Conclamamos que o senador Magno Malta seja invocado por quebra de decoro, bem como responda judicialmente, sem as garantias da distorcida imunidade parlamentar
Por *Vinício Carrilho Martinez, Vinícius Valentin Raduan Miguel e Roberto Kuppê, no A Terra é Redonda
O jogador do Real Madri Vinícius Jr (Vini Jr) foi alvo de racismo e de xenofobia, mais uma vez, na Espanha. Já tinha visto inúmeras torcidas com o mesmo comportamento desumano, inclusive quando teve um boneco simbolizando sua pessoa ser enforcado numa ponte. Muita gente se solidarizou ao jogador, à pessoa, ao trabalhador brasileiro em solo espanhol. As lembranças e comparações com os piores efeitos do franquismo não foram efêmeras; ao contrário, foram assertivas. Afinal, estaria de volta o pesadelo do bicho Fauno? Aquele que foge do seu labirinto de trevas para assombrar a Humanidade? Os componentes parecem estar aí: racismo, xenofobia, desumanidade, perda da capacidade de interagir socialmente – até o limite da sociopatia.
Ao mesmo tempo em que a Câmara Federal aprovou moção de desagrado (por unanimidade)[i] aos atos de racismo e de desagravo às hostilidades que se abatem contra a dignidade humana – a ofensa de um racista atinge a toda a Humanidade –, no Senado Federal, em rota de colisão aos princípios humanistas, o senador Magno Malta se prestou a ofender ainda mais.[ii] Disse estar surpreso com a falta de ação dos defensores dos animais, por não se solidarizarem ao “macaco” jogador (sic).
Muito poderia ser dito, diante de tal afirmação, como já se disse, aliás; contudo, devemos centrar nossa atenção em alguns pontos iniciais e objetos desta peça de repúdio: (i) é muito cansativo ver parlamentares supremacistas, qualquer pessoa, invocarem o escárnio contra a Humanidade; (ii) também é cansativo defender continuamente a inteligência social que se povoa com o princípio da dignidade humana; (iii) o foco central desta repulsa tem embasamento na quebra de decoro parlamentar e, assim, a questão deve ser tratada pela presidência do Senado Federal; (iv) na esfera criminal, criou-se facticidade e autoria diante do cometimento de crime – trata-se do crime de incitação ao ódio racial, ao racismo.
A partir da Constituição Federal de 1988, lê-se que o tratamento penal deve ser exemplar, paradigmático, e, portanto, encontra-se para além dos preceitos pedagógicos da pena. Pois, insere-se na condição de afronta, desrespeito e pregação (supremacista/racista) de verdadeiro ódio racial.
Não bastassem os inúmeros entraves e problemas nacionais, como a desigualdade social e econômica, em que o conhecido racismo estrutural se apodera do pensamento escravista – certamente, a mais conhecida dissonância cognitiva entre nós –, um representante de Estado vem a público a fim de manifestar sua indisposição genética com a Humanidade.
Tornam-se, sempre, redundantes os dizeres e saberes contra o racismo e, talvez ainda mais urgente do que isso, torna-se inegável, indesculpável, irretratável, a apologia a mais e piores cometimentos de atos racistas. Concludente da incapacidade de convívio social – a par da incitação ao crime de racismo – o senador, enquanto representante de Estado, partícipe do pacto federativo, não pode confabular sobre assuntos de interesse nacional na casa do Senado.
Além da dignidade humana, foi atingido o córtex e cordis da moral pública. Lembremos que os senadores – a contar de sua presidência – encontram-se na linha sucessória do poder executivo central e isto, por óbvio, torna o referido senador (Magno Malta), a quem talvez também não alcance a identidade racial (uma vez que não é afeiçoado com o “branco caucasiano“), ainda mais impedido de continuar com suas funções públicas.
