O que é ser mãe para uma mulher negra?

A pesquisadora Rachel Gouveia Passos fala, ao PULSO, sobre seus estudos com a saúde mental com aquelas a quem não é dado nem o direito de existir. E reflete sobre a “colonialidade do cuidado”, que as joga à marginalidade da família

por Gabriela Leite, em Outra Saúde

Na segunda metade do século XX, a historiadora Lélia Gonzalez refletia sobre o papel da mãe preta, nos séculos de escravidão no Brasil, e sua importância em passar seu conhecimentos ancestrais, sua linguagem e seu cuidado aos filhos das sinhás. E qual o lugar dessas mulheres, no século XXI? O livro Na mira do fuzil – a saúde mental das mulheres negras em questão, de Rachel Gouveia Passos, busca puxar esse fio e olhar para as violências a que estão submetidas ainda hoje – também no que diz respeito ao maternar.

Rachel foi entrevistada no PULSO, programa em vídeo de entrevistas, para contar um pouco sobre suas reflexões e as observações que faz em seus estudos, que giram em torno da luta antimanicomial, do feminismo e do antirracismo. Segundo a pesquisadora, a mulher negra no Brasil de hoje está em um lugar de destruição, de morte permanente. Em seu livro (leia capítulo), ela traz alguns depoimentos de mães de favelas do Rio de Janeiro que perderam seus filhos para a violência policial. Rachel sustenta que essas pessoas estão sempre na mira do fuzil.

A essas mulheres que perdem os filhos, não é dado o direito de fazer o luto, pois a violência está sempre presente em seus locais de moradia. “Elas têm que dar conta da gestão de vida, tentar continuar trabalhando, tentar buscar reparação, tentar afirmar a memória do filho, tentar lutar pela justiça… Eu falo ‘tentar’ porque, no meio do caminho, algumas chegam a morrer por causa da dor, por adquirir doenças evitáveis”, lastima Rachel.

E essa dor, que é vivida por tantas mães que compartilham territórios de violência extrema, é sempre cercada pela medicalização. “É um caminho de busca de alívio de uma dor que tortura, que mutila”, conta a pesquisadora, que observou que o uso de psicotrópicos é muito alto entre elas. Esses medicamentos, sob o ponto de vista antimanicomial, podem ser vistos inclusive como uma atualização da camisa de força. Porque são oferecidos com a estratégia de silenciamento.

Rachel faz um paralelo claro entre o uso de antidepressivos e outros psicotrópicos nessas comunidades com o encarceramento em manicômios daqueles que a sociedade considera “perigosos”, “loucos”, os que precisam ser contidos. Ambos os dispositivos são utilizados como forma de controle, de manter aquelas mulheres em seu lugar de subalternidade.

Como numa atualização dos tempos coloniais, as mulheres negras permanecem sendo as principais responsáveis pelo trabalho de cuidado da sociedade – seja ele remunerado ou não. “Eu identifico que a manutenção da existência da família branca é feita por meio do trabalho das mulheres negras, e que nega a possibilidade de uma construção da família negra”, analisa Rachel. Essa, para ela, representa mais uma morte dos filhos das mães negras.

Fica claro, pela fala da pesquisadora, que a solução para essa ferida na sociedade brasileira está em grandes transformações, a começar pelo fim da mal-chamada “guerra às drogas” – que é, de fato, guerra contra a população negra. Mas é possível agir também por dentro das comunidades, para que mulheres que estão sofrendo agora possam começar a ver um fim a um sofrimento tão gritante.

Trata-se da “clínica da delicadeza”, noção elaborada por Rachel em seu livro. Ela explica que, para construí-la, é preciso voltar aos quilombos dos Palmares. “E nesse resgate”, explica ela, “a gente dialoga com a proposta da Atenção Psicossocial, que é o campo em que a gente defende uma concepção de saúde mental pautada na liberdade, na autonomia e nos direitos humanos. É preciso avançarmos nessa construção de um outro cuidado, que seja multi interdisciplinar”. A clínica da delicadeza, para a pesquisadora, tem potência na afirmação da vida. “Ou seja, uma clínica que extrapole os serviços especializados, que esteja no território, na comunidade, que entenda as diferenças, a multiplicidade de existir, que crie recursos dentro da possibilidade daquele território e daquela realidade.”

Foto: Aline Massuca/Metrópoles

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