Movimento de Policiais Antirracistas nasce para ‘mudar a cultura’ das forças de segurança no RS

Iniciativa busca promover o diálogo sobre o racismo e garantir disciplinas que tratem do tema nos cursos de formação

Por Luís Gomes, no Sul21

Servidores das forças de segurança do Rio Grande do Sul e de polícias federais que atuam no Estado lançaram no sábado (13), na Esquina Democrática, no Centro de Porto Alegre, o Movimento de Policiais Antirracistas. A iniciativa tem, em princípio, o objetivo de promover o diálogo sobre o racismo nas forças policiais e buscar que disciplinas que tratem do tema sejam introduzidas nos cursos de formação das corporações.

A ideia para o movimento surgiu do policial rodoviário federal Pedro Guimarães. Em conversa com o Sul21, ele destaca que já percebia, do curso de formação ao dia a dia da corporação, uma banalização de práticas e falas racistas. Contudo, ao tentar conversar sobre as questões raciais com colegas da PRF e de outras polícias, via que o tema era tratado como tabu.

Ele explica que a faísca para a iniciativa de criar um movimento antirracista foi a politização de sua corporação em torno da campanha presidencial de Jair Bolsonaro. Às vésperas da eleição, ele declarou nas redes sociais voto em Lula e, como consequência, teve aberto contra si um processo disciplinar.

“Ali, naquele momento, eu falei: cara, não tem mais como eu me esconder para militar. E aí eu comecei a articular mais forte o movimento”, conta. “Com a vitória do Lula, eu falei: Pô, agora é o momento, se a gente quer mudar as organizações policiais, para que o policial atue como um garantidor e um assegurador dos direitos humanos, o momento é agora. Se a gente quiser modificar, se o governo quiser de fato mexer nesse vespeiro que são as forças policiais, a gente tem que se organizar agora e começar a tentar mexer na estrutura por dentro”, complementa.

Pedro entrou então em contato com alguns policiais que eram referências da luta antirracista em suas corporações. A partir desses contatos, formou-se o grupo de fundadores do movimento, que, além dele, inclui a policial penal Maria José Diniz, o comissário de polícia aposentado Luiz Felipe Teixeira e o tenente-coronel Dagoberto Albuquerque da Costa, da reserva da Brigada Militar.

Atual coordenador estadual do Movimento Negro Unificado, Luiz Felipe Teixeira pontua que já tinha ajudado a criar recentemente o Movimento de Policiais Antifascismo no Rio Grande do Sul, mas destaca que as duas iniciativas, apesar de terem pontos em comum, tem objetivos diferentes.

“Nos policiais antifascistas, a gente tem todo um leque em que a gente discute a mudança da estrutura do modelo de segurança e a estrutura do modelo das polícias: a questão da carreira única, a questão do ciclo completo de polícia, da militarização das polícias, a questão da descriminalização das drogas, questões mais gerais. No movimento antirracismo, o nosso foco é discutir a questão do racismo estrutural e institucional que está impregnado na sociedade por causa dos quase 400 anos de escravização do povo negro. Então, a gente discute essa questão focada do racismo nas instituições, para que tanto as instituições, quanto seus servidores, enxerguem que a gente não fica isento a essa chaga do racismo e que nós, enquanto trabalhadores da segurança, também somos afetados por isso, da mesma forma que a nossa atuação afeta a sociedade”, diz.

Contudo, apesar de destacar que o foco não é discutir a estrutura da segurança pública no Estado, Luiz Felipe pontua que os temas têm uma interconexão natural. “Fatores como a militarização da polícia e a questão da polícia ser dividida em duas castas — praças e oficiais, na Brigada Militar, agentes e delegados, na Polícia Civil — acabam afetando a questão do racismo. Mas esse não é o objetivo primeiro do movimento”, diz.

Assim como Luiz Felipe, Maria José também tem atuação no movimento antifascista e há anos já trabalhava entre os policias penais — antigos agentes penitenciários — a necessidade de discussão das pautas raciais.

“Dentro do sistema prisional, eu sempre convivi com o resultado da sociedade. Eu sou mulher, sou negra, a gente vê a grande maioria de negros e negras dentro do sistema prisional, a gente vê esse olhar da segurança pública que criminaliza quem é negro e negra. Sendo bem sincera, muitas vezes me senti capitã do mato nesse meu trabalho, e isso já me levou a me organizar junto com os meus, com as pessoas que pensam da mesma forma, o que culminou nos policiais antirracismo”, diz.

Para Dagoberto, a posição antirracista deveria estar institucionalizada nas polícias. “Isso aí deveria ser uma obrigação funcional de todos os policiais, praticar o antirracismo, uma educação antirracista, promover letramento racial dos seus policiais. Isso não acontece e o objetivo desse movimento é justamente esse”, afirma.

Ele conta que, até entrar na reserva, em 2021, participou de iniciativas internas na Brigada Militar, ao lado de colegas como o tenente-coronel Maurício Flores, como a promoção de seis encontros da consciência negra. “Nós mobilizamos algumas pessoas, mobilizamos algumas lideranças dentro da Brigada, mas nunca foi fácil. Os nossos eventos eram pouco prestigiados pela própria instituição, conseguíamos levar muito mais gente de fora do que pessoas de dentro da instituição, porque dentro da Brigada se acredita que não tenha racismo. Isso acontece porque o regulamento é o mesmo para as pessoas, a gente usa o mesmo uniforme, a gente tem praticamente a mesma conduta policial”.

