Foz do Amazonas. O negacionismo e o desejo de viabilização da exploração de petróleo. Entrevista especial com Ronaldo Francini-Filho

Pesquisador observa que esta exploração é ainda mais complexa do que nas áreas do pré-sal. Além disso, até a existência do Recifal Amazônico tem sido questionada para que avancem as perfurações na região

Por: João Vitor Santos, em IHU

A recente negativa do Ibama para a emissão de licenças de exploração de petróleo pela Petrobras na Foz do Rio Amazonas, fatia oceânica da região, causou furor dentro do próprio governo Lula. Tanto nas salas do Palácio do Planalto quanto nos corredores do Congresso, os próprios aliados se insurgiram contra a medida. “Uma parte da base aliada, incluindo a liderança do governo, enxerga o meio ambiente como moeda de troca com o Congresso para avançar em outras pautas. Essa é uma visão ultrapassada e um erro estratégico grave”, identifica o professor e pesquisador Ronaldo Francini-Filho, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

A fala do pesquisador resume aquilo que pode ser o grande desafio do governo Lula 3: equalizar a balança do desenvolvimento econômico e social com o meio ambiente. O problema é que, ao que parece, o peso maior sempre vai para o lado desenvolvimentista. A prova é que a exploração na Foz do Amazonas está há tempos no radar dos que ainda têm sede de combustíveis fósseis. “Das 95 tentativas anteriores de perfuração na região pela Petrobras, em águas mais rasas da Foz do Amazonas, 27 foram abandonadas por acidente mecânico, incluindo a perda de um navio sonda. O restante não encontrou óleo ou apenas quantidades subcomerciais”, observa Ronaldo.

Este dado mostra que perfurar a região não é nada fácil, mais difícil inclusive do que a exploração na região do pré-sal. Isso requer cuidados extras com o meio ambiente, dada a dimensão da interferência que esse empreendimento pode causar. “É importante ressaltar que a modelagem apresentada pela Petrobras foi feita em uma escala espacial muito grosseira e não permite uma avaliação adequada da área de abrangência de um potencial vazamento. Isso inviabiliza qualquer avaliação confiável dos impactos socioambientais do empreendimento”, dispara o pesquisador, que ainda lembra de experiências passadas em que substâncias usadas na tentativa de contenção de vazamentos de óleo causaram ainda mais danos ambientais.

Além disso, o negacionismo científico também age sobre o tema, e o Grande Sistema Recifal Amazônico, um riquíssimo berço ainda pouco estudado em termos de fauna e flora marinha, chega a ter sua existência questionada. “O negacionismo está claramente relacionado com o desejo de viabilização da exploração de petróleo. A existência ou não dos recifes não está em discussão. É como não acreditar em vacinas. Até as empresas reconhecem a existência dos recifes em seus estudos de impacto ambiental”, pontua Ronaldo.

Por fim, o professor analisa a necessidade de efetivamente se tratar da conversão energética, concepção de fontes de energias renováveis e de menor impacto ambiental. “Nosso cartão de crédito com o clima já passou do limite. O que está em jogo é a segurança alimentar, o extermínio de ecossistemas que fornecem serviços ecossistêmicos-chave, como os recifes de corais, e nossa sobrevivência frente à intensificação das tempestades e da elevação do nível dos mares”, sintetiza.

Ronaldo Bastos Francini-Filho é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo – USP. É mestre e doutor em Ciências Biológicas pela mesma instituição. Leciona no Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo – CEBIMAR-USP. Suas pesquisas têm foco em ecologia e conservação de ecossistemas costeiros e marinhos.

Confira a entrevista.
IHU – No que consiste o projeto de exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas?

Ronaldo Francini-Filho – Existem 439 blocos em diferentes fases (sob concessão, em oferta ou em estudo) na Margem Equatorial como um todo, do Amapá ao Rio Grande do Norte. Só na Bacia Sedimentar do Amazonas, popularmente chamada de “Foz do Amazonas”, são 271 blocos.

