A não compreensão da cosmovisão e cosmopolítica da população indígena tem prejudicado há 523 anos o respeito e apoio às causas indígenas.
Por Vinício Carrilho Martinez, Marcia Camargo e Erilza Braz dos Santos, no Blog da Boitempo
Nossa história se inicia no auge dos debates sobre a inclusão dos direitos indígenas em 1988, quando Ailton Krenak e apoiadores subiram rumo ao Congresso Nacional em defesa dos povos originários. Desde então, a Constituição Federal de 1988 representa uma quebra na visão colonialista, abrindo espaço para uma postura de respeito à identidade cultural e aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas – assim, ficando implícito o direito já existente às terras por eles habitadas.
O artigo 231, da CF88 (BRASIL, 1988), diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E mais, o §4 diz, “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Paradoxalmente, as terras indígenas vêm sendo cada vez mais invadidas e atacadas por fazendeiros, madeireiros, grileiros, garimpeiros provocando grandes desmatamentos, genocídios e perda grande dos conhecimentos e população indígena brasileira.
Em 2018, o antropólogo Stephen Baines dizia à Agência Brasil, citando convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos povos indígenas (PEDUZZI, 2018):
(…) é difícil para os índios planejar grandes voos do ponto de vista de recursos, sem que, antes, seja resolvida a questão da gestão territorial, o que inclui a segurança jurídica que só é possível a eles após terem suas terras demarcadas e homologadas. É fundamental que se tenha respeito pelos índios e pela sua forma de viver e produzir. Para tanto, é necessária a efetivação dos direitos previstos tanto na Constituição como pelas convenções internacionais.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), somente 13,8% de todas as terras do Brasil são reservadas aos povos originários. No país, há 732 terras indígenas (em diferentes etapas do processo de demarcação). Dessas, somente 487 foram homologadas (quando o processo de demarcação foi concluído) desde 1988. É importante ressaltar que o governo, entre os anos de 2019 e 2022, foi o primeiro e único a não demarcar nenhuma terra indígena (ACERVO ISA, 2023).
No relatório de violência contra os povos indígenas no Brasil, com dados do ano de 2019, lê-se (CIMI, 2019, p.6):
O aumento vertiginoso de invasões, grilagens, incêndios criminosos, loteamentos ilegais, ameaças, conflitos, descasos no atendimento à saúde e à educação, criminalização, dentre outras violações a seus direitos, evidencia que os indígenas enfrentam um dos momentos históricos mais desafiadores desde a invasão dos colonizadores.
Ainda no relatório encontramos o seguinte dado: “Segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento nas terras indígenas da região amazônica, entre agosto de 2018 e julho de 2019, foi o maior registrado em 11 anos, com 42,6 mil hectares derrubados” (ACERVO ISA, 2023).
De acordo com o dossiê lançado no dia 16 de março de 2023, um dossiê inédito da Aliança em Defesa dos territórios, a expansão dos garimpos ilegais em terras indígenas está fortemente ligada à fragilidade das leis, à falta de fiscalização, à omissão das autoridades e à vulnerabilidade das regiões exploradas. O dossiê intitulado “Terra Rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira” (ACERVO ISA, 2023), apresenta dados de terras Yanomami, Munduruku e Kayapó, que comprovam que o garimpo nas Terras Indígenas (TIs) na região cresceu em 495% entre 2010 e 2020, com a exploração de ouro principalmente. As afirmações contidas no documento, que traz consigo comprovações dos fatos descritos, sinaliza as graves violações aos Direitos dos Povos Indígenas, como o direito à vida, ao território, à autodeterminação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à segurança e direito à saúde e alimentação.
Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (MACIEIRA, 2022), que leva em consideração os anos de 2019 e 2020, analisou com profundidade as permissões de extração de substâncias minerais, lavra garimpeira no país. Dentre os resultados, tem-se que 90% das áreas de exploração mineral estavam fora de locais autorizados. Esta realidade é observada em diversos territórios indígenas, a extração de minerais, as invasões de terras indígenas com implementação da monocultura, grileiros, fazendeiros, genocídios, desmatamento, incêndios, e várias outras formas de violência contra o povo indígena, mas também contra toda humanidade.
Vale aqui ressaltar a importância do território, a relação que indígenas possuem com a terra. Diferente do que a maioria da população considera, a luta pelo território não é uma luta pela posse do território como bem material, e sim pela luta do território em forma de defesa e proteção de toda humanidade. A não compreensão da cosmovisão e cosmopolítica da população indígena tem prejudicado há 523 anos o respeito e apoio às causas indígenas.