Os fundadores do movimento destacam que, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a população negra é desproporcionalmente a que mais morre em ações policias e, ao mesmo tempo, os policiais negros são aqueles que mais morrem no exercício da função.

“A gente tem que entender o porquê disso. Temos que entender o porquê do aprisionamento em massa da população negra. O Rio Grande do Sul, que é um estado colonizado por pessoas não negras, tem um sistema prisional com mais de 40% de negros, quando o último Censo do IBGE diz que nós somos 18% no Estado”, afirma Maria José. Também participaram da atividade os diretores do Simpa Jailson Bueno Prodes e Cuca Congo.

Momento político

Além de considerar a chegada de Lula como uma oportunidade para discutir o tema do racismo nas forças de segurança, Pedro pontua que a chegada de uma bancada negra à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul também propicia um ambiente favorável à discussão que o movimento quer fazer no Estado.

“Não é por acaso que o Rio Grande do Sul tem o primeiro Movimento de Policiais Antirracistas e, pela primeira vez, a gente tem uma bancada Negra atuante na Assembleia Legislativa. Então, eu fui me aproximando desses parlamentares e falando dessa pauta, falando que a gente tinha esse projeto e, assim, fui conseguindo a adesão de parlamentares. E aí a gente construiu a conversa com as demais forças policiais”.

O manifesto de fundação do movimento conta com assinatura, além dos membros fundadores, de quase 40 servidores das polícias Civil, Militar, Penal, Federal, Rodoviária Federal e do Corpo de Bombeiros Militar. Não apenas negros, pois, como dizem os fundadores, a luta antirracista também precisa de aliados entre a população branca.

Aos servidores, somam-se as assinaturas de sete deputados estaduais — Bruna Rodrigues (PCdoB), Laura Sito (PT), Matheus Gomes (PT), Jeferson Fernandes (PT), Leonel Radde (PT), Luciana Genro (PSOL) e Luiz Marenco (PDT) –, sete deputados federais — Daiana Santos (PCdoB), Denise Pessoa (PT), Reginete Bispo (PT), Fernanda Melchionna (PSOL), Marcon (PT), Maria do Rosário (PT) e Pompeo de Mattos (PT) — e da vereadora Fátima Maria, de Viamão.

O movimento está articulando o contato com o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, para estabelecer um canal de interlocução dentro do governo federal para tratar do tema do racismo nas forças policiais.

Pedro destaca que o movimento tem dois objetivos iniciais a partir do lançamento no sábado: que as polícias promovam um debate interno com o objetivo de mudar a cultura de práticas racistas nas instituições e que a temática antirracista seja incluída nos cursos de formação.

“Para que a gente possa avançar nessa pauta, primeiro a instituição precisa se reconhecer como racista. Não pessoalizando, mas reconhecendo que possui práticas racistas decorrentes da própria estrutura da constituição das forças policiais, de controle da população negra na periferia, etc. A partir disso, implementar a mudança nos cursos de formação profissional e mesmo nas formações recorrentes que acontecem. Não adianta só a gente combater o racismo de fora. Claro que é importante fazer a denúncia, mas é fundamental, para que de fato ocorra a mudança nas instituições, essa formação policial com uma educação antirracista”, diz.

Dagoberto pontua que a mudança cultural exige um novo modelo e um novo olhar para o policiamento, o que depende de transformações que talvez possam ocorrer só a longo prazo. Contudo, a criação de disciplinas que tratem da temática nos cursos de formação poderia ser implementada para já.

“Promover a educação através de cursos de formação e mudança de bases curriculares é uma coisa possível, exequível e que pode ser feita em curto prazo. Em agosto, nós vamos ter ingresso de policiais militares aqui no Rio Grande do Sul e isso já poderia ser uma pauta, poderia ter uma disciplina para tratar sobre o antirracismo. É uma coisa imediata e sem custo, porque já tem alguns policiais preparados para dar essa formação e tem outros profissionais de outros órgãos que poderiam dar essa contribuição, sem nenhum ônus”, afirma.

Luiz Felipe complementa que o objetivo do movimento é também promover o diálogo em duas frentes: com a sociedade, movimentos sociais e movimentos negros, e com as instituições policiais. Contudo, ele reconhece que há resistências para esse diálogo de ambas as partes.

“Com a sociedade, existe aquela desconfiança com as forças policiais, tanto por essa herança que a gente trouxe do regime militar, quanto da atualidade, onde os jovens negros são as maiores vítimas das ações policiais. E, internamente, a gente enfrenta a resistência de que as instituições não querem discutir essa questão porque é abrir as suas feridas. Toda vez que tu vai tratar uma ferida, ela é dolorida, mas a gente precisa fazer isso”, diz. “A gente não quer prejudicar a polícia, não quer prejudicar nosso trabalho, pelo contrário, a gente quer que as instituições se fortaleçam e sejam reconhecidos pela sociedade. E também queremos conversa com outras instituições do sistema de justiça e segurança. Acho que a gente tem que dialogar com o Ministério Público, tem que dialogar também com o Poder Judiciário, porque tudo está envolvido no mesmo processo da segurança pública”, diz.

 

 

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