Do impeachment à tentativa de golpe, direita também passou a ocupar as ruas

“300” de Sara Winter, manifestações contra medidas de isolamento social e pedido de intervenção militar marcaram década

Por Rafael Oliveira, Agência Pública

O relógio se aproximava das 15 horas quando milhares de pessoas que marchavam do Quartel-General do Exército desde o início da tarde alcançaram a praça dos Três Poderes, em Brasília. A seguir, parte do país acompanhou atônita enquanto milhares de pessoas invadiam e vandalizavam o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), sem grande resistência das forças policiais.

Mas a conjunção de fatores que levou à tentativa frustrada de golpe em 8 de janeiro de 2023 não se iniciou naquele dia. Tampouco nas semanas pós-segundo turno, quando a extrema direita, revoltada com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro (PL) e alegando uma jamais provada “fraude” nas urnas, montou acampamentos na frente de quartéis ao redor do país, clamando por um golpe militar.

Para o cientista político e coordenador do Observatório da Extrema Direita, Guilherme Casarões, as narrativas de rejeição às instituições e de desconfiança em relação ao sistema eleitoral, centrais para explicar a invasão de Brasília, já apareciam nos primeiros atos da direita, há dez anos, mas foram minimizadas.

“Desde 2014, das primeiras manifestações com uma cara de direita no Brasil, ainda às vésperas da reeleição da Dilma, já havia pessoas carregando cartazes com dizeres do tipo “intervenção militar”, ainda que isso seja crime ou pelo menos um crime em potencial”, explica. “Essas coisas foram minimizadas ou toleradas em 2014 e ganharam um pouco mais de visibilidade [a partir das manifestações] em 2015 e 2016.”

A direita não ia às ruas com tamanha recorrência e amplitude desde a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, série de manifestações ocorridas logo antes do golpe de 1964, explica a cientista política Camila Rocha, autora do livro Menos Marx, mais Mises – O liberalismo e a nova direita no Brasil. Na época, os atos foram uma resposta à suposta “ameaça comunista” representada na figura do então presidente João Goulart, deposto pelos militares em 1º de abril daquele ano.

Nos anos seguintes à redemocratização, o monopólio das ruas seguiu sendo da esquerda, lembra Rocha. Mesmo durante o período mais agudo do mensalão, em que o antipetismo tomou forma, a direita não promoveu grandes manifestações de massa. Isso começou a mudar em junho de 2013, quando uma gama maior de segmentos da sociedade resolveu se manifestar.

“Pela primeira vez, pessoas que não necessariamente eram de direita ou se percebiam como de direita foram às ruas pra defender pautas que ou eram de direita mesmo ou que não eram de esquerda necessariamente”, diz Rocha, parte do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Para a pesquisadora, junho de 2013 também gerou um processo “pedagógico”, com muitas pessoas passando a querer saber mais sobre política e se percebendo de direita. “Foi ali que nasceu um embrião do que depois veio a ser o MBL [Movimento Brasil Livre]. Esses grupos eram minoritários, mas eles perceberam que podiam ir para a rua levando pautas de direita e conseguiriam eventualmente uma maior adesão de massa nessas pautas”, diz.

2013 despertou, Lava Jato explodiu

Com a crise econômica, a eclosão da Operação Lava Jato e a reeleição apertada de Dilma Rousseff (PT), questionada por seu adversário Aécio Neves (PSDB), a presença da direita e da extrema direita nas ruas passou a ser sistemática. Primeiro, mais timidamente, com manifestações convocadas por grupos como o MBL e Vem pra Rua, reunindo alguns poucos milhares de pessoas, ainda em 2014. Nos dois anos seguintes, de maneira mais organizada e robusta, chegando a 13 de março de 2016.

Às vésperas da instalação da comissão especial de análise do impeachment de Dilma, milhões de pessoas foram às ruas em todo o Brasil, na maior manifestação da história do país segundo o Instituto Datafolha, superando as Diretas-Já.

Depois que a petista foi derrubada e Michel Temer (MDB) chegou ao poder, o número de atos protagonizados pela direita diminuiu, segundo os pesquisadores ouvidos pela Agência Pública. Isso mudou com a eleição presidencial de 2018, quando um candidato capaz de amalgamar as diferentes vertentes desse espectro político surgiu.

“O Bolsonaro se constrói como uma liderança política de uma direita que antes não tinha uma pessoa que vocalizava seus anseios. Tem os antipetistas, tem as questões comportamentais e morais que ele traz, tem as questões do liberalismo”, explica a cientista política Carolina Botelho, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP).

Para ela, Bolsonaro foi capaz de compor um mosaico de apoios em um momento em que a sociedade estava estressada com questões econômicas, políticas e institucionais e, também, tomada pelo ambiente antissistema, em parte provocado pela Lava Jato, “em que a política em si é algo deletério, algo que deve ser combatido”.

Rumo à radicalização

A década em que a direita voltou a ocupar as ruas ficou marcada pela extremização da retórica, das pautas e das ações, com a extrema direita se sobrepondo à direita moderada. Se até 2014 os manifestantes eram majoritariamente eleitores do PSDB, como aponta Casarões, nos anos seguintes o partido chegou a ser apontado como de esquerda por alas mais radicais do bolsonarismo.

Da dancinha coreografada de “Bolsonaro é Norte, Bolsonaro é Nordeste” em Fortaleza, ainda em 2018, à marcha rumo à invasão da praça dos Três Poderes, em 2023, a direita foi às ruas com cada vez mais frequência – e com um perfil cada vez mais radicalizado.

“O que vai acontecer no processo das manifestações é que o espaço de alguns grupos que são vetores da radicalização, de uma forma nova e radicalizada de comunicação política, vai aparecer de maneira mais clara, vão ganhar protagonismo”, afirma Casarões.

É ainda no primeiro semestre de 2020, por exemplo, que Sara Winter e seus “300 de Brasília” protagonizaram um ensaio do que viria a ocorrer entre o final de 2022 e o início de 2023.

A ex-liderança do grupo feminista Femen comandou um acampamento na capital do país, com direito à presença de armas entre os integrantes, e capitaneou uma marcha pela Esplanada com tochas, máscaras, roupas pretas e palavras de ordem.

Depois que o acampamento foi desmontado, os extremistas tentaram invadir o Congresso, sem sucesso. Sara Winter chegou a dizer que gostaria de convidar Alexandre de Moraes para “trocar socos”.

A isso se seguiram atos contra medidas de isolamento social, contra o Congresso e contra o STF, especialmente na figura de Moraes, e os atos de 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro falou em desobedecer a decisões do Supremo, e de 2022. Ao mesmo tempo, o então presidente promoveu dezenas de motociatas pelo país.

“Há um certo desprezo pela democracia que se construiu ao longo desse processo [de manifestações]. A ideia-chave talvez fosse aquela de que “Supremo é o povo”. Eles repetiam muito essa frase para dizer que não interessava o que o STF diga ou faça, a vontade do povo vale mais. Mas que povo é esse? Na verdade, é o povo bolsonarista, não é o povo brasileiro como um todo”, diz Casarões.

Com a derrota de Bolsonaro em outubro, o processo de radicalização seguiu. A extrema direita trocou os atos nas ruas por bloqueios nas estradas e acampamentos em frente a quartéis do Exército, clamando por uma intervenção militar, até chegarmos à tentativa fracassada de golpe em 8 de janeiro.

“O bolsonarismo é um fenômeno político baseado em mobilização popular constante. Não só digitalmente, mas também presencialmente. O papel dessas manifestações que o Bolsonaro promovia era justamente deixar essa chama acesa”, explica Camila Rocha.

Segundo ela, a capacidade de mobilização dos manifestantes bolsonaristas se explica em parte pelos “laços de sociabilidade e solidariedade” que foram criados durante os atos. “A despeito dos direitistas acampados não sofrerem o tipo de repressão que a esquerda sofre, ainda assim é uma tática bastante desgastante, a pessoa realmente tem de estar muito mobilizada. E acabava que esses laços eram importantes para reforçar essa dinâmica. Muitas vezes eram pessoas sozinhas, pessoas idosas, pessoas que tinham rompido laços com as famílias”, aponta a cientista política.

Recuo tático

Depois da prisão de milhares de extremistas que participaram dos atos de 8 de janeiro, somada à demora de Bolsonaro para voltar ao Brasil e os sucessivos reveses judiciais do político, como no caso da falsificação do comprovante de vacina, a direita ainda não foi às ruas em peso desde a tentativa de golpe.

Para Casarões, falta uma pauta clara, capaz de mobilizar essas manifestações, como uma eventual prisão de Bolsonaro, por exemplo. Na visão de Camila Rocha, porém, o recuo do bolsonarismo é tático e de curto prazo.

“Eu faço um acompanhamento semanal com eleitores junto com a professora Esther Solano [que estuda a extrema direita no Brasil], e vira e mexe eu já ouvi alguns eleitores do Bolsonaro falando em impeachment do Lula. Eu não me espantaria se em algum momento durante esses quatro anos esse ciclo de mobilizações à direita fosse retomado, principalmente com base no antipetismo, com pautas contrárias ao governo Lula”, afirma a pesquisadora.

Para Carolina Botelho, pesquisadora associada do Laboratório de Estudos Eleitorais de Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa/Iesp/Uerj), é fundamental reverter o quadro de criminalização da política que se aprofundou nos últimos anos, durante a Operação Lava Jato. “Você não rompe com o sistema político do nada, com a sociedade passando incólume”, diz. “Fazer crítica aos políticos é necessário e democrático, faz parte do jogo. A gente tem que punir os maus políticos por seus comportamentos desviantes. Agora, não podemos achar que tem que punir a política e dizer que ela é a raiz de todos os problemas.”

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