A Petrobras possui 12 blocos na Margem Equatorial, quatro deles na Foz do Amazonas. O processo de licenciamento que recebeu a negativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama e gerou a polêmica recente é o FZA-M-59, no extremo oeste da Margem Equatorial. Pretende-se extrair óleo de mais de 3.000 m de profundidade.

IHU – Quais os riscos da exploração de petróleo na região?

Ronaldo Francini-Filho – Existem diversos riscos operacionais/logísticos, sociais e ambientais. Do ponto de vista ambiental, o bloco FZA-M-59, em particular, está a menos de 40 km do Grande Sistema Recifal Amazônico, que abarca diversas espécies ameaçadas de extinção e de interesse econômico.

Além disso, toda a região da Bacia Amazônica é margeada por extensos manguezais, onde são encontradas diversas Reservas Extrativistas. Ironicamente, não existem Unidades de Conservação na parte marinha, incluindo os recifes, os quais permanecem desprotegidos em sua totalidade.

As Reservas Extrativistas na costa amazônica abrigam populações tradicionais que dependem diretamente do uso de recursos marinhos e costeiros para sua sobrevivência. A pesca regional é importante não apenas para a subsistência, mas também em termos econômicos. Por exemplo, a cadeia produtiva da pesca do pargo gerou mais de R$ 100 milhões apenas para Bragança em 2019.

Modelagem grosseira
É importante ressaltar que a modelagem apresentada pela Petrobras foi feita em uma escala espacial muito grosseira e não permite uma avaliação adequada da área de abrangência de um potencial vazamento. Isso inviabiliza qualquer avaliação confiável dos impactos socioambientais do empreendimento. Não está claro como ecossistemas sensíveis (recifes e manguezais), a pesca e as comunidades extrativistas seriam afetadas.

As ferramentas de mitigação em caso de vazamento já se mostraram inefetivas em outros casos no mundo. Os dispersantes de óleo utilizados no acidente no Golfo do México, por exemplo, são tão tóxicos ou até mais tóxicos do que o próprio óleo, causando danos severos a biota e problemas de saúde humana. Eles fazem com que o óleo afunde, evitando que chegue até a costa e recubra praias e manguezais. No entanto, ele acaba recobrindo os ecossistemas que estão no fundo do mar, como os recifes.

As boias de contenção, outro tipo de ferramenta de mitigação, já se mostraram ineficientes no passado, como no misterioso vazamento de petróleo no Norte/Nordeste do Brasil em 2019. Isso em condições de mar muito mais amenas do que as encontradas na Foz do Amazonas.

IHU – O senhor tem apontado que a região da foz do Amazonas é uma região de correntes marinhas mais hostis do que nas regiões do pré-sal. Gostaria que detalhasse esse apontamento, explicando o ecossistema da região.

Ronaldo Francini-Filho – A região da Foz do Amazonas tem correntes superficiais extremamente fortes, de até quatro nós, e variação de maré de até sete metros. Essa situação é bem mais hostil do que nas bacias do pré-sal e apresenta desafios operacionais únicos. Das 95 tentativas anteriores de perfuração na região pela Petrobras, em águas mais rasas da Foz do Amazonas, 27 foram abandonadas por acidente mecânico, incluindo a perda de um navio sonda. O restante não encontrou óleo ou apenas quantidades subcomerciais.

O mesmo ocorreu na vizinha Guiana, onde a promessa de jazidas enormes de petróleo não se confirmou e os projetos foram abandonados pelas petroleiras. A exploração de petróleo está proibida na Guiana Francesa até 2040.

Precisamos de alguma garantia de que as operações na Margem Equatorial teriam capacidade de evitar acidentes e vazamentos, considerando essa condição ambiental hostil. A liberação de uma licença para o bloco FZA-M-59 será certamente sucedida por diversos outros pedidos de exploração nos demais blocos ao longo da região.

IHU – O que é o Grande Sistema Recifal Amazônico e qual sua importância para a biodiversidade local?

