Você pode ser o que quiser, contanto que seja branco. Por Ynaê Lopes dos Santos

Indignação causada por atrizes negras interpretando Cleópatra e Ariel mostra que nem o mundo real nem o universo do “era uma vez” estão livres das amarras impostas pelo racismo

em DW

Uma das polêmicas que sacudiu as redes sociais nos últimos dias teve no seu epicentro uma série da Netflix. Um advogado egípcio estaria processando a plataforma de streaming por conta de Rainha Cleópatra, que conta com Jada Pinkett Smith na produção executiva. A razão do processo e de centenas de ofensas racistas foi a escolha da atriz britânica Adele James para interpretar o papel de Cleópatra.

Para quem não sabe, Adele James é uma mulher negra. E, para os desgostosos de plantão, Cleópatra não pode ser uma mulher negra, sob hipótese alguma.

Os argumentos do advogado inconformado defendem que a série precisa fazer jus à verdade histórica sobre o Egito, reforçando ainda que uma Cleópatra negra mancharia a imagem do povo egípcio. Alegações muito parecidas foram vociferadas em posts abertamente racistas na conta de Jada Smith, assim que o trailer da série veio à público.

Há aproximadamente seis meses, um movimento muito parecido também ganhou amplo espaço na opinião pública quando a Disney anunciou que a nova versão da história da Pequena Sereia teria uma atriz negra interpretando a personagem Ariel. Centenas de pessoas se indignaram com a possibilidade real de uma figura mítica ser representada por uma mulher negra. Isso nos leva à conclusão de que tanto nas histórias vividas como na ficção não há espaço para a reinvenção positiva das mulheres negras.

Onde já se viu uma sereia negra? E quem ousa representar uma Cleópatra que fuja dos padrões estabelecidos pela figura de Elisabeth Taylor?

Amarras impostas pelo racismo

Pois bem, já disse isso uma vez, mas digo de novo: sereias não existem na vida real. E a figura mitológica das sereias está presente em diferentes sociedades, não sendo atributo exclusivo do universo europeu, basta lembrar que a Iemanjá amplamente cultuada no Brasil é um orixá vinda do continente africano, e por isso mesmo, negra.

E lembrando uma das passagens importantes do intelectual negro Frantz Fanon: não podemos fugir do óbvio: o Egito fica na África. E, embora Cleópatra tenha uma ascendência paterna grega – principal argumento utilizado na tentativa de comprovar a brancura de sua pele –, estudos arqueológicos e históricos apontam para a possibilidade de sua linhagem materna ser negra e africana.

Mas confesso aqui que me importa menos o fato de Cleópatra ter sido ou não uma mulher negra. O que segue me impressionando é a impossibilidade do homem negro e, sobretudo, da mulher negra serem tomados como possibilidade positiva de fabulações. Nem o mundo real nem o universo do “era uma vez” estão livres das amarras impostas pelo racismo.

A discussão em torno da Cleópatra é muito maior do que a figura dessa rainha egípcia. Ela nos remete à dificuldade crônica que o Ocidente tem em assumir que o Egito faraônico – aquele das pirâmides, das grandes descobertas científicas, da sistematização da escrita, dos embalsamentos e múmias – era uma sociedade africana. Há décadas, trabalhos como do intelectual senegalês Cheikh Anta Diop reivindicam essa obviedade. No entanto, o Egito faraônico, considerado um dos berços da civilização, segue sendo retratado como uma sociedade branca que, por acaso, ficava na África.

Figuras geniais são embranquecidas no Brasil

Esse é um dos exemplos mais antigos que corroboram uma máxima do racismo estrutural: a impossibilidade de reconhecer experiências não brancas em meio à ideia de civilização. Ou os sujeitos que realizaram grandes feitos são pessoas brancas, ou esses grandes feitos são obras de alienígenas e ETs.

O Brasil não é imune a essa perversidade do racismo. Aqui, figuras negras icônicas foram sistematicamente embranquecidas pelo simples fato de serem geniais. Um dos casos mais emblemáticos foi a representação sistemática da Chiquinha Gonzaga como uma mulher branca. Afinal, como é que uma das maiores musicistas do Brasil, a mãe do choro, autora de dezenas de músicas, poderia ser uma mulher negra?

O embranquecimento também acompanhou toda a vida post mortem de Machado de Assis, cuja genialidade o coloca no lugar de um dos maiores (senão o maior) literatos da língua portuguesa de todos os tempos. Um lugar que, obviamente, é tido como exclusivo dos brancos. Movimento semelhante acontece com Juliano Moreira, médico negro, fundador da psiquiatria no Brasil e responsável pela primeira reforma psiquiátrica no país, além de ter sido um dos precursores dos estudos de psicanálise por essas bandas.

Tanto nas histórias vividas como nas histórias imaginadas, a positividade da experiência humana segue sendo um atributo praticamente exclusivo da população branca. Nesse mundo ocidental que se entende como devedor da Revolução Francesa, não foi só a liberdade, a igualdade e a fraternidade que foram pensadas por e para brancos. Mas a própria ideia de ser humano.

__________________________________

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022)

A britânica Adele James (esq.) como Cleópatra na série “Rainha Cleópatra”, da Netflix

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

15 + 19 =