A centralização temática a respeito do envio pelo Poder Executivo e votação pelo Legislativo das novas regras fiscais em substituição ao teto de gastos do governo Temer parece revelar mais a aparência do que a essência do jogo de poder no âmbito do governo federal. O embate sobre as regras do gasto público expõe uma das principais heranças recebidas pelo presidente Lula que comprometem a realização do programa governamental eleito pela maioria da população em 2022.
Após a sua vigência durante o ciclo político da Nova República (1985-2014), o denominado presidencialismo de coalizão (Sérgio Abranches, Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, 1988) cedeu lugar à construção do parlamentarismo à brasileira. Ou seja, um sistema de governo que opera praticamente sem a presença de partidos políticos, mas de agrupamentos de interesses diretos dos parlamentares. Diferentemente disso, prevalece a experiência internacional, cujo funcionamento ocorre a partir de poucos, porém representativos partidos, como na Alemanha, Inglaterra, Espanha, Suécia e outros.
No caso brasileiro, destaca-se que desde 2015 encontra-se em construção um novo sistema de governo alternativo ao presidencialismo por meio da dominância do processo orçamentário assentado no impositivo e crescente direcionamento das emendas no uso dos recursos públicos orçamentários. Antes disso, o parlamentarismo havia funcionado em duas oportunidades no país, sendo a primeira no Império, de 1847 a 1889, e a segunda no presidencialismo, entre setembro de 1961 a janeiro de 1963.
Na atualidade, o agiganteamento do poder de senadores e deputados perante o gradual apequenamento da presidência da República foi estabelecido por amarras legais com origem na Constituição de 1988 efetivada com forte incidência parlamentarista. Exemplo disso foi a superação do artigo 67 da Constituição de 1967 que impedia iniciativas do Legislativo na criação ou aumento de despesas públicas, inclusive emendas ao projeto de lei do orçamento.
Com a devolução ao Legislativo da prerrogativa de proposição de emendas sobre a despesa definida no projeto de lei orçamentário enviado pelo Poder Executivo, a concepção gestora de recursos públicos pelo Parlamento ganhou destaque e evoluiu em concomitância com o presidencialismo de coalizão. A maior presença do Parlamento na destinação dos recursos da União passou a produzir consequências sobre as políticas públicas de responsabilidade do Poder Executivo.
Isso porque a destinação dos recursos públicos pelo Parlamento tende a atender mais o sentido, em geral, da racionalidade eleitoral de deputados e senadores. Por isso, os fundamentos técnico-científicos próprios da formulação e execução das políticas públicas no plano nacional da desigualdade social brasileira por parte do Poder Executivo foram sendo diminuídos, quando não esquecidos.
Nesse sentido, ressalta-se a importância dos estudos e pesquisas realizados sobre o papel do Parlamento na definição do gasto público. Nota-se como a passagem do orçamento público autorizativo para o impositivo foi acompanhada de reflexões a respeito da especificidade constitutiva do sistema político brasileiro que opera mais em seu benefício próprio, conforme destacou Barry Ames (O impasse da democracia no Brasil, 2001).
Em consequência, nota-se a crescente disponibilização de recursos públicos que por força impositiva legal multiplicou por 4,2 vezes a parcela orçamentária deslocada da responsabilidade do Poder Executivo para o Legislativo no montante de R$ 8,6 bilhões, em 2014, para R$ 36,3 bilhões, em 2023. Sobre isso, aliás, ampliaram-se as dúvidas a respeito da garantia da prevalência de critérios essenciais como a efetividade, eficácia e eficiência na necessária aplicação destes mesmos recursos públicos por conta da evolução do parlamentarismo sem partidos no Brasil.
Considerando-se a distribuição dos recursos das emendas de transferências especiais com base na Lei Orçamentária de 2020, constata-se, por exemplo, a focalização geográfica dos recursos públicos em 1.372 cidades (25% dos municípios do país) pertencentes a 15 estados (56% das unidades da federação). Enquanto Minas Gerais, que responde por 10% da população nacional absorveu 13% do total dos recursos, o estado do Rio de Janeiro, que representa 8,2% dos brasileiros foi contemplado com 0,8%.
Já os estados do Acre (0,4% da população nacional) e Amapá (0,4% da população), que possuem participação relativamente aproximada no conjunto da população brasileira, receberam recursos públicos decorrentes de emendas muito desiguais, sendo de 0,3% e de 4,4% do total, respectivamente. Ao que parece, a assimetria entre a proporção populacional e distribuição geográfica do gasto público operado pelo Parlamento aponta para uma espécie de atualização do antigo sistema eleitoral característico da República Velha (1889-1930), conforme demonstrado por Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto, 1948).
Em função disso, a adoção do parlamentarismo à brasileira desde a definição do orçamento público federal termina por limitar, quando não constranger, a implementação do programa de governo do presidente da República eleito pelas urnas. O estabelecimento da lei do teto de gastos públicos não financeiros desde 2016, embora descumprido recorrentemente com autorização do Parlamento, tratou de confirmar os interesses da maioria do Legislativo sob o exercício das atribuições até então do Poder Executivo federal.
Por outro lado, não deixa de chamar a atenção o custo operacional do Poder Legislativo no Brasil que o torna, segundo estudo de pesquisadores da Universidade de Brasília e dos Estados Unidos (Iowa e do Sul da Califórnia) realizado com 33 países, o segundo Congresso mais caro do mundo, somente atrás dos EUA. Em 2020, por exemplo, o orçamento do Congresso brasileiro representou 0,15% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, enquanto nos Estados Unidos o orçamento do Congresso Nacional equivaleu a apenas 0,02% do PIB.
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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