Boa noite, Cinderela. Por Antonio Martins

Centrão explora letargia do governo, avança agenda de retrocessos e pode provocar implosão dos ministérios de Lula. Ainda há tempo de reagir, mas é preciso deixar de acreditar na reconstrução do país a partir dos corredores do Congresso

No Outras Palavras

Antes de chegarem aos estágios da descoordenação motora aguda e do entorpecimento total, as vítimas do golpe “boa noite, Cinderela” passam por etapas de euforia e leve desinibição. Na noite da última terça-feira (23/5), quando avançava na Câmara dos Deputados um movimento do Centrão para desfigurar a estrutura do ministério desenhada por Lula, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, achou por bem comemorar. Chamou de “contribuições” as emendas impostas pelo relator, Isnaldo Bulhões (MDB-AL), que esvaziam os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, golpeiam o do Desenvolvimento Agrário e retiram o COAF da Fazenda, para devolvê-la ao Banco Central. Considerou o trabalho “equilibrado” e orientou as bancadas do governo a votarem a favor – o que efetivamente ocorreu.

As mudanças podem levar à renúncia das ministras Marina Silva e Sonia Guajajara. Em outra frente, o governo corria o risco de perder o apoio do deputado André Janones, por evitar indicá-lo à CPI do 8 de Janeiro. Os arroubos do Centrão foram além. Em 24 de maio, por iniciativa do bloco, a Câmara acelerou a tramitação do projeto de lei (PL 490/07) que consolida o “marco temporal” contra novas demarcações de terras indígenas. No mesmo dia, os deputados aprovaram medida provisória (MP 1150/22) proposta no tempo de Jair Bolsonaro, que abre novas brechas à devastação da Mata Atlântica, o bioma mais ameaçado do país. Ainda assim, o governo seguiu à beira do entorpecimento. A jornalista Mônica Bergamo relatou, na quinta-feira (25/5), que assessores próximos de Lula recomendam-lhe ceder à maioria conservadora no Congresso, rifar a pauta ambiental e perseguir apenas o que chamam de “desenvolvimento econômico” – medidas como subsídios fiscais à indústria automobilística.

A trajetória de recuo do governo é desconcertante, mas suas origens estão numa contradição já estudada. Ao longo da campanha eleitoral e do período de transição, Lula mostrou-se consciente de que a devastação do país se aprofundara, de que seria necessário partir para a reconstrução nacional com base na igualdade e de que seu terceiro mandato precisaria ser “muito melhor” que os anteriores (veja a partir do minuto 29). Mas, para espanto, pareceu acreditar que poderia fritar o omelete sem quebrar os ovos. Em especial, sem mobilizar a sociedade para fazer frente aos privilégios dos rentistas e à chantagem da maioria conservadora no Congresso. Ou seja: o governo desafiou as forças que promovem a regressão e a mediocridade do país; porém, está se despojando das armas que tinha a seu dispor para enfrentá-las. Daí a ferocidade com que estes setores reagem e a enrascada em que se colocou o Palácio do Planalto.

Para promover a recuperação dos serviços públicos – Saúde e Educação, em especial – e do investimento em infraestrutura – capaz de gerar milhões de empregos – o governo dispunha do orçamento. Mas em respeito aos dogmas neoliberais, o ministro da Fazenda propôs o “arcabouço fiscal”, que amarra o gasto do Estado. Ofereceu a alma ao diabo e este, como observou o deputado Lindbergh Farias, sequer respondeu. Uma baixa significativa da taxa básica de juros, objetivo declarado do ministro Fernando Haddad, não está à vista, avisou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

No campo das relações com o Centrão, repetiu-se o mesmo enredo de lisonja e desprezo. Cálculos do jornalista José Roberto Toledo mostram que, para aprovar o “arcabouço” fiscal o Planalto liberou R$1,2 bilhão em emendas parlamentares – R$ 3,2 milhões por voto obtido – queimando cacife importante. Foi o estranho caso em que um ente político paga para atarem-lhe as mãos… Mas, ao invés de satisfazer-se, o bloco fisiológico viu no gesto fraqueza e sinal para avançar. A sequência de derrotas imposta ao governo nas horas seguintes indica dois movimentos. Por um lado, o Centrão executa sua agenda de novos retrocessos e confirma seu ímpeto de “passar a boiada”. As medidas contra as terras indígenas e a Mata Atlântica atendem a interesses óbvios do ruralismo mais brutal. Por outro, quer-se castrar o governo a longo prazo. É óbvio que um Lula 3 despido de Marina Silva e Sonia Guajajara perderá muito de seu brilho internacional e – ainda mais grave – de seu apoio popular.

