No TaquiPraTi
Naquela tarde calorenta de Manaus, o sino da igreja de Aparecida bimbalhou as 18h00. As três irmãs saíram de sua casa no Beco da Escola, cada uma com sua cuia bordada de flores por artistas de Monte Alegre, lá de Santarém. Maria Regina – a Maré, Maria Júlia – a Maju e Maria da Fé – a Mafé, trajando vestido godê com bolinhas coloridas, subiram a rua Xavier de Mendonça até a banca de tacacá da dona Alvina na esquina da Alexandre Amorim. Elas não sabiam, mas eram precursoras das fake news.
A banca de tacacá foi, na realidade, o berço das fake news, como comprovam as campanhas eleitorais para governador do Amazonas. Quando o mundo ainda nem sonhava com a mídia digital, as fake news já circulavam com cheiro de tucupi. O atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes (o Xandão) precisa saber que as cuias de tacacá abrigaram as milícias não-digitais do jambu.
Orlando Silva, relator do projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 2630/20), a ser votada nessa terça (02), devia explicar aos deputados como as postagens orais dos fregueses eram difundidas nas bancas de tacacá, numa época em que a televisão não chegara na sociedade oralizada do Amazonas, onde não se cultivava o hábito de ler jornais e o rádio de pilha não havia sido inventado.
Por isso, os amazonenses ficaram sabendo da morte de Getúlio Vargas de forma distorcida. Alguém ouviu a notícia num rádio de válvula, com recepção fraca, baixo volume, um zumbido e um chiado causados pelo capacitor precário. Espalhou, então, com muita rapidez, a versão de que o presidente havia sido assassinado por Carlos Lacerda e não que se suicidara, preenchendo com sua imaginação a ‘causalidade’ que faltava. Era fake, mas com um fundo de verdade, considerando as calúnias responsáveis por seu suicídio disparadas por Lacerda.
Má Fé
O poder viral da banca de tacacá deixava no bolso Facebook, Telegram, WhatsApp, Instagram e oscambau a quatro. Quem sofreu na pele foram os candidatos a governador do Amazonas, em 1954, especialmente Plínio Coelho (PTB), mas também Rui Araújo (Coligação PSD, UDN, PDC e PTN) e Gama e Silva (PSP). Conto o caso como o caso foi testemunhado por dona Alvina.
Plínio Coelho não era mulherengo, mas para prejudicá-lo, convenceram as pessoas de que ele engravidara a Maju e a Maré cheia. O boato se disseminou pelas bancas de tacacá com tanta velocidade, que as pessoas ficaram com os lábios dormentes e entorpecidos, o que foi agravado pela anestesia do jambu. Até a irmã mais nova das duas, a Mafé, acreditou que ia ser tia devido à fama do principal cabo eleitoral do PTB, Gilberto Mestrinho, que dois anos depois se tornaria prefeito de Manaus.
Dona Alvina, porém, se antecipou em algumas décadas à Agência Lupa, criada pela Revista Piauí, e decidiu checar a informação. Rastreou os disseminadores do boato e localizou sua origem: Severino Pão-Duro, marketeiro da UDN que morava no bairro, era o criador da mentira, misturada com uma verdade. Era fato que o Boto passava o cerol em quem vestia saia godê, mas era falso que as moças estivessem grávidas. Disso, a tacacazeira entendia.
Sua banca alimentava a freguesia com um tacacá supimpa, banana frita no palitinho, croquete de pirarucu desfiado, bolo de mandioca, tapioca e, para rimar, muita fofoca. Mas dona Alvina cuidava da vida alheia com senso profissional e seriedade. Atestado de virgindade assinado por ela valia mais do que qualquer exame ginecológico. Ela não passava nada adiante, sem antes checar as fontes. Com olhar percuciente, conferiu as barrigas de Maré e Maju e concluiu que nenhuma delas estava grávida.
A notícia era falsa e dona Alvina não deixou que seu conteúdo fosse compartilhado, botando uma dose mais forte de pimenta murupi para queimar a boca dos linguarudos, entre elas a própria Mafé, que inventara ter subido numa jaqueira para falar com Jesus, havendo confirmado com Ele a gravidez das irmãs.
Águas vão rolar
Grato pela ação da dona Alvina, que restaurou a verdade, Plínio Coelho realizou seu último comício na sexta-feira, 1º de outubro, em um palanque armado ao lado da banca de tacacá dela, ali na Alexandre Amorim, de frente para a Xavier. Lembro bem do dia da semana, porque era a primeira sexta-feira do mês e eu havia assistido a missa do Apostolado da Oração com meu pai. Antes de seu discurso, explodiu no alto-falante a marchinha Saca-Rolha do Zé da Zilda, lançada naquele ano e que se transformou em sucesso em todo o Brasil.
Plínio Coelho, que tinha fama de grande orador, aproveitou a deixa e começou sua fala citando a letra da música:
– As águas vão rolar…. Deixa as águas rolar… E neste domingo, três de outubro, o PTB levará os eleitores às urnas num turbilhão de votos, para derrotar a mentira com uma cachoeira de verdades.
Eu era um garoto de sete anos, mas estava lá, no meio da multidão, ao lado de Luiz Pucú, que já era poeta, e do Euclides Coelho de Souza, primo da Freida Bittencourt. Foi justamente endereçado a nós, crianças, o jingle do penúltimo orador, uma paródia da música infantil “Fogo, fogo, fogo” cantada nos folguedos nas ruas de Manaus. Com essa propaganda musical, o candidato ao Senado, Mourão Vieira, mirava o voto dos pais e mães. Ficou assim:
– Povo, povo, povo, o senador do povo, oi (bis). Antóvila Mourão Vieira no Amazonas tudo novo.
O PTB, que trazia um vento de renovação na vida política do Amazonas, elegeu Plínio Coelho governador e os dois senadores Cunha Melo e Antóvila Mourão Vieira, derrotando os velhos caciques conservadores: Álvaro Maia (PSD vixe vixe) e Severiano Nunes (UDN vixe vixe). Este último, aliás, foi citado nos discursos, porque todas as casas de Manaus, que haviam sido dedetizadas tinham na sua fachada: SNM – Serviço Nacional da Malária, traduzido como Severiano Nunca Mais. Taí o Pucú e o Euclides que não me deixam mentir. Ou deixam?
O Xandão de saia
No capítulo “A mulher do tacacá” do seu livro Introdução à Sociologia da Amazônia (Editor Sérgio Cardoso, 1956, pgs 308 a 310), André Araújo traz alguns elementos que permitem aprofundar a reflexão aqui apresentada: “O povo bom e humilde rende o preito de recordação emotiva a essas mulheres notáveis que são as tacacazeiras, porque elas constituem a beleza das ruas, as vozes das praças, a alegria das estradas e o conforto da meninada sequiosa por comer”.
O folclorista e pintor Moacir Andrade, que residia bem em frente à banca da Dona Alvina, reverenciou-a também em dois quadros: A tacacazeira (1972) e Tomando tacacá (sem data), reproduzidos no seu livro “Manaus, Ruas, Fachadas e Varandas” (Editora Calderaro, 1985, pgs 99 a 101). Lá, ele nomeia as tacacazeiras famosas da cidade, “com seus vestidos e aventais brancos imaculados”, que sabiam “tratar os fregueses com muita amabilidade”.
Foi assim que dona Alvina, de forma eficiente, contribuiu para eleger o governador e os dois senadores do PTB, ao identificar a notícia falsa e impedir que seu conteúdo fosse compartilhado. Não seria exagero dizer que Dona Alvina foi o Xandão de saia.
P.S. Quem me iniciou nos segredos da “Tacacalogia” há mais de 40 anos foi Ernesto Renan Freitas Pinto, uma das inteligências mais brilhantes do Amazonas, que recebe o merecido título de professor emérito da UFAM nesta terça (2), às 10h00, no Auditório Rio Solimões. Sua tese de doutorado (PUC-SP, 1992) “Sociologia de Florestan Fernandes”, orientada por Octavio Ianni, foi editada pela Edua. Seu pós-doutorado na USP sobre Theodor Adorno rendeu livro de autoria coletiva com Tenório Telles e Davyd Spencer.
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