Ronaldo Francini-Filho – O Grande Sistema Recifal Amazônico é um recife profundo típico (entre 50-220 metros de profundidade), parecido com os recifes profundos em outras regiões do Brasil e do mundo. Estes ambientes ainda são pouco explorados e contêm uma enorme quantidade de espécies ainda desconhecidas pela ciência.

Os recifes amazônicos são particularmente importantes pois servem de abrigo para espécies ameaçadas de extinção, como o cherne-verdadeiro, e servem como um corredor de migração entre o Brasil e o Caribe. Eles moldam os padrões de distribuição e evolução no Atlântico ocidental.

Algumas espécies, como o pargo e o cherne-verdadeiro, utilizam habitats costeiros, como manguezais e estuários, como berçário e migram até os recifes profundos e afastados da costa para se reproduzir. Portanto, existe uma interdependência entre estes ecossistemas, e impactos nos recifes poderiam comprometer o ciclo de vida de espécies que ocorrem também na costa. Além de sua importância ecológica, os recifes são claramente importantes para as pescarias regionais.

IHU – Há alguns anos, chegou a circular a informação de que a existência de recifes amazônicos era fake news. Gostaria que o senhor recuperasse esse episódio e refletisse por que ainda ouvimos falar tão pouco dos recifes e da biodiversidade marinha da região amazônica?

Ronaldo Francini-Filho – O negacionismo sobre os recifes está enraizado em políticos e empresários diretamente interessados na exploração de petróleo e conta com o apoio de alguns poucos cientistas que sustentam os projetos de exploração. Os argumentos são primários e ignoram o conhecimento científico básico. Chegaram a dizer que as imagens dos recifes, obtidas por nosso grupo de cientistas, não eram verdadeiras (risos).

Com o avanço das discussões sobre o licenciamento da exploração de petróleo, o negacionismo se intensificou e resolvemos publicar o trabalho “O Grande Sistema Recifal Amazônico: um fato”. Temos evidências da existência dos recifes desde a década de 1970.

Acesse o artigo “O Grande Sistema Recifal Amazônico: um fato”.

O negacionismo está claramente relacionado com o desejo de viabilização da exploração de petróleo. A existência ou não dos recifes não está em discussão. É como não acreditar em vacinas. Até as empresas reconhecem a existência dos recifes em seus estudos de impacto ambiental.

Além de um resumo publicado em anais de congresso, não existem trabalhos científicos que contrariem a existência dos recifes, apenas especulações na mídia e falas em eventos. Precisamos definitivamente de ciência independente e de qualidade para a região. Conhecemos menos de 5% dos recifes amazônicos, por exemplo.

Tragicamente, parte do pouco conhecimento disponível vem dos estudos de impacto ambiental, os quais são cheios de falhas graves. Estes estudos são financiados e encomendados pelas próprias empresas responsáveis e interessadas nos empreendimentos potencialmente impactantes, o que demonstra a necessidade urgente de estudos independentes.

IHU – Em que medida o desequilíbrio da ecologia marinha da Amazônia pode impactar a vida na floresta (e vice-versa)?

Ronaldo Francini-Filho – Eu diria que a Floresta Amazônica em si não sofreria impactos diretos da exploração deste bloco em particular. No entanto, não podemos ignorar a importância dos manguezais e dos recifes. Os recifes profundos são conhecidos como “Florestas Animais Marinhas” (do inglês Marine Animal Forests). Portanto nossa maior preocupação neste caso não é com a floresta terrestre, mas a marinha.

IHU – Em que medida essa insistência na exploração de petróleo na Foz do Amazonas pode ser comparada com toda a excitação que causou a descoberta do pré-sal em 2007? Passados 15 anos, como avalia a exploração feita no pré-sal?

Ronaldo Francini-Filho – O licenciamento do pré-sal foi feito em um momento em que a legislação ambiental era muito mais permissiva. Ele foi muito importante para o Brasil no aspecto econômico, mas ainda temos contradições com relação ao uso dos recursos provenientes dos royalties.

Por exemplo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, recebeu mais de R$ 50 milhões em abril, mas tem 1/3 da população em estado de miséria. Passados 15 anos, a transição energética e o combate às mudanças climáticas são urgentes. Precisamos de planos mais concretos de descomissionamento da energia baseada em combustíveis fósseis e do avanço das matrizes de energia renovável.

IHU – Em sua opinião, qual deve ser o papel da Petrobras no movimento de abandono dos usos das fontes de energia fóssil e na transição para usos de energias limpas?

Ronaldo Francini-Filho – A Petrobras é uma empresa muito importante para a manutenção da soberania energética nacional e deve demonstrar claramente a liderança no planejamento e implementação dos processos de transição de nossa matriz energética. O Brasil e a Petrobras têm todas as condições para inspirar e servir de modelo a todo o mundo neste quesito.

Por exemplo, as energias renováveis dependem de diversos insumos minerais, como cobre, lítio, cobalto e terras raras. De onde vamos obter estes elementos? Continuaremos com uma economia linear ou teremos um incremento da reciclagem? Quais as regulamentações necessárias para a expansão do mercado de energias renováveis no Brasil? Em minha opinião, empresas como a Petrobras têm todas as condições de liderar estas discussões.

IHU – Que leitura o senhor faz dos últimos acontecimentos em que o Congresso tenta desvertebrar a gestão ambiental do governo, especialmente no esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas?

Ronaldo Francini-Filho – O Congresso está sabotando o país e tendo uma visão imediatista e egoísta. Não existe futuro possível sem respeito ao meio ambiente e os povos originários. Não é possível governar na base da barganha com um Congresso conservador e que defende exclusivamente os interesses do setor produtivo. Precisamos avançar com pautas importantes para o país sem ser reféns dos interesses deste Congresso.

IHU – E se há resistências ao protagonismo da pauta ambiental no Congresso, há também dentro do governo e na base aliada. Como analisa esse “fogo amigo”? O que revela sobre os desafios do governo Lula 3?

Ronaldo Francini-Filho – O grande desafio do governo Lula 3 é aprovar sua estrutura e planos de governo junto ao Congresso. Uma parte da base aliada, incluindo a liderança do governo, enxerga o meio ambiente como moeda de troca com o Congresso para avançar em outras pautas. Essa é uma visão ultrapassada e um erro estratégico grave.

Precisamos mostrar para o mundo nossa preocupação com o meio ambiente e os povos tradicionais/indígenas e nossa capacidade de liderança no combate à urgência climática. Precisamos mobilizar a população para pressionarmos o Congresso e avançarmos em todas as frentes prioritárias para nosso povo, sem precisarmos escolher entre um fígado e um rim.

IHU – Que modelo de desenvolvimento econômico e social, efetivamente, está em jogo nesse governo?

Ronaldo Francini-Filho – O avanço econômico e social em um mundo que está à beira do colapso climático é o desafio de toda a humanidade. Nosso cartão de crédito com o clima já passou do limite. O que está em jogo é a segurança alimentar, o extermínio de ecossistemas que fornecem serviços ecossistêmicos-chave, como os recifes de corais, e nossa sobrevivência frente à intensificação das tempestades e da elevação do nível dos mares. Precisamos definitivamente consolidar um modelo de desenvolvimento socioeconômico que priorize a sustentabilidade e não o imediatismo.

IHU – Belém, no Pará, deve sediar a COP30. O que isso representa?

Ronaldo Francini-Filho – Isso representa o reconhecimento internacional do Brasil como liderança no desenvolvimento sustentável, direitos de povos tradicionais e indígenas e no combate à urgência climática. Precisamos fazer a lição de casa e demonstrar nossa liderança, como prometido pelo presidente Lula durante a campanha presidencial.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Ronaldo Francini-Filho – Torço para que sejamos inteligentes como país para encontrarmos os melhores caminhos políticos para o crescimento econômico com sustentabilidade e justiça social.

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Mapa da posição do bloco 59 da Petrobras, onde é possível localizar a Bacia do Foz do Amazonas
Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

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