Nos episódios de “boa noite, Cinderela”, o grau de atordoamento apresentado pelas vítimas variam. Lula continua brilhando nos fóruns internacionais – voltou a fazê-lo na reunião recente do G-7. Mas não se sabe até que ponto ele se mantém esclarecido acerca dos efeitos que o “arcabouço” pode produzir sobre seu mandato. A mais de um interlocutor recente, manifestou desejo de capitalizar o BNDES, para que o banco possa impulsionar a retomada da economia. Pareceu não se dar conta de quanto o novo teto fiscal limita esta ação. Acima de tudo, não atenta para o fato de que – conforme analisou Gilberto Maringoni – perdeu a capacidade de se impor aos rentistas pressionando-os apenas por meios retóricos. Enquanto não criar fatos novos, eles o verão como um tigre sem dentes.

Já o trio de coordenação política do Planalto no Congresso parece estar num estágio em que a alienação é produzida por um misto de euforia e arrogância. Transcorridos seis meses de mandato, é quase inacreditável que a modorrenta comunicação do governo não seja capaz de tirar proveito do auxílio luxuoso do deputado André Janones. Mas é ainda mais estranho que não se tenha oferecido a ele um lugar na CPI do 8 de Janeiro – onde teria por certo papel de destaque contra o bolsonarismo. E que dizer da atitude das lideranças nas duas casas, que cantaram “vitória” quando o Centrão desfigurou, de forma inédita, a organização do ministério? Apaixonaram-se por seu sequestrador? Já não veem chance alguma de enfrentar as bancadas fisiológicas, e agora comemoram qualquer mínima concessão? (Membros da bancada governista declararam-se satisfeitos por ter-se evitado que a MP que reorganiza o ministério caísse e o governo voltasse à conformação que tinha sob Bolsonaro…).

Existirá saída para a sinuca em que o Planalto se enfiou? Na política, há mais chances de escapar do “boa noite, Cinderela” que na babel das cidades. Num artigo publicado em 25 de maio, Luís Nassif lamenta muito a aprovação do “arcabouço”, mas frisa que ele não representa o fim do governo. Há outros instrumentos de política econômica disponíveis, lembra – como os bancos públicos ou os esperados projetos da Petrobras. A capacidade de apelo de Lula é inegável e sua popularidade mantém-se alta o suficiente para permitir iniciativa política e, mais que isso, correção de rumos.

Mas é preciso acordar a tempo, porque a lucidez e o capital político não são inesgotáveis. Textos publicados no Outras Palavras (1 2) já alertaram para a necessidade de uma nova atitude. Não se trata, é claro, de afrontar as instituições. Mas de convocar ao xadrez político um novo ator – a mobilização social – e superar a ideia obtusa segundo a qual a política se resume aos salões atapetados do poder. A própria construção do PT e a ascensão da esquerda brasileira contemporânea devem-se a terem sido capazes, em muitos momentos, de romper esta lógica restrita. Terão desaprendido?

Nos casos de “boa noite, Cinderela”, resta sempre a esperança de intervenção externa salvadora. Mesmo quando a vítima ultrapassou um ponto sem retorno, pode ser socorrida por alguém que se aperceba de seu transe. Cresceram muito, nos últimos dias, nas conversas presenciais ou em redes, as percepções de que o governo está em apuros e perdido. É difícil passar deste ponto à ação, porque faltam instrumentos políticos capazes de articulá-la. Mas às vezes, é preciso improvisar segundo a necessidade. O Centrão não terá ido longe demais?

A indignação que emergiu nos últimos dias e horas não poderia concretizar-se em algum tipo de resposta, nas ruas e nas redes? A resposta não está dada. Surgirá – ou não – em futuro próximo. Mas algo parece certo: o futuro próximo do país, e de sua frágil democracia, depende de um despertar.

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