Licença não pode ser no grito, diz ex-presidente do Ibama sobre petróleo no Amazonas

Suely Araújo, primeira a negar exploração de uma petroleira na Foz do Amazonas, analisa atual veto à Petrobras

Por Giovana Girardi, em Agência Pública

As falhas no pedido de licenciamento da Petrobras para prospecção de petróleo na Foz do Amazonas, e que levaram à negativa da licença por parte do Ibama na semana passada, são similares às que fizeram com que um outro projeto na região, da empresa Total, fosse vetado em 2018. Erros cometidos tanto no pedido anterior, quanto no fato de que nenhum governo até hoje realizou estudos aprofundados sobre as condições para exploração de óleo na margem equatorial do país, poderiam ter servido de lição para que o processo agora pudesse ter tido um destino diferente.

Essa é a opinião de Suely Araújo, especialista-sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (entre 2016 e o início de 2019). Ela foi a responsável por vetar em 2018 o outro pedido de licenciamento de atividades de perfuração na região – de cinco blocos então sob controle da empresa Total.

Em entrevista à Agência Pública, Araújo comenta as semelhanças e as diferenças entre os dois processos no intervalo de cinco anos. Enquanto os erros são iguais, diz ela, as reações à decisão foram muito diferentes – chegando a ser desproporcionais agora, na opinião da ambientalista. Com experiência não só de ter presidido o Ibama, mas de ter atuado por quase 30 anos como consultora legislativa da Câmara dos Deputados, Araújo está acostumada com as pressões políticas, que ela diz serem até esperadas.

Para ela, porém, a reação à negativa sobre o chamado bloco 59, que evidenciou até um “fogo amigo” – com as críticas do líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (ex-Rede-AP) –, “passou dos limites”. “Reações negativas sempre existiram, mas a reação que está ocorrendo agora é inaceitável. O grupo que defende a licença do bloco 59 está propositalmente politizando uma decisão que é técnica. Não cabe a nenhuma outra autoridade, a não ser o presidente do Ibama, decidir sobre essa licença. Não cabe aos ministros, não cabe ao presidente da República.´Licenças ambientais não podem ser geradas pela pressão dos políticos, no grito”, disse.

Ela diz não acreditar, no entanto, que isso evidencie um racha político que estaria deixando a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, isolada no governo. “Em relação à narrativa que o presidente Lula tinha nos mandatos anteriores, a questão ambiental ganhou uma robustez que ela nunca teve. Eu acho que as posições da Marina e do Ibama estão coerentes com a narrativa do presidente da República.”

Oficialmente, Lula não se posicionou sobre o assunto, mas neste sábado, em discurso no encontro do G7, no Japão, ele voltou a adotar o discurso que vem desde a campanha de preocupação com a agenda climática e ambiental.

“Quando o G7 foi criado, em 1975, a principal crise global girava em torno do petróleo. 48 anos depois, o mundo ainda não conseguiu se livrar da sua dependência dos combustíveis fósseis”, foram suas primeiras palavras direcionadas aos demais líderes.

“Com o potencial que temos em energia solar, eólica, biomassa, etanol, biodiesel e hidrogênio verde, o Brasil será até o final do meu mandato um exportador de sustentabilidade”, complementou.

Na quarta-feira passada (18), o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, seguiu parecer técnico do órgão e negou licença para a Petrobras perfurar o bloco 59, na Foz do Amazonas, sob a justificativa de que havia um “conjunto de inconsistências técnicas” no pedido. “Não restam dúvidas de que foram oferecidas todas as oportunidades à Petrobras para sanar pontos críticos de seu projeto, mas que este ainda apresenta inconsistências preocupantes para a operação segura em nova fronteira exploratória de alta vulnerabilidade socioambiental”, afirmou Agostinho em despacho.

Na entrevista a seguir, Araújo comenta as implicações da decisão do Ibama e a situação das demais bacias onde ainda não foram liberados o estudo ou a exploração de petróleo.

Foi durante sua gestão como presidente do Ibama que a primeira licença para aquela região foi vetada. Como foi o processo na época e quais semelhanças com o que ocorreu agora?

Eu rejeitei cinco blocos da Total que são próximos ao bloco 59 que foi rejeitado agora pelo Agostinho. Todos ficam no mesmo conjunto de blocos, todos subindo no Oiapoque em direção à fronteira marítima com a Guiana Francesa. Todos os projetos com o mesmo tipo de problema. Ali é uma região pouco estudada, que se sabe que tem um alta diversidade biológica, mas ainda sem muitos estudos. E é uma região única, porque é onde o Rio Amazonas despeja uma quantidade maluca de sedimentos e ao mesmo tempo um sistema recifal que se espalha por uma parte boa da da Margem Equatorial. Além disso, é uma região com condições de correntes muito complexas. São muito fortes, e a corrente principal segue em direção das Guianas. Ou seja, em caso de acidente com vazamento, em menos de dez horas o óleo atingiria águas internacionais. Esse é um dos problemas que a equipe do Ibama sempre aponta. O gerenciamento de um acidente de maior proporção na região é muito complexo. As correntes mais profundas, pelo que mostram as modelagens, poderiam em tese jogar óleo para nossa costa, mas o rolo mesmo é espalhar óleo pelo mar e não ter condições de controlar pela intensidade das correntes. E a Petrobras não está acostumada com esse tipo de condição. Não é igual ao que ela tem na bacia de Campos nem na bacia de Santos.

Quer dizer que não faz muito sentido esse argumento que a Petrobras vem usando de que já tem uma larga experiência em explorar em águas profundas e que nunca teve um acidente? Isso não valeria ali para a região por ela ser assim tão diferente de onde a Petrobras já atua?

Olha, a Petrobras tem uma experiência grande. Tem tecnologias avançadas, sempre teve em termos de exploração de águas profundas. Eu acho que até como brasileiro a gente tem que se orgulhar disso. Mas não podemos ser irresponsáveis achando que porque nunca houve nenhum grande acidente nesse tipo de exploração que não vai lidar com ocorrências no futuro, especialmente em regiões mais complexas. Tem de ter respostas técnicas para isso. Não é porque uma empresa específica nunca teve problema que não pode acontecer uma tragédia com essa mesma empresa. Esse tipo de argumentação não é válida. Ninguém está duvidando da capacidade técnica da Petrobras, mas ela tem que demonstrar no processo que ela tem condições de gerenciar acidentes no chamado plano de emergência individual, para cada empreendimento. E isso no caso do bloco 59 não foi demonstrado e também não tinha sido demonstrado pela empresa Total nos blocos que eu rejeitei em 2018. Eram os mesmos problemas: dificuldades de mostrar a operacionalização do plano de contenção de acidentes e de como lidar com a biodiversidade, que ainda é bastante desconhecida. Exatamente os mesmos problemas que a Total enfrentou no licenciamento de 2018 estão sendo colocados no parecer técnico do bloco 59. O que mostra que o correto, antes de a ANP (Agência Nacional de Petróleo) ofertar os blocos, teria sido fazer uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS).

Que é o estudo que o Agostinho pediu agora?

Ele pediu [que se retomassem as ações para realizar] a AAAS, que é uma espécie do gênero avaliação ambiental estratégica, na qual em vez de se analisar um empreendimento, analisa uma região, um conjunto de empreendimentos. No caso de exploração de petróleo, é a AAAS. Nós temos uma portaria interministerial de 2012, feita pelos Ministérios do Meio Ambiente e das Minas e Energia, que tornou a produção de AAAS obrigatória. Só que ela tem um parágrafo lá nas exposições transitórias, que deveria ser transitória, que fala que enquanto as avaliações ambientais de área sedimentar não forem realizadas, o governo pode consultar os órgãos ambientais antes dos leilões. E é isso que tem sido feito desde então. Transformaram uma regra transitória em regra geral. Órgãos como o ICMBio até são ouvidos, mas ele pode dizer, por exemplo, que há espécies ameaçadas de extinção naquela dada região, mas não têm como vetar esse leilão. Essa manifestação é precária, ela não substituiu a análise regional. Por isso deveria ser algo transitório. E já tem mais de dez anos que o país não cumpre a regra de fazer AAAS. Na região da Foz isso não foi feito, nem nas bacias que estão ao lado da foz.

A quem cabe fazer essa avaliação?

Ao governo, porque é para a região toda. Na AAAS, a bacia sedimentar é mapeada e se estabelece quais são as áreas aptas da produção de petróleo, as não aptas e as que ficam em moratória para estudos futuros. O correto seria fazer isso antes da oferta pública do bloco. Assim seria possível ofertar esses blocos com muito mais segurança. Só seriam ofertados blocos nas áreas consideradas aptas para a produção de petróleo. Depois começa o processo de licenciamento. Mas já em melhores condições de saber o real impacto do ponto de vista acumulativo na região. A equipe sempre alertou para a necessidade de realização desse estudo regionalizado na Foz do Amazonas, porque é importante entender a região como um todo e não apenas aquele pedacinho do bloco em questão.

E quando você fala que é o governo que tem que fazer, seria o Ministério de Minas e Energia?

Sim, a liderança é do Ministério das Minas e Energia, com o Meio Ambiente acompanhando.

Mapa da Petrobras mostra plano de exploração de blocos na Margem Equatorial do Brasil, que vai do AP ao RN

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