Número de egressos com penas de multa em aberto passa de 6 para mais de 208 mil em SP em 2 anos
Por José Cícero, Agência Pública
Uma jovem grávida de oito meses dirige-se a um supermercado e, quando vai efetuar o pagamento na função débito, tem o cartão recusado. Sem entender o motivo, ela consulta o saldo e se surpreende com a observação “bloqueio judicial” ao lado do único valor disponível na conta – R$ 375; um homem fica perplexo ao saber que a sua motocicleta, utilizada para gerar a principal fonte de renda da família, corre risco de ser penhorada; um idoso passa a ter uma série de problemas econômicos e chega a viver na rua. O único aspecto em comum entre os três é o fato de serem egressos do sistema prisional e terem adquirido uma dívida com o Estado depois de terem cumprido pena.
As dívidas impostas a essas pessoas são oriundas de uma multa aplicada no momento em que a sentença é estabelecida, a chamada pena de multa. Excluindo-se os casos de crimes contra a vida ou sexuais, todos estão sujeitos a multa, prevista no artigo 51 do Código Penal. Desde 2019, o não pagamento impede a extinção da pena – mesmo que todo o tempo de prisão tenha sido cumprido. A pessoa também fica com os direitos políticos suspensos, sendo proibida de votar, além de estar sujeita ao bloqueio de valores ou penhora de bens.
Em São Paulo, estado com a maior população carcerária do país (197 mil), os casos de execução de multas têm aumentado vertiginosamente. Até o dia 31 de março, 208 mil estavam em andamento. Eram 6 em janeiro de 2020, segundo dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça do Estado à Agência Pública. Apenas na capital são 50.050 ações referentes a multas não pagas.
A aplicação da pena de multa está prevista no Código Penal desde 1940, mas até recentemente era assunto de natureza fiscal, não criminal. Após definir a pena, o magistrado apenas informava à Fazenda Pública, responsável pela cobrança, que a multa havia sido aplicada. A Fazenda deixava de executar a grande maioria das cobranças por considerar que o custo do ajuizamento das ações era maior que a quantia que deveria ser paga. Na capital paulista, por exemplo, cerca de 22 mil dos 50 mil casos de multas em aberto tratam de multas entre R$ 200,01 e R$ 500.
Foi o julgamento do Mensalão e a Lava Jato que levaram a uma mudança de entendimento que hoje se reflete no grande crescimento de egressos do sistema ainda com penas em aberto, ou “presos em liberdade”.
Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.150 no fim de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso decidiu que a multa é de natureza penal e que a sua execução seria atribuição prioritária do Ministério Público. A nova compreensão foi seguida pelo Superior Tribunal de Justiça e consolidada pelo chamado Pacote Anticrime, projeto legislativo de autoria do então ministro da Justiça e atual senador Sergio Moro (União Brasil), que se converteu na Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.
O professor e pesquisador Luigi Giuseppe Barbieri Ferrarini explica que a decisão do STF foi pensada para “atingir patrimônios gigantescos” de condenados em casos como Mensalão e Lava Jato e grandes traficantes de drogas. “O Supremo fez isso porque queria tirar o dinheiro deles. Não iam extinguir a pena enquanto não pagassem a multa. Só que por outro lado eles não viram que isso ia atingir todo sistema e gerar um impacto sobre as pessoas pobres”, diz.
Estado laboratório
Na tentativa de resolver o bloqueio de seu cartão, Jéssica Santos, a gestante que abre esta reportagem, recorreu à Defensoria Pública. Soube então que o processo que motivou o bloqueio tinha relação com a sentença de oito anos de privação de liberdade pelos crimes previsto na Lei de Drogas que já tinha cumprido: R$ 22.260 de pena de multa pela condenação por tráfico e R$ 15.900 por associação ao tráfico, totalizando R$ 38.160.
Cada “dia-multa” equivale a 1/30 do salário mínimo vigente, o que atualmente corresponde a R$ 44. O valor total da multa depende do delito e da análise do juiz. Porém, alguns tipos de crimes já têm um mínimo de dias-multa estipulado pela lei. No caso de pessoas condenadas por roubo, furto ou estelionato, o montante pode variar entre 10 e 360 dias-multa, ou R$ 440 e R$ 15.840. Em penas relacionadas ao tráfico de drogas, como a de Jéssica, o mínimo previsto é de 500 dias-multa, ou R$ 22 mil, podendo chegar a 1.500 dias. Há ainda a possibilidade de o juiz multiplicar os dias multas por cinco vezes o valor do salário-mínimo.
Jéssica conta que quando deixou a prisão em 2018, após ter cumprido parte da pena, não foi informada de que deveria quitar o valor nem de que o não pagamento poderia gerar problemas. Desempregada e hoje com uma filha de 3 meses, ela mora com a mãe, que vive de bicos, e não tem condições de efetuar o pagamento. No dia 6 de março de 2023, passados cinco anos da condenação, a Justiça julgou extinta a pena a pedido da Defensoria.
Para o advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Guilherme Ziliani Carnelós, a aprovação da lei trouxe um impacto desmedido para a população mais vulnerável. “O mínimo da pena de multa para um pequeno traficante é de R$ 22 mil. Aí, um rapaz de 19 anos, que é preso em flagrante com 50 gramas de cocaína e R$ 60 no bolso, cumpre pena e sai com a multa mínima. Qual é a chance dessa pessoa, que foi presa, que saiu com 22 anos do sistema carcerário, conseguir um emprego e, para além da própria subsistência, juntar R$ 20 mil a ponto de pagar a pena de multa?”, questiona.
Os dados mostram que a aplicação da pena de multa em São Paulo começou a crescer após atribuição da competência à 1ª Vara de Execuções Criminais, em agosto de 2021. A vara tem nove servidores e um juiz dedicados ao tema. O Estado tem sido visto por especialistas ouvidos pela reportagem como um “laboratório” do novo entendimento.
A defensora pública Camila Tourinho também considera que a nova estrutura da vara contribuiu para o aumento. “Querendo ou não, agora eles precisam justificar a existência dessa vara. O que a gente vê é uma escalada no número de processos e também muitas pessoas chegando cada vez mais no atendimento com demandas de cobrança de multa”, relata.
O impacto no cotidiano de trabalho dos juristas que atuam no direito criminal foi tão repentino que algumas organizações da sociedade civil passaram a olhar com mais preocupação para o tema e estudar meios para atuar nos casos. Em 2022, o IDDD iniciou um mutirão para ajudar egressos do sistema penitenciário com dificuldade para quitar a multa e elaborou um material de apoio com teses institucionais e argumentos jurídicos sobre o tema.
Entre agosto e dezembro de 2022, a organização atuou em 251 casos. A partir das informações extraídas pelos advogados durante os atendimentos, traçou o perfil socioeconômico das pessoas atendidas: 80% se declararam negros; 72% afirmaram ter filhos ou dependentes, sendo que mais de um terço afirmou ter três filhos ou mais; quase um quinto declarou estar em situação de rua; 72,1% disseram ganhar menos de um salário-mínimo por mês; 36,3% não completaram o ensino fundamental, 72,5% não concluíram o ensino médio, e mais da metade está desempregada. Entre os empregados, 82,4% não têm carteira assinada.
R$ 13 mil de multa e dez dias para pagar
Condenado por tráfico, *Osvaldo está entre os 72% dos egressos do sistema com multas em aberto que têm filhos ou dependentes. Ele conta que assim que deixou a prisão, para cumprir o restante da pena em regime aberto, recebeu uma carta informando que tinha dez dias para pagar os R$ 13.500 correspondentes à pena de multa.
“Como que uma pessoa que fica dez anos presa vai sair, vai ter R$ 13.500 para pagar essa multa em dez dias?”, questiona. “Tentei parcelar, pra pagar uns R$ 300 por mês, que é o eu posso, mas não aceitaram.”
Sem condições de quitar a dívida, Osvaldo seguiu a vida e passou a focar em conseguir um emprego formal para garantir o seu sustento, da filha e do neto de 4 anos. Porém, quando foi a uma unidade do Poupatempo para tirar o atestado de antecedentes criminais, foi desaconselhado pelo próprio funcionário a seguir com o processo. “Quando chegou a minha vez, o cara me chamou e falou: ‘Vem cá. Você tem certeza que vai tirar o atestado [de antecedentes]? Vai sair que você tem pendência com a Justiça. Que firma vai te pegar sabendo que você é ex-presidiário?’”, lembra.
Mesmo diante da falta de incentivo, Osvaldo regularizou a sua documentação e continuou a busca por trabalho. Conseguiu um emprego como porteiro de um prédio em construção. Uma das condições era que ele deveria ir até o local com a sua motocicleta, pois era em um bairro distante de sua casa e a empresa não lhe pagaria mais que duas conduções.
Porém, após ter se estabilizado no trabalho descobriu um novo problema relacionado à pena de multa: o pedido de penhora da motocicleta. “Poxa, eu uso a moto pra trabalhar, que é o meu ganha-pão. Aí eles bloqueiam. Se eu perder a moto, não tem como eu trabalhar. Aí eu vou fazer o quê?”, questiona.
Até janeiro de 2023, outras 13.616 pessoas estavam na mesma situação de Osvaldo, com processo de bloqueio ou penhora no município de São Paulo.
Da prisão para a rua
Era por volta de 10h30 da manhã, do dia 14 de fevereiro, quando Claudenir José do Santos, 65 anos, saiu do posto da Receita Federal em Santo Amaro, zona sul de São Paulo, com o número do CPF em mãos. Foram cinco anos tentando obter o documento. “Agora estou com uma nova esperança de vida para um novo recomeço. Eu era indigente, mas agora não, agora tenho os meus documentos”, conta.
O que o impedia de ter o documento era uma multa no valor de R$ 6 mil aplicada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2009, quando ele foi condenado a cinco anos de prisão em regime fechado pelo crime de tráfico de drogas. Claudenir cumpriu a pena até dezembro de 2018. Ao sair, não conseguiu efetuar o pagamento da multa e, desde então, buscava meios para regularizar sua situação.
Ele foi morar com a irmã e o cunhado no Jardim Robru, zona leste de São Paulo, e começou a buscar trabalho, mas, sem documentos, não conseguia emprego formal. Sem conseguir contribuir para as contas da família, permanecer na casa dos parentes não era mais viável e Claudenir passou a viver sozinho em uma ocupação. Sobreviveu com o dinheiro de bicos que fez como servente de pedreiro e outros serviços esporádicos.
A sua condição piorou em 2020 com o início da pandemia de covid-19. Sem trabalho e sem a documentação, Claudenir não conseguiu acesso ao Auxílio Emergencial nem a qualquer outro direito disponibilizado pelo estado ou pelo município. Em condição de extrema pobreza, chegou a morar num carro abandonado e, sem demora, na rua.
As circunstâncias começaram a mudar quando ele foi acolhido pela ONG Tantos Dias de Detenção, projeto encabeçado pelo também egresso do sistema carcerário Vanderlei Fischer. Ele conta que ficou sabendo do caso de Claudenir por um conhecido e logo foi procurá-lo. “Falaram pra gente que o carro em que ele estava morando pegou fogo, que ele tinha saído todo queimado e foi pro hospital. Corremos todos os hospitais por lá atrás dele e não o achamos”, relembra.
Vanderlei levou uma semana até encontrá-lo. “[Ele] estava tudo sujo, todo zoado, cabeludo, barbudo. Falei: ‘Pô, isso não é digno pra você, mano. Você é um cara que também merece uma oportunidade’. Ele estava largadão na rua acho que há uns seis meses”, lembra Vanderlei, que o levou para morar com ele no Jardim Monte Azul, zona sul da capital. Após alguns meses, alguns moradores da comunidade se uniram para construir a casa com um cômodo e banheiro em que Claudenir vive atualmente.
Diante da condição vulnerável em que Claudenir se encontrava, o advogado Roberto Aveline Chaves Júnior, que atuou de forma voluntária no caso a pedido da ONG, entrou com um pedido de extinção da multa por hipossuficiência — argumento usado quando o egresso está em situação de vulnerabilidade social, sem condições financeiras para quitar a multa. O processo correu por cerca de dois anos e, mesmo diante de uma prova em vídeo e de uma declaração de Claudenir afirmando à justiça a sua situação, o Ministério Público indeferiu o pedido.
Em uma das manifestações, em 22 de novembro de 2022, o promotor de justiça Valdir Vieira Rezende alegou que “a prova de condições econômicas ou hipossuficiência deve ser prioritariamente feita por documentos e não declaração do próprio interessado ou eventual pessoa que faça a declaração”. “Muitas vezes as aparências não refletem a real situação financeira de alguém”, afirmou.
A conquista da documentação só foi possível porque o Ministério Público de São Paulo não executou a multa no período de cinco anos e a dívida prescreveu. “Se dependesse do Estado, ele ia morrer e não ia conseguir o CPF”, afirma Chaves Júnior.
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Imagem: Douglas Lopes/Agência Pública