A relação que indígenas possuem com território, natureza, terra, necessita de escuta e espaço de fala. Como cita Kena Azevedo Chaves: “Povos indígenas encontram em seus territórios a base material para organização da vida” (TZUL, 2015 apud CHAVES, 2021, p. 52). É também através do território que sua existência enquanto povo, a partir de uma perspectiva identitária ligada às cosmologias específicas, se faz possível (ALMEIDA, 2012 apud CHAVES, 2021). Ainda sobre a cosmologia indígena, temos as fortes palavras de Fabiane Medina da Cruz em entrevista para PEITA em 2021 (CRUZ, 2020, p. 48):
(…) conforme a economia política ancestral, o mundo tem uma natureza autônoma, a qual não podemos possuir. A natureza e os elementos da cosmologia, além de possuírem espíritos próprios, são coisas que não podem ser ‘dominadas’ pelos seres humanos, uma vez que o cosmos tem muito mais poder sobre a vida dos seres vivos do que o contrário. Portanto, a relação da pessoa indígena com o mundo, a vida e a natureza é uma relação muito mais de respeito do que dominação.
Povos indígenas celebram a terra, pedem permissão à terra e lutam pelos territórios e libertação dos invasores e devastadores dos ecossistemas, lutam pela harmonia com a Mãe Terra, lutando por todos nós, 8 bilhões de seres humanos espalhados no mundo.
O Brasil infelizmente retornou ao “Mapa da fome”, conforme relatório da FAO (Food and Agriculture Organization) publicado no ano de 2022 (FAO, 2022). Esse cenário de insegurança alimentar e fome intensificou-se nos últimos anos e a cosmovisão indígena de 300 povos do país pode contribuir no processo de segurança alimentar, como propõe o CIMI (2023) na notícia vinculada do dia 28 de março de 2023 com o tema “Territórios Livres” e o lema “Povos sem fome”.
Dia 11 de janeiro de 2023, tivemos a honra de acompanharmos a posse de Sonia Guajajara no primeiro Ministério dos Povos Indígenas criado no governo Lula, em seu terceiro mandato, em resposta às reinvindicações históricas do movimento indígena (cacica Uruba). Durante a sua posse, Sonia ressaltou:
Precisamos voltar a pensar as políticas de educação para os indígenas, valorizando as identidades plurais, formando professores indígenas, ampliando o acesso e a permanência no ensino superior. As terras indígenas, os territórios habitados por demais povos e comunidades tradicionais, e as unidades de conservação são essenciais para conter o desmatamento no Brasil e para combater a emergência climática enfrentada por toda a humanidade. Sabemos que não será fácil superar 522 anos em quatro, mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós (G1, 2023, p. 1).
Junto com a criação do Ministério e a tomada de posse, veio a realidade enfrentada de povos indígenas entre os anos de 2019 e 2022. Encontravam-se invisibilizados, como foi possível perceber com a crise humanitária enfrentada pelo povo Yanomami, com mais de 11000 casos de malária, mortes causadas por mercúrio e desnutrição, violência sexual, assassinatos e desaparecimentos, como relata Ricardo Weibe Tapeba, secretário de saúde indígenas (SESAI).
Diversos territórios indígenas aguardam a emissão da portaria declaratória pelo Ministério da Justiça, como é o caso do TI Barra Velha, situado no extremo sul da Bahia. Desde 2009, o TI teve publicado o relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área pela Funai e, mesmo sem nenhum impedimento para a emissão, ainda não teve a portaria emitida.
Vale aqui ressaltar a instrução normativa 09/2020 publicada pela Funai sob o último governo, que evidenciou a pressão a esses territórios, liberando a certificação de fazendas sobre terras indígenas ainda não homologadas, causando conflitos, violências e mortes. Durante este período, o efeito foi imediato após a normativa, um total de 51 fazendas certificadas sobre o território indígena Barra Velha e Comexatibá, sobrepostas integralmente às terras indígenas. Entre abril e agosto de 2020, foram 10 certificações de propriedades sobre o TI Comexatibá e 41 sobre o TI Barra Velha, sendo a maioria pertencentes a fazendeiros derrotados no STJ. De acordo com o CIMI e acompanhamento de fatos diários ocorridos no TI Barra Velha, fazendeiros têm negociado e financiado atividades nestas áreas, aumentando a pressão e devastação do território já reconhecido oficialmente como tradicional ocupado pelo povo Pataxó (CIMI, 2023).
No dia dos Povos Indígenas, 19 de abril de 2023, a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), anunciou a criação de 6 grupos técnicos para identificação e delimitação de terras indígenas nos estados do Acre, Amazonas, Rondônia e Rio Grande do Sul. Atos estes que já foram assinados pela presidenta da FUNAI, Joenia Wapichana, juntamente com a ministra dos povos indígenas Sonia Guajajara.
Do dia 24 ao dia 28 de abril de 2023, aconteceu a maior mobilização indígena em Brasília (DF), o ATL (Acampamento Terra Livre), que está em sua 19ª edição e contou, como uma das pautas centrais, a emergência climática, reforçando a importância da demarcação de terras indígenas, visto que essas funcionam contra o desmatamento, já identificado no combate ao aquecimento global. Foi decretado, durante o evento, na quarta feira dia 26, a emergência climática e o debate sobre a contribuição e comprometimento dos povos originários na solução. Foi também anunciada a reativação dos trabalhos do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), para que sirva como posicionamento do movimento indígena na discussão sobre o tema em nível nacional e no exterior, aumentando assim a interlocução com os governos. Foram discutidas também ações em relação ao Judiciário com a principal demanda a rejeição da tese do marco temporal, que já se arrasta há anos em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) e deve ser retomada pela Corte dia 7 de junho de 2023.
Será difícil consertar tudo que foi abandonado durante este período de 2019 a 2022, mas muitos espaços de fala estão sendo abertos, muitas denúncias estão sendo ouvidas e aguardamos que 2023 seja o início de grandes resoluções, que a ATL seja semente de muitas soluções e atenções às comunidades indígenas que resistem, persistem e insistem na busca de um mundo melhor a todos e às suas vidas!
Referências bibliográficas
ACERVO ISA. Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira. Brasília: Aliança em Defesa dos Territórios, 2023.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Emendas Constitucionais. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
CHAVES, Kena Azevedo. Corpo-território, reprodução social e cosmopolítica: reflexões a partir das lutas das mulheres indígenas no Brasil. Scripta Nova Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Bracelona, v. 25, n. 4, 2021.
CIMI – CONSELHO ÍNDIGENA MISSIONÁRIO. Alvo de violência, povo Pataxó cobra demarcação e presença do governo federal no extremo sul da Bahia. CIMI, 2023.
CIMI – CONSELHO ÍNDIGENA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados 2019. CIMI, 2020.
CIMI. Semana dos povos indígenas.
CRUZ, Fabiane Medine. Feminismo Indígena ou Nhandutí Guasu Kunhã: a rede de mulheres indígenas pelos direitos ancestrais e reconhecimento ético. In: DORRICO, Julie; DANNER, Fernando; DANNER, Leno Francisco (orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: autoria, autonomia e ativismo. Porto ALegre: Editora Fi, 2020.
FAO. The State of Food and Agriculture 2022. Leveraging automation in agriculture for transforming agrifood systems. Rome: FAO, 2022.
G1. No comando do Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara é a primeira indígena a chefiar uma pasta. Jornal Nacional, 2023.
INSTITUTO UPDATE. Yanomami, defesa de territórios e a importância do Ministério dos Povos Indígenas. Instituto Update, 2023.
MACIEIRA, Luana. “Ouro que dá em árvore”: artigo descreve como o garimpo ilegal avança sobre terras indígenas. UFMG Notícias, 2022.
PEDUZZI, Pedro. Um milhão de indígenas brasileiros buscam alternativas para sobreviver. Agência Brasil, 2018.
TERRAS INDÍGENAS. Início: Terras Indígenas no Brasil. 2023.
Referências complementares
ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade, saberes científicos, saberes da tradição. Coleção contextos da ciência. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010.
BAGELE, Chilisa. Indigenous research methodologies. Thousand Oaks, California: Sage Publications, 2012.
LINDA, Tuhiwai Smith. Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. London: Zed Books, 2012.
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston, Mass.: Beacon Press, 1995.
TZUL, Gladys. Mujeres indígenas: historias de la reproducción de la vida en Guatemala. Una reflexión a partir de la visita de Silvia Federici. Bajo el Volcán, v. 15, n. 22, p. 91–99, 2015.
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Vinício Carrilho Martinez é doutor em Ciências Sociais, professor Associado da UFSCar/DEd-PPGCTS.
Marcia Camargo é doutoranda pelo PPGCTS/UFSCar.
Erilza Braz dos Santos é vice cacica Uruba.
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Indígena do povo Karajá carrega cartaz com pedido de demarcação durante marcha do ATL 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi