O último sonho de Marcelo Zelic. Por Rubens Valente

Da Agência Pública

Há duas semanas, Marcelo Zelic estava animado e cheio de esperança. Quase nove anos depois da conclusão da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, finalmente tudo fazia crer que o governo federal, agora inclusive com um inédito Ministério dos Povos Indígenas, abraçava a necessidade da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade. Depois de anos de omissão do Executivo, em especial todo o governo Jair “nenhum centímetro de terra indígena” Bolsonaro. A comissão específica foi uma das várias recomendações que a CNV fez ao Estado brasileiro no capítulo destinado às violações contra os povos indígenas e que jamais foram cumpridas – na verdade, nenhuma foi adotada até hoje. Agora a iniciativa tem o apoio declarado da ministra Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e da presidente da Funai, Joênia Wapichana.

Na semana do ATL (Acampamento Terra Livre) em Brasília, Zelic falava o tempo todo sobre o assunto, sua derradeira sublime obsessão. Participei com ele, no dia 25 de abril, a convite da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), de uma audiência na recém-criada Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. Zelic defendeu a necessidade de aprofundar a pesquisa do passado a fim de “buscar elementos que possam provar a ação e a conduta do Estado” e “buscar identificar no nosso presente a permanência dessa conduta e dessas violações e exigir do Estado […] mudança de conduta”.

À noite fomos a uma palestra na UnB (Universidade de Brasília) feita por um representante do povo Sámi da Noruega, o advogado Øyvind Ravna, na presença da subprocuradora-geral da República aposentada Ella Wiecko. No carro até a universidade, Zelic quis saber se a Agência Pública iria cobrir as viagens que, ele pensava, seriam um dos primeiros passos da futura comissão indígena da verdade.

Eu não posso falar em nome da Pública, mas respondi que claro que sim, certamente, povos indígenas estão entre os assuntos prioritários da agência. Zelic dizia que audiências públicas nas aldeias seriam fundamentais para ouvir, diretamente dos indígenas, os casos de violações de direitos humanos durante a ditadura. Concordando, acrescentei que muitas lideranças daquele tempo, idosas, precisam ser ouvidas com urgência. Eu não podia imaginar que a observação valeria para o próprio Zelic.

O pesquisador, assim como eu, se mostrou surpreso com o tamanho (cerca de 70 mil pessoas), a história e a organização representativa do povo Sámi, que construiu até um Parlamento próprio. No jantar que se seguiu à palestra, Zelic encheu Ravna de perguntas sobre justiça de transição e memória: houve reparação de violações na Noruega, qual o papel do Judiciário e Executivo noruegueses, existiu uma comissão da verdade, teve gente que foi contra? Obviamente coletava elementos para a comissão brasileira, que não saía de sua cabeça.

No começo da noite seguinte, nos encontramos no gramado da Esplanada dos Ministérios, onde centenas de indígenas se reuniam.

“O ATL projetou no prédio do Congresso Nacional um vídeo que dizia, entre outras coisas: “Nunca mais um Brasil sem nós”. Um dos pontos mais fortemente defendidos por Zelic é que a futura comissão da verdade indígena só inicie seus trabalhos e eleja os casos prioritários depois de uma ampla consulta aos próprios indígenas. Era o primeiro e imprescindível passo, repetia Zelic.

Nessa noite Zelic me disse que havia caminhado muito durante o ATL em Brasília, estava cansado. Eu comentei que tinha comprado uma bicicleta ergométrica durante a pandemia e procurava me exercitar toda noite pelo menos 30 minutos por dia. Zelic gostou da ideia, disse que iria verificar o preço de um equipamento semelhante. Fora o cansaço, não se queixou de nenhum problema de saúde. Eu não sabia que ele já havia sofrido três acidentes vasculares cerebrais. Embora nos conhecêssemos há cerca de oito anos, não éramos interlocutores frequentes nem amigos próximos.

Almoçamos no dia seguinte numa barraca de espetinhos no ATL. Na mesa estavam, entre outras pessoas, o procurador da República Marlon Weichert, experiente investigador de crimes cometidos por militares durante a ditadura, e o ex-deputado federal Gilney Vianna, ex-preso político na ditadura, integrante de grupos de familiares de mortos e desaparecidos políticos e um especialista nos casos de violência cometida pela ditadura contra trabalhadores rurais. Zelic compartilhava suas dúvidas e angústias sobre a futura comissão, ouvia as respostas, meditava. Ele jogava uma ideia no ar e queria saber como era recebida. Na prática, fazia uma pesquisa.

No dia 29, na última mensagem que me mandou por um aplicativo de celular, Zelic compartilhou um vídeo no YouTube no qual a ministra Sônia Guajajara defendeu, durante o discurso que proferiu no mesmo ATL, a necessidade de reparação pelos crimes cometidos pela ditadura contra os indígenas. “Criar a comissão da verdade indígena é uma medida fundamental para promover o início dessa reparação e para garantir que não haja repetição desse vergonhoso episódio da nossa história”, disse a ministra. Imagino a satisfação de Zelic ao ouvir a promessa.

Conheci Zelic em 2015, durante um encontro de história em Diamantina (MG) para o qual fomos convidados pela historiadora e professora na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Heloísa Starling. Eu e Zelic integramos uma mesa que debateu as violações dos direitos indígenas durante a ditadura. A minha primeira impressão, que persiste até hoje, foi de um pesquisador sobretudo permanentemente indignado com os horrores da ditadura. Indignação que ele fazia questão de nunca esconder, desde o café da manhã no hotel.

Na época do seminário em Minas, Zelic já era reconhecido como um grande pesquisador da temática, tendo sido o autor da descoberta, ou redescoberta, do processo administrativo produzido na segunda metade dos anos 1960 que ficou conhecido como Relatório Figueiredo, cuja divulgação levaria à extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O processo estava arquivado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, mas indexado apenas com um número, sem explicações sobre o conteúdo. Zelic reconheceu sua importância e o resgatou do limbo em que permaneceu mais de 40 anos. Foi também Zelic o responsável por localizar um filme produzido pelo governo nos anos 70 que mostrava um indígena simulando a prática de tortura num pau-de-arara, um singelo “ensinamento” dos torturadores aos membros de uma “guarda indígena” que funcionou em Minas Gerais durante a ditadura.

Na condição de coordenador do Armazém Memória e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Zelic e sua equipe de colaboradores coletaram, escanearam, organizaram e disponibilizaram uma impressionante coleção de documentos e outros dados relativos aos direitos humanos https://armazemmemoria.com.br/. Apenas sobre os povos indígenas são 18 bibliotecas com 2,2 milhões de páginas. Parte desse trabalho é utilizada por organizações indígenas e membros do Ministério Público Federal na instrução de ações civis públicas que buscam investigar e reparar comunidades indígenas. Zelic também atuou na CNV e no apoio a diversas comissões da verdade nos Estados. Participou de um sem número de debates, ao vivo ou por videoconferência, produziu textos, organizou pesquisas.

Em meio a essas intensas atividades, Zelic sofreu um novo AVC, na última sexta-feira (5), foi socorrido e internado num hospital em São Paulo, mas faleceu nesta segunda-feira (8), deixando desolados familiares, amigos e colaboradores. O sonho inacabado de Marcelo Zelic enfim se tornar realidade é a maior homenagem que ele poderia receber.

Imagem: Morto nesta segunda-feira após um AVC, coordenador do Armazém Memória estava empenhado em ajudar na criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade. Foto: Renato Araújo/Câmara dos Deputados.

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