Se por acaso o Brasil, por exemplo, a partir do Senado Federal – que recentemente foi uma guarida contra o fascismo nacional –, viesse a promover um ajuste de contas histórico contra o racismo, propondo-se um “arcabouço social e racial”, com indenizações raciais e punições exemplares aos racistas, por onde caminharia o voto de excelência do senador Magno Malta?
Se o país tivesse que ratificar uma declaração internacional (outra) em defesa, reconhecimento e promoção dos direitos humanos, como votaria a insigne excelência, se, em ato lastimável, lança-se em direção à incitação de crimes raciais?
Conclamamos que vossa excelência, na condição da presidência do Senado Federal, faça ressurgir os princípios republicanos que se decantam desde a era romana do inigualável Cícero – senador que abrilhantou o Senado da Roma antiga.
Vejamos em brevíssima comparação o sarcasmo de origem racista/supremacista do senador Magno Malta – e que nos provocam as piores angústias de todas as dores da escravidão brasileira e do holocausto judeu, sob o nazismo de Hitler –, com o gênio do senador romano. No nosso recorte, assim nos ensina o passado de Cícero: “(1) A felicidade está na perfeita Constituição Política. (2) Na República predomina a Justiça. (3) Governar a República é converter a teoria em prática. (4) O governo com justiça eleva a “herança da humanidade”. (5) A virtude está em combater as injúrias e a iniquidade. (6) O povo deve seguir o exemplo dos melhores. (7) Para o republicano, a felicidade está em combater a ignorância.
(8) O homem digno da República reúne os atributos da humanidade. (9) A maior utilidade da República está na dissolução da discórdia. (10) Os fundamentos da República estão no consentimento jurídico e na utilidade comum. (11) A República une os homens por “vínculos de simpatia”. (12) A dissensão promove discórdia; a igualdade traz equilíbrio social. (13) A igualdade de direitos é imperativa. (14) O Estado deve ser uma sociedade para o direito. (15) Deve-se proteger o Estado contra o furor. (16) O cuidado e o zelo evitam os extremismos. (17) Da excessiva liberdade surge o tirano. (18) A República é como uma obra de arte, deve-se restaurar para manter.
(19) É preciso combater os vícios públicos para restaurar a paz. (20) A astúcia de governar provém do horror da desonra. (21) A República é uma sociedade de homens formada pelo império do direito. (22) É obrigação do político tecer uma sólida trama social. (23) O homem político deve tecer uma rede entre a Polis e a convivialidade. (24) A política deve promover a unidade da cidade.” (Marco Túlio Cícero, Da República).
Conclamamos que a mais alta representação política do Estado Nacional e da sociedade brasileira, guardião do pacto federativo, possa reunir a verdadeira vaidade do legislador honrado em seu fazer público.
Conclamamos que o senador Magno Malta seja invocado por quebra de decoro, bem como responda judicialmente, sem as garantias da distorcida imunidade parlamentar – uma vez que o instituto republicano não se presta a acobertar crimes de natureza racial ou de qualquer outra natureza. Não é preciso recordar que não há liberdade de expressão parlamentar que se esconda na incitação ao crime de ódio racial – vossa excelência é mais do que conhecedor dos fatos e da natureza jurídica que nos alberga o princípio da dignidade humana, conforme a carta política de 1988.
Conclamamos a que o principal efeito aqui postado e desejado – a perda do mandato legislativo, com amparo na declaração senatorial (e letal) contra a dignidade humana – conheça efeitos imediatos e que quaisquer ações em contrário, igualmente, conheçam a perda imediata de suas postulações. Dito isso, esse parecer opina que ocorreu o crime de racismo, que enseja a perda de mandato por se enquadrar como quebra de decoro.
Assinam o texto um coletivo de pessoas indignadas com o racismo, a falta de respeito, a incivilidade – protocolado no Senado Federal e no Ministério Público Federal.
*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.
*Vinícius Valentin Raduan Miguel é professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia.
*Roberto Kuppê é jornalista.
Notas
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Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo