Planos de saúde cancelam contratos, ANS releva

A tragédia da saúde-mercadoria: operadoras, em crise, estão prejudicando usuários fragilizados – em geral, pacientes com autismo ou câncer, que fazem tratamentos custosos. Agência reguladora faz vista grossa

por Gabriel Brito, em Outra Saúde

A semana que passou ficou marcada pela denúncia de diversas famílias sobre uma forma tenebrosa de economia praticada pelas seguradoras de saúde: o corte unilateral de coberturas e terapias para seus usuários com diagnósticos de autismo ou câncer. A partir de uma enxurrada de denúncias, em especial ao gabinete da deputada Andrea Werner, a Assembleia Legislativa de São Paulo pediu uma investigação ao Ministério Público.

“O que acontece às vezes é o plano de saúde começar a criar muitas dificuldades, muitas burocracias e às vezes até aumentos abusivos para expelir essas pessoas. Planos criam todo um cipoal burocrático ou descredenciam tratamentos essenciais, gerando tantas dificuldades que acabam levando as pessoas a saírem dos planos”, explicou André Naves, defensor público envolvido na investigação, ao Outra Saúde.

As investigações estão apenas começando. Mas, diante da quantidade de denúncias, inclusive com repercussão midiática, parece haver um movimento deliberado para cortar ao máximo os benefícios dos usuários mais caros aos planos privados. Até porque a própria Agência Nacional de Saúde (ANS), em postura defensiva, alegou que rescisões intempestivas são permitidas – o que dá a entender que de fato a prática está disseminada.

Cabe destacar que o mercado de saúde sofre uma forte contração econômica nos últimos anos. Apesar de lucros excepcionais no início da pandemia, seu prejuízo operacional foi de cerca de R$ 11 bilhões em 2022, contornado pelos resultados positivos obtidos pelas grandes operadoras no mercado financeiro. De toda forma, parece óbvio que a conta não deve ser repassada a famílias que pagam caro para cuidar de tratamentos de câncer, terapias para crianças autistas ou qualquer outra enfermidade.

Como mostrou o Outra Saúde, tampouco é o primeiro expediente das operadoras de saúde no sentido de criar travas para o usufruto de tratamentos por parte deste público. Constrangimentos em relação à exigência de biometria para crianças autistas têm sido relatados por famílias, a ponto de algumas seguradoras terem recebido multas milionárias do Procon.

“A ANS tem sido cada vez mais complacente com a situação”, explicou à época Vanessa Ziotti, da organização Lagarta Vira Pupa, que reúne mães de crianças autistas e luta por políticas de inclusão. “Suas normativas são descumpridas porque as seguradoras não oferecem as terapias de sua obrigação, impõem limitação de sessões, de horários, de ingresso na apólice para pessoas com deficiência, carência estendida… Não temos notícia de que a ANS esteja fazendo o papel dela de agência reguladora, muito pelo contrário.”

De toda forma, para além de tecnicalidades jurídicas e contratuais, não é possível perder de vista os parâmetros éticos. Estamos falando de pessoas altamente vulnerabilizadas por conta de problemas de saúde e que dependem do sucesso de seus tratamentos para terem a chance de uma vida saudável e digna. E é isso que André Naves faz questão de ressaltar.

“É importantíssimo eu declarar aqui que a deficiência não é referente à pessoa, mas ao ambiente e à estrutura social. Esta que é deficiente, não a pessoa, que só tem uma diversidade na sua funcionalidade. Ninguém pode ser excluído de um direito por uma característica pessoal, por uma condição de saúde, isso não tem cabimento, como deixam claro a convenção de Nova York, a Lei Brasileira de Inclusão e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A pessoa com deficiência tem direito a uma assistência integral e dependendo de suas condições tem, sim, direito a atendimento prioritário, tanto pelos aparelhos públicos como privados”, afirmou o defensor público.

Se confirmadas as denúncias das famílias, o Estado não poderá ficar sem agir, sob pena de se abrir um precedente perigoso. O instinto selvagem do capital mais uma vez castiga o lado mais fraco da corda para salvaguardar seus resultados financeiros e, involuntariamente, revela a tragédia de se vender saúde, um direito essencial, como mais uma mercadoria numa prateleira de serviços a serem consumidos.

“O Estado poderia e deveria sancionar pesadamente essas posturas, a fim de mostrar que elas não têm cabimento numa sociedade democrática e no limite deve descredenciar quem faz isso do sistema de saúde. A primeira coisa que deve fazer é garantir o tratamento a todos os usuários. O segundo passo é aumentar as multas, penalidades. No limite, havendo reiteração, pode se chegar ao descredenciamento, o que seria raro, mas pode acontecer”, explicou André.

Confira a entrevista completa com o defensor público André Naves.

Como estão as investigações sobre o cancelamento de planos de saúde que atendem usuários com diagnóstico de autismo?
O assunto surgiu no gabinete da deputada Andrea Werner, aqui na Assembleia Legislativa de São Paulo, quando surgiram algumas denúncias. Ainda não há nada comprovado, ainda está nebuloso. Agora, a comissão de direitos do consumidor da Assembleia Legislativa se debruça sobre o caso e está pedindo uma análise ao Ministério Público. Se for verdade, é um crime, plano de saúde não pode fazer isso.

Isso já aconteceu antes?

Não há um caso confirmado. O que acontece às vezes é o plano de saúde começar a criar muitas dificuldades, muitas burocracias e às vezes até aumentos abusivos para expelir essas pessoas, entendeu? Isso realmente acontece, planos criam todo um cipoal burocrático ou descredenciam tratamentos essenciais, gerando tantas dificuldades que acabam levando as pessoas a saírem dos planos.

Gostaria de lembrar que isso vai totalmente contra a Constituição e a Convenção de Nova York sobre os direitos da pessoa com deficiência, que foi recepcionada como emenda constitucional no Brasil. Ou seja, os direitos das pessoas com deficiência também têm status constitucional. Nenhuma lei pode ir contra isso. Normalmente as seguradoras respondem afirmando que há uma norma da ANS que as deixam agir dessa forma (negar tratamentos). Mas não é verdade, inclusive, nos debates acerca do rol taxativo, realizados no ano passado, isso foi abordado (ver aqui).

É importantíssimo eu declarar aqui que a deficiência não é referente à pessoa; é referente ao ambiente e à estrutura social. Esta que é deficiente, não a pessoa, que só tem uma diversidade na sua funcionalidade. Cada um de nós tem suas especificidades, suas particularidades, suas características pessoais, ninguém pode ser excluído de um direito por uma característica pessoal, por uma condição de saúde, isso não tem cabimento, como deixam claro a convenção aqui citada, a Lei Brasileira de Inclusão e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, onde se destacam alguns direitos que já eram constitucionais, mostrando que a pessoa com deficiência tem direito a uma assistência integral e dependendo de suas condições tem, sim, direito a atendimento prioritário, tanto pelos aparelhos públicos como privados.

E o que as famílias que fizeram a denúncia relatam do tratamento que recebem de tais planos? Elas estariam sendo impedidas de contratá-los devido a uma condição de saúde do usuário?

Como disse, estamos investigando, mas existem denúncias de abusos e de aumento de burocracia, de dificuldades. Descredenciamento, infelizmente, sabemos que acontecem com uma frequência maior do que nós gostaríamos. E infelizmente as autoridades brasileiras, me refiro principalmente às agências reguladoras, parecem fechar os olhos.

Quais as medidas a serem tomadas pelo estado caso o teor das denúncias se confirme?

Não vou entrar na esfera criminal, pois isso seria uma consequência posterior. Mas o Estado poderia e deveria sancionar pesadamente essas posturas, a fim de mostrar que elas não têm cabimento numa sociedade democrática e no limite deve descredenciar do sistema de saúde quem faz isso. A primeira coisa que deve fazer é garantir o tratamento a todos os usuários. O segundo passo é aumentar as multas, penalidades. No limite, havendo reiteração, pode-se chegar ao descredenciamento, o que seria raro, mas pode acontecer.

Quais são as consequências práticas pras famílias afetadas, como isso repercute na sociedade e com quem vivencia isso? O que você pode contar de sua experiência pessoal em contato com este tipo de coisa?

O que eu poderia falar é que a inclusão social deve trazer pessoas diversas, pessoas plurais, ao seio da sociedade. É uma experiência valiosa para todos. Ou seja, quando um autista tem os direitos assegurados ao tratamento médico não é só ele que está ganhando, é a sociedade inteira. Quando um autista tem seus direitos de saúde violados é um direito humano violado não apenas dele, mas de toda a sociedade. É importantíssimo saber que as individualidades – e não confundamos com individualismo, que é a doença da individualidade quando contaminada pelo egoísmo – só se realiza na coletividade. Ou seja, cada pessoa só encontra as suas plenas capacidades dentro da coletividade.

Por exemplo: um escritor só se realiza quando sua obra é lida. Eu não estou falando de ganhar dinheiro, o que pode acontecer, mas da realização pessoal. O mais importante é isso, que faz a sociedade evoluir, progredir. Este tipo de violação aos direitos humanos é uma violação terrível para toda sociedade, porque todos nós saímos perdendo com essa exclusão. Saímos perdendo em que sentido? Não aprendemos com as experiências uns dos outros. Não aprendemos com pontos de vista diversos. Não aprendemos com experiências de todas as pessoas, que podem contribuir da melhor forma possível para a sociedade, dentro de suas condições.

Direitos humanos são isso: a garantia da dignidade completa de cada pessoa, para que ela tenha condições de se tornar a melhor versão dela mesma e, segundo os seus interesses próprios, conseguir contribuir para toda a sociedade.

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