O futuro do governo está na balança, ameaçado pelas forças do agronegócio, do tráfico, do setor financeiro, dos interesses dos congressistas e pela ação deletéria da milícia virtual da ultradireita
Lula não ganhou as eleições sozinho, mas sem ele não haveria a derrota de Bolsonaro. A liderança carismática inconteste do presidente foi absolutamente fundamental para a vitória. Lula levou milhões de brasileiros e brasileiras às ruas no primeiro e segundo turnos e foi um galvanizador de uma militância, mais ampla que a dos partidos de esquerda, que assumiu um papel chave para virar votos. Ele foi capaz de superar, parcialmente, mas significativamente, a resistência a ele mesmo e até ao PT.
No entanto, a candidatura de Lula carregou alguns estigmas da passagem do PT pelos governos, em particular o de Dilma Rousseff. O ponto fraco de Lula (e do PT), visível a olho nu durante os debates e entrevistas na televisão, foi a questão da corrupção. A narrativa adotada pelo candidato e pelo partido é frágil e pouco convincente e isto não foi superado na campanha. Um bocado do voto em Jair Bolsonaro foi puxado pelo sentimento de parte dos eleitores de que tinham sido ludibriados quando, em 2002, votaram em Lula pela ética na política. Como Jair Bolsonaro, sua família e seu governo tinham um enorme rabo preso neste tema, quem não mergulhou na bolha da direita (que construiu uma imagem totalmente fake de um Bolsonaro anticorrupção) acabou votando no Lula por outros motivos, sobretudo a defesa da democracia, apesar da mancha indelével que o candidato carregou.
Assim como Lula foi o super-herói na derrota de Jair Bolsonaro, ele é a peça-chave para o sucesso, ou fracasso, do seu governo. Mais do que nunca o presidente é o alfa e o ômega da política atual e cada palavra, decisão e gesto é vital para enfrentar a armadilha que descrevi na série postada no site A Terra é Redonda.
Lula é um político habilíssimo e realista nas suas avaliações do quadro político. Ele sabe que a correlação de forças no Congresso é muito negativa e adotou uma tática de atrair as forças mais disparatadas, inclusive de direita, para dar sustentação ao seu governo. No entanto, o peso dos partidos que vieram a compor a base de apoio no Congresso, teoricamente capazes de garantir uma maioria folgada, não tem qualquer sustentabilidade. O amplo voto fisiológico do chamado baixo clero não está garantido pela adesão das lideranças dos partidos aos quais pertencem.
Por outro lado, uma parte da base da oposição, mesmo no partido mais bolsonarista, o Partido Liberal (PL), está aberta à adesão. Este voto infiel, de um e de outro lado, só é ganho em troca de benesses específicas via, sobretudo, as emendas parlamentares de todo formato. Isto implica em negociações caso a caso, proposta a proposta. Implica em um acordo com o supremo eleitor da Câmara, Artur Lira e, em menor grau, com Rodrigo Pacheco no Senado.
Neste quadro, Lula precisa definir um programa com prioridades muito concretas e muito sensíveis para o eleitorado, sobretudo os mais pobres. Ele não pode sair atirando em todas as direções, gastando forças que deveriam estar concentradas nos objetivos centrais para levar a um bom resultado estes arriscadíssimos próximos quatro anos. A agenda internacional não é uma prioridade para este público interno a conquistar e/ou fidelizar. E Lula está se metendo a fundo neste plano internacional, independentemente dos acertos e erros das posições que vem assumindo.
A agenda democrática está hoje nas mãos da justiça e se ela cumprir o seu papel a direita bolsonarista e golpista vai ser duramente atingida, inclusive o energúmeno, aliviando as pressões do extremismo contra as instituições da República.
O que Lula terá que fazer no executivo é limpar a administração dos inúmeros funcionários identificados com o golpismo bolsonarista, em particular os mais de sete mil militares que se locupletaram nestes últimos quatro anos. Aqui vai ser preciso agir sem buscar acordos ou se assustar com arreganhos do Partido Militar, que não vai deixar de protestar contra uma suposta “caça às bruxas”. E esta deveria ser uma regra nas relações com os militares. Não se pode governar sob ameaças militares, implícitas ou explícitas.
Cabe ao presidente cobrar um comportamento profissional das Forças Armadas (FFAA) e isto ficou claro com os problemas vividos no início do governo, com o GSI tomado por comandados do general Augusto Heleno colaborando com o golpe, com a conivência dos generais comandantes do Planalto, da guarnição do comando de Exército onde dormiram bem protegidos os golpistas do dia 8 e pelo próprio comandante geral do exército, que enfrentou o ministro da Justiça com ameaças do uso de força.
A permissão dada à Marinha para afundar o porta aviões “envenenado” foi explicada pela vontade de Lula de não comprar outra briga com militares. Não é a melhor forma de se fazer respeitar pela generalada. E o Ministro da Defesa, apesar do seu papel desastroso no dia 8 e sua total cumplicidade com a oficialidade que ele deveria comandar, foi mantido por Lula, também pelo argumento de suas boas relações com os militares. Tentar encantar ou neutralizar a oficialidade, fortemente contaminada pelo bolsonarismo, na base de concessões não vai funcionar. Profissionalismo e rigor para impedir manifestações políticas deveria ser a regra.
Ganhar a agenda econômica no Congresso, a começar pela Reforma Tributária, vai exigir uma enorme pressão social, a mais ampla possível. E, para isso, o governo precisa definir o programa essencial a ser cumprido para justificar o aumento de receita necessário na Reforma. Onde vai ser usado o dinheiro a mais que se pretende arrecadar? Esta é uma questão chave para mobilizar a sociedade e impor um projeto necessário a um congresso que, deixado à vontade, votará contra o governo ou cobrará um sem-fim de benesses para cada um dos deputados e senadores mais fisiológicos.
Na reforma tributária, devem ser aplicados os princípios básicos de (1) anular a maior parte dos 600 bilhões anuais de subsídios; (2) simplificar o sistema unificando taxas; (3) reduzir os impostos indiretos; (4) diminuir o imposto de renda para os mais pobres; (5) aumentar significativamente o imposto de renda para os mais ricos inclusive com a taxação das grandes fortunas; (6) aprimorar o sistema de cobrança para inibir a evasão fiscal. Pode-se imaginar a quantidade de conflitos que este tipo de reforma vai provocar.
Sem uma ampla campanha de esclarecimento da justiça tributária que deve ser implantada; sem uma demonstração da injustiça provocada pelos privilégios para os beneficiários de isenções fiscais; sem uma claríssima definição do destino do dinheiro novo a ser recolhido, vai ser impossível galvanizar a sociedade para arrancar a reforma em um Congresso com hegemonia de fisiológicos e ultradireitistas. Infelizmente, até agora, Lula e o governo não foram capazes de produzir este programa enxuto (ou qualquer outro) e as medidas tomadas até agora se resumem a retomar programas que Bolsonaro extinguiu. É importante, mas muito longe do programa mínimo vital para o país, para o governo e para o Lula.
Na tentativa de agradar todo mundo o governo acaba não agradando ninguém. É preciso ter claro onde estão os inimigos irredutíveis, quer por interesses econômicos quer por ideologia. O agronegócio é o maior destes inimigos e as tentativas de Geraldo Alckmin, em nome de Lula, de agradar as lideranças do setor é patética. Prometem-se absurdos tais como a exploração de potássio em áreas indígenas da Amazônia, a liberação ainda mais facilitada de novos agrotóxicos e transgênicos e financiamentos ainda mais vantajosos para custeio e investimento.
Nada disso tem justificativa econômica ou comercial. E como vai se colocar o governo no caso dos enormes subsídios para o agronegócio? Como vai se comportar a diplomacia brasileira em relação às restrições da União Europeia às importações de produtos agropecuários oriundos de áreas desmatadas? Acreditar que gestos de simpatia e concessões trarão o agronegócio para um entendimento com o governo e com Lula é cultivar uma perigosa ilusão. E a resposta do setor veio rápida e brutal. Entre homenagear o ex-presidente Bolsonaro ou receber a visita do Ministro da Agricultura, os organizadores do Agrishow não vacilaram e desconvidaram este último. Jair Bolsonaro recebeu uma homenagem apoteótica na Agrishow, depois de ter gramado semanas de ostracismo. Tapa na cara do governo e deveria servir de lição.
A agenda ambiental também parece ameaçada por iniciativas de vários lados: a Petrobras quer explorar petróleo na foz do Amazonas, Lula acena para financiamentos aos argentinos para a exploração de gás de xisto e a construção de um gasoduto para importá-lo, a política de preços da gasolina e do diesel vai no sentido de contê-los ao máximo, embora isto signifique a expansão do seu consumo, altamente danosa para o controle do aquecimento global.
Mas a maior ameaça está no continuado descontrole das áreas de garimpo, da extração ilegal de madeira, da pesca predatória nos rios da Amazônia e na grilagem de terras públicas. O caso da reserva Yanomami deveria alertar Lula para os problemas que vai ter que enfrentar. A operação de retirada dos garimpeiros, assalariados das facções do tráfico, das terras da reserva indígena teve alto impacto midiático, mas baixo impacto no controle dos ilícitos. Como no passado, em outras operações deste tipo, os garimpeiros se retiram sem qualquer óbice por suas atividades e esperam passar a onda para voltar.
Nem sequer a totalidade dos invasores foi retirada e o enfrentamento armado vem se intensificando, sem que as polícias tenham capacidade ou vontade de controle. Na operação de resgate da etnia, assolada por graves problemas de saúde, o governo não conseguiu montar o hospital de campanha anunciado na mídia, devido ao corpo mole da Aeronáutica em recuperar aeroportos na região para levar equipamentos. Agora se anuncia que outra operação vai ser lançada, em área indígena no Pará.
O problema é que os milhares de garimpeiros não têm alternativa de sobrevivência, contam com o apoio explícito ou discreto de autoridades locais, incluindo governadores, prefeitos, delegados, polícia militar e juízes. Sem a mobilização das FFAA e da polícia federal em grande escala, estas operações vão ser como enxugar gelo. Junto com a repressão e a retirada dos garimpeiros o governo precisa montar um programa social que gere empregos para esta massa ou ela será o “exército do tráfico” combatendo a autoridade pública.
E este amplo grupo está bem armado e municiado (com a ajuda da política de armamento de Jair Bolsonaro) e conta com o apoio dos operadores econômicos das gangues do tráfico para vender seu ouro no mercado nacional e internacional. Como estas operações de retomada do controle do território pelo Estado vão se chocar com os interesses do agronegócio, fica a dúvida em relação à vontade política de Lula e do governo para enfrentar este poderoso lobby. A lentidão na recuperação da capacidade operacional do IBAMA e do ICMBio indica que a ação decidida contra garimpeiros, madeireiros e grileiros não é uma prioridade. A outra explicação seria uma falta de foco nas ações do governo e a opção de agir onde há menos resistência.
O futuro do governo está na balança, ameaçado pelas forças do agronegócio, do tráfico, do setor financeiro, dos interesses mesquinhos dos congressistas e pela ação deletéria da milícia virtual da ultradireita.
Enquanto isso, os partidos do governo se debatem para ocupar mais e mais espaços de poder, numa guerra de posições no executivo. Até agora, por mais hábil e carismático que seja o Lula, sua administração está agindo erraticamente e sem eixos claros de uma proposta programática capaz de galvanizar a sociedade.
Assim não vai dar certo, mas esperemos pelos ajustes que o Lula possa fazer, retomando as rédeas do governo e do partido.
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*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA)