Baixo orçamento, culpa terceirizada: como a Funai de Bolsonaro respondia à crise Yanomami. Por Rubens Valente

Documentos de 2018 a 2022 revelam que a invasão garimpeira foi seguidamente alertada, mas não enfrentada

Na Agência Pública

Documentos produzidos pela Funai revelam a debilidade das respostas do órgão de proteção aos direitos indígenas dos governos de Jair Bolsonaro (2019-2022) e de Michel Temer (2016-2018) a uma série de cobranças e denúncias feitas por diferentes órgãos, parlamentares e entidades a respeito da invasão garimpeira, da desnutrição e das doenças na Terra Indígena Yanomami. Os papéis, que somam 592 páginas em 86 documentos, foram entregues no mês passado pela Funai à deputada federal Luciene Cavalcante (PSOL-SP) por meio da Lei de Acesso à Informação. Outras 1.345 páginas também liberadas pela Funai são cópias de ações e inquéritos abertos pelo MPF (Ministério Público Federal) para cobrar medidas do governo.

A parlamentar solicitou que a Funai (desde janeiro renomeada Fundação Nacional dos Povos Indígenas) entregasse os “pedidos de intervenção do órgão em ajuda humanitária à comunidade Yanomami nos anos de 2018 a 2022”. As respostas se repetiram ao longo dos cinco anos: baixo orçamento, falta de pessoal, terceirização de responsabilidades, “não caberia ao Judiciário dizer o que o Executivo deveria fazer” e ações pontuais que não atingiram a estrutura do garimpo ilegal no território indígena. Só em janeiro, com o novo governo, a União empreendeu uma operação de larga escala, ainda em andamento, para expulsar os invasores.

As primeiras denúncias da grande invasão garimpeira foram feitas pelas lideranças Yanomami no início do governo de Bolsonaro, em 2019, mas desde o governo Temer a invasão já era entendida pelos indígenas como um enorme problema. De acordo com o relatório “Yanomami sob ataque”, produzido por organizações não governamentais, em outubro de 2018 a destruição causada pelo garimpo na terra indígena somava pouco mais de 1,2 mil hectares. Em apenas três anos, “a área impactada mais do que dobrou, atingindo, em dezembro de 2021, o total de 3,2 mil hectares”. “O crescimento se acentuou principalmente a partir do segundo semestre de 2020”, diz o relatório.

Uma das primeiras manifestações da Funai no governo Bolsonaro sobre a situação na terra Yanomami registradas no conjunto de documentos enviados à deputada federal data de 6 de fevereiro de 2019. O procurador federal Cayo Cezar Dutra, integrante dos quadros da AGU (Advocacia Geral da União), solicitou o “cumprimento imediato” de uma sentença proferida pela Justiça Federal de Roraima em uma ação ajuizada pelo MPF que buscava a reativação de três Bapes (Bases de Proteção Etnoambiental).

Como um subsídio jurídico para a Funai responder ao ofício de Dutra, outro procurador federal, Igor Barros Santos, disse que a reativação das Bapes seria “bastante complexa”. Ele transcreveu trecho de julgamento de um tribunal regional federal que disse que “o MPF não pode pautar as ações administrativas do Poder Executivo, retirando-lhe o juízo de conveniência e oportunidade sobre a destinação do orçamento público”.

O representante da AGU confirmou que a dotação orçamentária da Funai para 2018 “sofreu significativa redução”, de R$ 125 milhões para R$ 113 milhões, além de sofrer um decreto de contingenciamento de R$ 6 milhões. Ressaltou o gradativo esvaziamento das ações da Funai, cujo quadro de servidores teria “60% não preenchido”. Como exemplo citou que, de 1.799 vagas de agentes em indigenismo (nível médio), “1.649 encontram-se desocupadas”. De 600 vagas de indigenista especializado (nível superior), 167 estavam desocupadas.

O procurador alegou: “Conclui-se que é impossível o pedido de provimento judicial para invadir competência específica do Poder Executivo, uma vez que fere o Princípio da Separação dos Poderes, expresso no artigo 2º da Constituição Federal de 1988, motivo pelo qual deve-se pugnar pela improcedência do pleito inicial”. Ele disse que suas “informações jurídicas”, encaminhadas na forma de um subsídio à decisão final da Funai, “são veículos de comunicação entre os órgãos da AGU e não devem ser juntados em processos judiciais, uma vez que não foram confeccionados para este fim”.

A reativação das três bases na terra Yanomami e de outras cinco em toda a Amazônia era reivindicada por diferentes servidores da Funai desde, pelo menos, 2016, como consta em outro documento. Em outubro de 2017, a Funai informou que “não há como estimar […] a reabertura das bases para este ano”. “Em que pese o MPF afirmar que não cabe a alegação de que não há recursos orçamentários e humanos para a reabertura das Bases, a situação real é que não houve repasses além do teto estipulado na LOA 2017 [lei orçamentária], e que esta ficou muito aquém dos recursos necessários à proteção das terras indígenas com a presença de índios isolados neste ano”, diz ofício da Funai.

Carta para Jair Bolsonaro advertia sobre “situação crítica”

A reabertura das três bases na terra Yanomami só acabou ocorrendo gradativamente ao longo dos dois anos seguintes, em meio às dificuldades orçamentárias e à lentidão da burocracia. Foram várias pressões e cobranças, inclusive da 6ª Câmara da PGR (Procuradoria Geral da República) em agosto de 2019, quando o órgão ainda não era comandado por Augusto Aras. Mas as bases eram apenas uma parte do problema. Em maio de 2019, o líder Yanomami Davi Kopenawa já denunciava que mais de 20 mil garimpeiros operavam dentro do território, causando destruições e levando doenças, como a malária.

Em setembro de 2019, a organização não governamental Survival International, sediada no Reino Unido, enviou uma carta a Jair Bolsonaro tendo como assunto “invasões na terra indígena do povo Yanomami”. “Essa invasão intensificou uma situação de perigo que terá consequências catastróficas a menos que o Estado tome ações emergenciais. Uma consequência clara e devastadora desta invasão é a vulnerabilidade de vários direitos fundamentais, como por exemplo o direito à saúde e à autodeterminação”, diz a carta. Ela pedia “a expulsão dos garimpeiros do território” com “a devida urgência [considerando] esta situação crítica”. Cópia da carta foi enviada a outras autoridades do governo Bolsonaro: Ricardo Salles (Meio Ambiente), Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), Bento Albuquerque (Minas e Energia), Luiz Mandetta (Saúde) e Marcelo Xavier, então presidente da Funai.

Dentro da Funai, a carta da Survival recebeu apenas uma análise de um coordenador setorial. Ele escreveu que, “diante dos apontamentos realizados pela Survival”, devia informar que “a amplitude da atividade garimpeira ilegal na TI Yanomami exige que o tema seja tratado em toda sua complexidade pelo Estado brasileiro, na perspectiva de atuar na proteção territorial da terra Yanomami de maneira efetiva, o que ultrapassa em muito o escopo de atuação da Funai, daí a importância de que o presente [carta] tenha sido encaminhado a diversos setores do governo federal”. E se limitou a falar, de novo, sobre os planos de reativação das Bapes.

Expulsão dos garimpeiros foi pedida em 2020 pelo Ministério Público Federal

Em 2020, o MPF de Roraima voltou à carga, mas agora solicitando à Justiça a condenação da União, da Funai, do Ibama e do ICMBio a fim de obrigá-los a apresentar um plano emergencial de ações e um cronograma “para monitoramento territorial, combate a ilícitos ambientais e extrusão dos infratores ambientais (mormente garimpeiros)” da terra Yanomami. O MPF apontou que, no último ano, houve uma “aceleração do avanço do garimpo criminoso na Terra Indígena Yanomami, com os consequentes prejuízos ambientais, sociais, culturais e sanitários”.

Novamente a AGU, por meio da Procuradoria Federal Especializada junto à Funai, ofereceu “subsídios” para a resposta. Em relatório assinado pela procuradora Rayana de Moraes Costa, falou sobre as dificuldades orçamentárias e de pessoal da Funai e, por fim, argumentou que “a pretensão veiculada na presente ação diz respeito ao mérito das decisões administrativas, fugindo ao âmbito de sindicabilidade do Poder Judiciário”. Ou seja, alegou que não cabia ao Judiciário imiscuir-se em assunto que seria da competência exclusiva do Executivo.

Em manifestação posterior, de outubro de 2020, a Procuradoria na Funai argumentou que deveria ser informado à Justiça Federal “que o Ministério da Justiça e Segurança Pública está negociando, atualmente, as condições para dar cumprimento à decisão judicial em testilha [na ação], inclusive no que concerne à formalização de proposta de Plano de Ação Emergencial para a proteção territorial da TI Yanomami”.

Destruição provocada pelo garimpo em território Yanomami em 2021. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Advocacia da União disse ao STF que expulsão dos garimpeiros era tema “sensível”

Simultaneamente à ação judicial em Roraima, passou a tramitar no STF (Supremo Tribunal Federal) uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), de número 709, sob relatoria do ministro Luís Barroso, ajuizada por organizações indígenas e partidos de oposição ao governo Bolsonaro. Em agosto de 2020, o plenário do STF acompanhou voto do relator e decidiu que o governo não precisaria expulsar imediatamente os invasores de sete terras indígenas consideradas prioritárias, incluindo a Yanomami, mas sim fazer uma espécie de contenção que separasse invasores de indígenas no contexto da pandemia da Covid-19 e, na sequência, apresentar os planos de desintrusão.

Na sustentação oral que fez durante o julgamento no STF, o então advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, argumentou que “foi muito lúcido o senhor relator [Barroso] ao não determinar desintrusões no presente momento porque resultariam as ações de desintrusão potencial maior de circulação do novo coronavírus. […] Ademais, digo eu, o cumprimento de ordem de desintrusão depende da União mas também de órgãos de segurança pública locais que respondem a entes nem sempre plenamente acordes com a medida, o que torna a questão ainda mais sensível e exige diálogo”. Amaral Júnior alegou que “para a União atuar aqui, precisa no mínimo que os poderes locais reconheçam a sua impossibilidade, a sua incapacidade” para “por exemplo, atuar a Força Nacional ou, pior, uma GLO”, operação de garantia de lei e da ordem.

No ano seguinte, em 2021, em meio a várias denúncias e cobranças das organizações indígenas sobre a omissão do governo federal, Barroso repetiu a exigência de que o governo apresentasse e iniciasse a execução dos planos de desintrusão das sete terras indígenas. Em janeiro de 2023, quando o governo Lula expôs o genocídio Yanomami, Barroso deu uma nova ordem, agora determinando a realização das desintrusões.

Funai apontava para Anderson Torres, então ministro da Justiça

No final de 2020, uma outra decisão de um Tribunal Regional Federal também determinou que a União apresentasse um plano de retirada dos invasores da terra Yanomami. Em resposta feita em dezembro de 2020, o setor da Funai responsável pelos indígenas isolados e de recente contato informou que “o planejamento exigido” envolvia “uma articulação de ampla abrangência a cargo do MJSP, por meio de sua Secretaria-Executiva e Secretaria de Operações Integradas–SEOPI”. A Funai, na época, estava vinculada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Conforme a Agência Pública revelou em 17 de março passado, a Seopi era a “área de inteligência” do ministério na gestão de Torres e a partir de dezembro de 2021 soube em detalhes sobre desnutrição infantil e mortalidade entre os Yanomami.

O ofício da Funai explica o papel central do Ministério da Justiça na questão. “A Funai não possui poder de polícia regulamentado, como prevê o art. 2º, inciso IX, de seu Estatuto (Anexo I do Decreto nº 9.010/17), de forma que depende sempre do concurso de forças policiais para executar operações de fiscalização e proteção territorial em terras indígenas. Atualmente não dispomos, contudo, de informações concretas acerca do cronograma, detalhamento e implementação desse planejamento coordenado pela Seopi/MJSP, cujas deliberações ocorrem [em] grande parte em sigilo”, diz o documento.

Em 2021 e 2022, a Funai continuou afirmando que suas ações eram limitadas e necessitavam do apoio de diversos outros órgãos do governo. Mesmo depois de novembro de 2021, quando o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu imagens inéditas de crianças Yanomami desnutridas, reforçando as denúncias levadas a público várias vezes pelas lideranças indígenas e uma reportagem divulgada em meados daquele ano pelo jornal Folha de S. Paulo, que reproduziu denúncias do religioso Carlo Zacquini, um profundo conhecedor do tema Yanomami. Também à Pública denunciou a situação de desnutrição dos yanomami.

Parlamentares enviaram cartas a Torres, que foram direcionadas para a Funai

Reagindo à reportagem do Fantástico, em novembro de 2021 o senador e ex-ministro da Saúde Humberto Costa (PT-PE) enviou uma carta ao então ministro Anderson Torres para saber o que ele estava fazendo no sentido de “instauração de procedimentos para apuração dos fatos e proteção das terras e dos povos Yanomami”.

A carta do senador foi direcionada novamente ao setor da Funai que cuida de indígenas isolados e de recente contato. Os servidores se limitaram a dizer que “a Funai atua na Terra Indígena Yanomami através da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami Ye’kuana (FPEYY), que vem prestando os apoios logísticos, operacionais e técnicos às forças de segurança que agem para evitar conflitos entre invasores e grupos indígenas”. “Cumpre observar que a competência de planejar, coordenar, controlar, avaliar e executar, no âmbito de sua circunscrição, as atividades de investigação criminal e as operações policiais no interior das terras indígenas é da Polícia Federal, cabendo à Funai fornecer os subsídios solicitados e acompanhar as conclusões das investigações dos casos.”

Em setembro de 2022, a deputada federal Sâmia Bomfim, líder do PSOL na Câmara, enviou a Anderson Torres uma série de perguntas sobre a situação na terra Yanomami, mencionando violência, desmatamento, garimpo ilegal, pistas de pouso clandestinas e contaminação por mercúrio. A resposta veio em novembro de 2022, quando Lula (PT-SP) já havia sido eleito para a Presidência da República.

A Funai repetiu argumentos anteriores e novamente atribuiu ao Ministério da Justiça, em especial à Seopi, um papel fundamental. “A Secretaria de Operações Integradas–SEOPI do MJSP tem coordenado ampla articulação interinstitucional com vistas à implementação do Plano Operacional de Atuação Integrada, que prevê o monitoramento territorial da TI Yanomami, combate a ilícitos ambientais e extrusão de infratores ambientais (mormente garimpeiros), no atual contexto da pandemia de Covid-19. Tal Plano cumpriu três ciclos de operações durante o exercício de 2021 e dois no corrente [ano] de 2022, apresentando resultados contabilizados em certo número de apreensões, destruição de maquinário e desmantelamento de garimpos ilegais na TIY, além do indiciamento de infratores. Está previsto ainda um último ciclo de operações de fiscalização e repressão na TIY este ano, no âmbito do citado Plano Operacional, para os meses de novembro e dezembro. Relatórios e maiores informações podem ser solicitados junto ao setor competente do MJSP.”

Na resposta, a Funai reiterou que “por não possuir poder de polícia regulamentado”, o órgão “atua nas ações de fiscalização e repressão a ilícitos na TIY basicamente através de apoio logístico e interlocução com as comunidades indígenas a instituições como o Ibama, Polícia Federal, Força Nacional de Segurança Pública, Exército e Polícia Militar Ambiental”.

Conselho Indígena de Roraima pediu socorro aéreo urgente

O governo alegava que promovia ações de repressão aos garimpeiros, mas a invasão no território prosseguiu implacável, espalhando doenças e morte. Em 12 de dezembro de 2022, o CIR (Conselho Indígena de Roraima), uma das principais organizações indígenas do Estado, enviou uma carta dramática e urgente de novo ao então ministro Anderson Torres. O CIR citou a circulação de novas imagens “de crianças em situação de desnutrição e a tragédia humanitária em curso na terra indígena Yanomami, causada pelo garimpo ilegal”.

“É uma situação dramática que o povo Yanomami está vivendo e precisa de atenção urgente deste Ministério”, implorou o CIR. A entidade solicitou “em caráter de urgência do MJSP [Ministério da Justiça] a disponibilidade de aeronaves, helicópteros e recursos humanos para apoiar esta organização e lideranças Yanomami, principalmente para garantir a segurança das pessoas e colaboradores que estarão na área”.

Um dia depois, a coordenadora-geral do gabinete do ministro Torres encaminhou o ofício do CIR à chefia de gabinete do presidente da Funai, Marcelo Xavier, que por sua vez remeteu-o ao setor de indígenas isolados da Funai, novamente encarregado da resposta. O gabinete do ministro pediu que a resposta fosse enviada “diretamente ao interessado”, o CIR. Ou seja, nem ficou curioso sobre o que a Funai poderia responder. O setor do órgão indigenista então listou “relatório do acompanhamento das entregas das cestas básicas” e a necessidade de “incluir no planejamento anual de 2023, ações estruturantes de forma intersetoriais e agencias interinstitucionais de apoio à segurança alimentar, visando a melhoria da qualidade de vida do povo Yanomami e sua independência alimentar”.

No mês seguinte, após a posse de Lula na Presidência da República, o novo governo descortinou o tamanho do genocídio Yanomami, com 570 crianças tendo morrido de causas evitáveis, como desnutrição e diarreia, durante os quatro anos do governo de Bolsonaro. O número não abrange adultos e pode ser muito maior, pois houve também um descontrole no sistema de notificação de saúde, de acordo com o Ministério da Saúde.

Imagem destacada: Documentos da Funai de 2018 a 2022 revelam que a invasão garimpeira no território yanomami foi seguidamente alertada ao governo Bolsonaro – Fernando Frazão/Agência Brasil

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