Por Angela Saini, na BBC Future
Em 1930, o Zoológico de Londres anunciou que iria fechar o recinto dos babuínos. O fechamento chegou às manchetes dos jornais da época. Por anos, o “Morro dos Macacos”, como era conhecido, foi o palco de cenas sangrentas de violência e mortes frequentes.
A revista norte-americana Time noticiou o incidente que foi a gota d’água para o fechamento: “George, um jovem membro da comunidade de babuínos, roubou uma fêmea pertencente ao ‘rei’, o babuíno maior e mais velho do Morro dos Macacos”. E, depois de um cerco cheio de tensão, George acabou matando a fêmea.
O Morro dos Macacos teve grande influência sobre como os especialistas em animais imaginavam a dominação dos machos. Os primatas assassinos reforçaram o mito popular da época, de que os seres humanos seriam uma espécie naturalmente patriarcal.
Para os visitantes do zoológico, parecia que eles poderiam estar reproduzindo o nosso passado evolutivo, no qual os machos naturalmente violentos sempre vitimizaram as fêmeas mais fracas.
Somente com a descoberta, décadas depois, de que um dos nossos parentes genéticos mais próximos, os bonobos, são matriarcais (embora os machos desta espécie de primata sejam maiores), os biólogos finalmente aceitaram que o patriarcado na nossa espécie provavelmente não pode ser explicado apenas pela natureza.
Nos últimos anos, viajei pelo mundo para compreender as origens do patriarcado humano, para o meu livro The Patriarchs (“Os patriarcas”, em tradução livre).
O que aprendi foi que, embora haja muitos mitos e conceitos errôneos sobre como os homens chegaram a ganhar tanto poder, a história verdadeira também indica formas que podem nos permitir, finalmente, atingir a igualdade de gênero.
Sociedades matriarcais
Para começar, as formas humanas de organização, na verdade, não têm muitos paralelos no reino animal.
A palavra “patriarcado” significa “domínio do pai” e reflete como se acreditou, por muito tempo, que o poder masculino começa na família, com os homens chefiando suas casas e transmitindo o poder de pai para filho. Mas, no mundo dos primatas, isso é cada vez mais raro.
A antropóloga Melissa Emery Thompson, da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, observou que as relações familiares entre as gerações de primatas são consistentemente organizadas pelas mães, não pelos pais.
E, entre os seres humanos, o patriarcado também não é universal. Antropólogos identificaram pelo menos 160 sociedades de linhagem matriarcal nas Américas, África e Ásia. Nelas, as pessoas são consideradas pertencentes à família da mãe por gerações e as heranças são transmitidas de mãe para filha.
Algumas dessas comunidades adoram deusas e as pessoas permanecem nas suas casas maternas por toda a vida. Os homens do povo mosuo, do sudoeste da China, por exemplo, podem ajudar a criar os filhos das suas irmãs e não os deles próprios.
Nas comunidades de linhagem matriarcal, muitas vezes, o poder e a influência são compartilhados entre as mulheres e os homens.
Um exemplo são as comunidades de linhagem matriarcal asantes, em Gana. Nelas, a liderança é dividida entre a rainha-mãe e um chefe homem, que ela mesma ajuda a escolher. Em 1900, a governante asante Nana Yaa Asantewaa liderou seu exército em uma rebelião contra o domínio colonial britânico.
Quanto mais mergulhamos na pré-história, mais variadas são as formas de organização social humana que encontramos.
O sítio arqueológico de Çatalhöyük, no sul da Anatólia (hoje, parte da Turquia asiática), tem nove mil anos de idade e já foi descrito como a cidade mais antiga do mundo, pelo seu tamanho e sua complexidade. Nele, todos os dados arqueológicos indicam um assentamento no qual o gênero fazia pouca diferença sobre o modo de vida das pessoas.
“Na maioria dos sítios escavados pelos arqueólogos, você percebe que homens e mulheres, por terem vidas diferentes, têm alimentos diferentes e acabam tendo dietas diferentes”, segundo o arqueólogo Ian Hodder, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Hodder liderou o Projeto de Pesquisa de Çatalhöyük até 2018.
“Mas, em Çatalhöyük, você não observa isso”, afirma ele.
Análises dos restos humanos indicam que homens e mulheres tinham a mesma alimentação, passavam aproximadamente o mesmo tempo dentro e fora de casa e faziam trabalhos similares. Até a diferença de altura entre os sexos era pequena.
E as mulheres também não eram invisíveis. Escavações deste e de outros sítios que datam aproximadamente da mesma época revelaram inúmeras estatuetas femininas, que hoje lotam os armários dos museus arqueológicos locais.
A mais famosa é a Mulher Sentada de Çatalhöyük, que hoje é exibida sob proteção de vidro no Museu de Civilizações Anatolianas na capital turca, Ancara. Ela ilustra uma mulher sentada, com as costas eretas. Seu corpo é profundamente marcado pela idade e pela notável quantidade de gordura corporal. Seus braços estão em repouso e, abaixo deles, estão dois grandes animais com aparência de felinos, possivelmente leopardos, olhando para frente como se fossem domesticados.
Mas a relativa igualdade de gênero de Çatalhöyük não durou para sempre, como sabemos. Ao longo de milhares de anos, as hierarquias sociais gradualmente invadiram a região, incluindo a Europa, a Ásia e o Oriente Médio.
Foi assim que, milhares de anos depois, em cidades antigas como Atenas, na Grécia, culturas inteiras se desenvolveram em torno de mitos misóginos de que as mulheres são fracas, não merecem confiança e que é melhor confiná-las em casa.
A grande questão é: por quê?
Agricultura e propriedade
Antropólogos e filósofos vêm se perguntando se a agricultura pode ter feito a diferença no equilíbrio de poder entre homens e mulheres. Afinal, a agricultura exige muita força física – e o surgimento da agricultura se deu quando os seres humanos também começaram a manter propriedades, como o gado.
Segundo esta teoria, as elites sociais surgiram quando algumas pessoas começaram a acumular mais propriedades do que outras, levando os homens a garantir que suas riquezas passassem para os seus filhos legítimos. Para isso, começaram a restringir a liberdade sexual das mulheres.
O problema com isso é que as mulheres sempre fizeram trabalhos agrícolas. Na literatura da Grécia e da Roma Antiga, por exemplo, existem ilustrações de mulheres trabalhando na colheita e histórias de jovens mulheres pastoras.
Dados das Nações Unidas demonstram que, até hoje, as mulheres representam quase a metade da mão de obra agrícola do mundo e quase a metade dos criadores de animais em pequena escala em países de baixa renda. E as mulheres da classe trabalhadora e escravizadas em todo o mundo sempre se dedicaram a pesados trabalhos manuais.
O mais importante para a história do patriarcado é que houve domesticação de animais e plantas muito antes que os registros históricos exibissem evidências óbvias da opressão baseada no gênero.
“A ideia antiga de que, quando você tem a agricultura, você tem propriedade e, portanto, você controla as mulheres como propriedade está errada, claramente errada”, diz Hodder – porque a linha do tempo não confere.
Os primeiros sinais claros de mulheres sendo tratadas de forma categoricamente diferente dos homens apareceram muito mais tarde, nos primeiros estados da antiga Mesopotâmia, a região histórica entre os rios Tigre e Eufrates, no território que hoje pertence ao Iraque, à Síria e à Turquia.
Cerca de 5 mil anos atrás, tábuas administrativas da cidade suméria de Uruk, no sul da Mesopotâmia (hoje, Iraque), demonstram que os encarregados dedicavam grandes esforços à elaboração de listas detalhadas de população e recursos.
“O poder sobre as pessoas é a chave para o poder em geral”, explica o antropólogo e cientista político James Scott, da Universidade Yale, nos Estados Unidos. As pesquisas de Scott concentraram-se no início da agricultura humana.
As elites dessas primeiras sociedades precisavam de pessoas disponíveis para produzir mais recursos para elas e para defender o estado – até para dar suas próprias vidas, se necessário, em tempos de guerra. Por isso, a manutenção dos níveis populacionais inevitavelmente gerava pressão sobre as famílias.
Ao longo do tempo, esperava-se que as mulheres jovens se dedicassem a ter cada vez mais bebês, especialmente meninos que pudessem crescer para lutar.
O mais importante para o estado era que todos fizessem a parte esperada de cada um, homens e mulheres. Os talentos, necessidades e desejos individuais não tinham importância. Homens jovens que não quisessem ir para a guerra eram ridicularizados como fracassados; e as mulheres jovens que não quisessem ou não conseguissem ter filhos podiam ser condenadas como antinaturais.
‘Escravidão dos tempos modernos’
A historiadora norte-americana Gerda Lerner (1920-2013) documentou que existem registros escritos daquela época que mostram que as mulheres desapareceram gradualmente do mundo público do trabalho e da liderança e foram empurradas para a sombra doméstica, concentrando-se na maternidade e no trabalho da casa.
Combinada com o casamento patrilocal – em que a filha deve deixar a casa da sua infância para viver com a família do marido –, esta prática marginalizou as mulheres e fez com que elas ficassem vulneráveis à exploração e abusos dentro das suas próprias casas.
Ao longo do tempo, o casamento passou a ser uma instituição legal rígida, que tratava as mulheres como propriedade dos seus maridos, como as crianças e os escravos.
Por isso, em vez de começar na família, a história indica que o patriarcado começou com os poderosos nos primeiros estados. As exigências vindas de cima se infiltravam na família, forçando rupturas dos relacionamentos humanos mais básicos e até entre pais e filhos.
O sistema semeou a desconfiança entre aqueles que as pessoas costumavam procurar em busca de amor e apoio. As pessoas não viviam mais para si próprias e para os mais próximos. Agora, elas viviam no interesse do estado patriarcal.
A preferência pelos filhos homens é uma característica dos países tradicionalmente patriarcais até hoje, incluindo a China e a Índia, onde essa preferência gerou índices tão altos de morte provocada de meninas que a proporção entre os sexos ficou gravemente distorcida.
O censo indiano de 2011, por exemplo, indicou que havia 111 meninos para cada 100 meninas, mas os dados sugerem que estes números estão melhorando, com a mudança das normas sociais em favor das filhas mulheres.
A exploração das mulheres em casamentos patriarcais continua até hoje. Sua versão mais grave – o casamento forçado – foi considerada uma forma de escravidão dos tempos modernos nas estatísticas da Organização Internacional do Trabalho, pela primeira vez, em 2017.
A estimativa mais recente é de 2021 e indica que 22 milhões de pessoas, em todo o mundo, vivem em casamentos forçados.
O estado patriarcal causou danos psicológicos duradouros. Ele fez com que a sua ordem baseada em gênero parecesse normal e até natural, da mesma forma que a opressão de classes e racial, historicamente, foi considerada natural pelos poderosos.
Estas normas sociais transformaram-se nos estereótipos de gênero de hoje em dia, incluindo a ideia de que todas as mulheres são cuidadoras e acolhedoras e que os homens são naturalmente violentos e voltados para a guerra.
Ao confinar deliberadamente as pessoas em papéis restritos de gênero, o patriarcado prejudicou não só as mulheres, mas também muitos homens. Sua intenção sempre foi apenas de servir aos extremamente poderosos – as elites sociais.
Como o Morro dos Macacos do Zoológico de Londres nos anos 1920, este é um sistema corrompido, que fomentou desconfiança e abusos. Os movimentos pela igualdade de gênero em todo o mundo são sintomas das tensões sociais vividas pelos seres humanos nas sociedades patriarcais há séculos.
Como escreveu a teórica política britânica Anne Phillips, “qualquer pessoa, com uma pequena chance, irá preferir a igualdade e a justiça à desigualdade e à injustiça”.
Por mais assustadora que às vezes possa parecer a luta contra o patriarcado, é preciso lembrar que não há nada na nossa natureza que diga que não podemos ter uma vida diferente.
A sociedade criada pelos humanos também pode ser reformulada pelos próprios humanos.
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*Angela Saini é jornalista especializada em ciências e autora de quatro livros. Esta reportagem é baseada na sua obra mais recente, “The Patriarchs: How Men Came to Rule” (Os patriarcas: como os homens assumiram o poder, em tradução livre), recentemente indicado para o Prêmio Orwell, no Reino Unido.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha.
A “Vênus de Willendorf”, escultura da arte paleolítica de cerca de 30 mil anos. Museu de História Natural de Viena. Foto: Tania Pacheco