Mística da luta por direitos e como se constrói militantes. Por frei Gilvander Moreira

Desde a publicação do livro Um discurso sobre as Ciências (1995), o pensador Boaventura de Sousa Santos aponta para a necessidade de um Pensamento Pós-Abissal por ser o rompimento com o sentimento e a lógica de colônia. De acordo com Boaventura Santos, precisamos criar as condições científicas e objetivas das mudanças sociais necessárias em um mundo que não pode se transformar em Europa e muito menos em Estados Unidos ou Japão. A luta pela terra no campo e na cidade é imprescindível para se interromper a espiral de violência social e um círculo vicioso mostrado por Boaventura: “Direitos humanos são violados para poderem ser defendidos, a democracia é destruída para garantir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome de sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto no sentido literal como metafórico” (SANTOS, 2010, p. 44).

A luta pela terra no campo e na cidade, que se pretende emancipatória, precisa fomentar a luta pela construção de uma sociedade justa e solidária, de todos e todas, no campo e na cidade, e, assim, colocar em luta coletiva de forma sincronizada, em unidade, os/as camponeses/as e a classe trabalhadora da cidade. Só assim se fortalecerá o processo de emancipação humana e social tanto dos camponeses e camponesas quanto dos/as trabalhadores/as cada vez mais superexplorados/as na cidade, na fábrica e nas ruas, com a terceirização e uberização da economia, inclusive.

Nos processos de nucleação das famílias na luta pela terra, seja no acampamento ou na ocupação urbana, seja no assentamento ou em uma comunidade urbana periférica, delegando tarefas a todos/as, discutindo tudo em reuniões e assembleias, os Sem Terra e os Sem Teto promovem pequenas emancipações, necessárias para sustentar as médias e grandes emancipações. Nesse processo, “quem nunca abria a boca, de repente vira locutor da rádio do acampamento; quem se dizia tímido vira referência de negociador com o governo; quem era considerado o fofoqueiro da comunidade de origem vira articulador das propostas na base […]” (CALDART, 2012, p. 184). Nas lutas concretas por terra, moradia e por território e por outros direitos, cegueiras são curadas, sujeitos militantes são construídos.

Essa emancipação de base ocorre enquanto se vivencia na prática democracia real de base. Nas reuniões, nas assembleias, nas lutas coletivas, em trabalhos domésticos feitos também pelos companheiros e na convivência do dia a dia aprende-se que para poder participar é preciso saber ouvir, respeitar a opinião dos/as companheiros/as, da/o esposa/a, dos filhos e das filhas, dos Sem Terrinha, das crianças Sem Teto e dos que se somam à luta coletiva. E se aprende que o que é construído pelo coletivo, com a participação de todos/as, será mais facilmente adotado por todos/as que se sentirão corresponsáveis pela execução do que for planejado e decidido conjuntamente.

Vital também como pedagogia de emancipação humana é “o exercício dos princípios da direção coletiva, da distribuição de tarefas, da autocrítica permanente, da autonomia política…; ao cultivo de valores humanistas e de uma mística que forma as pessoas para o exercício da utopia” (CALDART, 2012, p. 207).

Sem mística emancipatória não há luta pela terra, por moradia e por território que se torne emancipatória, mas não basta qualquer tipo de mística. É necessário mística libertadora[2] que mexa com as entranhas dos Sem Terra, dos Sem Teto, dos Povos Originários e das Comunidades Tradicionais como tempero da luta, sal na comida, fermento na massa, luz nas trevas, e paixão que anime as/os militantes na luta pela terra, pela moradia, por território, porque alimenta a índole revolucionária das/dos combatentes transformando todas/os em cativadoras/res de novas/os lutadores/as. Nesse sentido, diz Peloso, ao afirmar que a mística é a alma do combatente: “Há pessoas e grupos que vivem tão fortemente as suas convicções que passam a semear um entusiasmo contagiante. Essas pessoas caminham na vida com tanta esperança que parecem enxergar a certeza da vitória. E com o tempo, elas vão ficando mais destemidas, mais disponíveis e mais carinhosas. Mesmo no meio da maior escuridão elas continuam anunciando e celebrando a chegada da aurora. Que força teimosa é essa que perturba o ódio dos inimigos e envergonha a mesquinhez dos que se dizem companheiros?” (PELOSO, 1994, p. 3).

O fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy, no banco dos réus, no Fórum Lafaiete, em Belo Horizonte, MG, dia 11 de outubro de 2013, ao ser interrogado pelo juiz por que comandou pessoalmente um grupo de jagunços na realização do massacre de cinco Sem Terra em Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha, MG, respondeu: “Eles tinham invadido minhas terras, mas as cantorias dos Sem Terra estavam me irritando há dois anos. Eu não tolerava mais aquela cantoria dos Sem Terra”. Também no mesmo sentido um espião das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no filme O anel de tucum, informa ao seu mandante: “Eles (o povo das CEBs) têm sempre aquela cantoria maldita e estão sempre animados comemorando não sei o quê” (ANDRÉ, espião no filme O anel de tucum).[3]

Para os opressores é difícil entender esta luta dinâmica e grandiosa por direitos que vai muito além do que seus olhos cegados pela ideologia dominante, porque tem a ver com alma, com vida, e por isso, vitoriosa!

Notas:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.

[2] Sobre “a religiosidade e a mística nas vivências dos sem terra” confira SILVA, Rita de Cássia Curvelo. Práxis política no MST: produção de saberes e de sabedoria. Tese (Doutorado em Educação).  João Pessoa: UFPB, 2008, p. 67-70.

[3] Cf. O anel de tucum. Filme dirigido por Conrado Berning. São Paulo: Verbo Filmes, 1994. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=55blfFGeyPc

Referências

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

PELOSO, Ranulfo. A força que anima os militantes. São Paulo: MST, 1994. Disponível em http://www.mstemdados.org/sites/default/files/A%20for%C3%A7a%20que%20anima%20os%20militantes.pdf

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.

Imagem: Mulheres indígenas ocuparam Brasília em defesa dos seus direitos, dia 15/08/2019. Foto: Tiago Miotto/Cimi

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