte no Brasil por sua luta contra o garimpo, que está arrasando o território Munduruku – com a agravante de que parte dos indígenas está envolvida na mineração ilegal.

Morzaniel Ɨramari, o primeiro cineasta Yanomami, acabou de ganhar o prêmio de Melhor Documentário de Curta-Metragem da Competição Brasileira do festival É Tudo Verdade com seu lindo Mãri hi – A Árvore do Sonho. Mas precisa denunciar a realidade brutal vivida dentro do território mesmo depois que o governo iniciou as operações de retirada dos garimpeiros.

Nosso jornalismo enfrenta a complexidade – e não contorna as contradições. Se você acha que SUMAÚMA é relevante na guerra contra a natureza, que determina nosso presente e moldará o futuro neste planeta, se você acha que nosso jornalismo é importante para o destino das crianças que já nasceram, é hora de nos apoiar de forma mais efetiva. Faça parte desta rede de cuidado. Nós precisamos de sua doação para continuar existindo. Seu apoio é também a nossa proteção para fazer jornalismo em zona de guerra.

Essas cenas articuladas que nosso jornalismo analítico mostra a cada semana são o cotidiano. E é no cotidiano que vivemos. E é o cotidiano que vai determinar o futuro das novas gerações. Então, repetimos uma vez mais: no chão, está mais difícil.

CRIANÇA KAYAPÓ NO COLO DA MÃE DURANTE CANTO NA ABERTURA DA 19ª EDIÇÃO DO ACAMPAMENTO TERRA LIVRE EM BRASÍLIA. FOTO: FERNANDO MARTINHO/SUMAÚMA

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