Prende, que é preto! Por Ynaê Lopes dos Santos*

Heranças nefastas da escravidão ainda se fazem ouvir em muitas brechas da nossa vida republicana. Por aqui, todo camburão ainda tem um pouco de navio negreiro, afirma a colunista

em DW

O Coronel Miguel Vidigal entrou para a história da Polícia do Rio de Janeiro por implementar um “sistema de segurança” extremamente simples e profundamente eficiente: ele prendia qualquer pessoa preta que considerasse suspeita, e só averiguava a possível culpabilidade dela depois que a prisão tivesse sido executada.

Quem acompanha os noticiários brasileiros, pode tranquilamente se perguntar: mas qual é a novidade nesse sistema de segurança do Coronel Vidigal? Afinal de contas, mesmo que seja ilegal, a suspeição generalizada da população negra é um dos traços mais marcantes das ações policiais no Brasil.

O detalhe é que o Coronel Vidigal atuou na polícia do Rio de Janeiro na década de 1820. Isso mesmo.

Coronel Vidigal era um homem que viveu há 200 anos, num Rio de Janeiro que estava se transformando na maior cidade escravista das Américas. Sua função era, portanto, garantir a ordem da capital do Império do Brasil, uma cidade que dependia do trabalho de milhares de escravizados e escravizadas, mas que temia a presença dessas pessoas, que tinham inúmeras razões para se insurgir contra a escravidão que vivenciavam. Vidigal e seus comparsas entraram para a história por criarem um “sistema de segurança pública” que embora parecesse eficaz, era ilegal, violento e truculento com a população negra, fosse ela escravizada ou livre, e que chegou a ser abertamente condenado por parte da população branca que vivia no Rio de Janeiro de então.

E o que isso tem a ver com o Brasil de hoje? Absolutamente tudo.

No último domingo, dia 4 de junho, um mercado da Vila Mariana, em São Paulo, foi furtado por três pessoas. A polícia foi chamada, e depois de receber a descrição dos criminosos de um dos funcionários do estabelecimento, conseguiu prender um dos três autores do crime, que se recusou a ir para a delegacia. O rapaz, que havia assumido o crime de ter furtado duas barras de chocolate, parecia estar sobre efeito de alguma droga e/ou ter alguma questão de saúde mental resistiu a voz de prisão. E qual foi a solução dada pelos policiais militares? Eles prenderam as mãos e os pés do suspeito com uma corda e o levaram à força para a UPA mais próxima, desrespeitando toda e qualquer noção de direitos humanos.

Coronel Vidigal continua presente

As cenas do rapaz sendo levado pelos polícias são absolutamente chocantes. E como não tenho palavras para descrever esse horror, vou me ater ao fato de que esse horror é historicamente construído e legitimado. A minha sensação era que o Coronel Vidigal havia “baixado” nos dois policiais em questão, que desrespeitaram os códigos de conduta da instituição para “cumprir seu dever” e perpetuaram da maneira mais terrível o racismo que nos ordena.

A Polícia Militar de São Paulo condenou as ações desses seus dois integrantes, os afastou de suas atribuições e abriu um inquérito para averiguar os possíveis erros de conduta. Um procedimento que estamos cansados de ver, e que sabemos, não resultar em muita coisa. E para comprovar isso posso me reportar novamente às ações truculentas do Coronel Vidigal, no século 19, ou então ao caso mais recente, em maio de 2022, no qual a Polícia Rodoviária de Sergipe criou de improviso uma câmara de gás num camburão e matou por asfixia Genivaldo, um homem negro que sofria distúrbio mentais e que não teve nenhuma chance de se defender.

Não há dúvidas que o que temos no Brasil é um padrão de conduta muito bem delineado por parte das corporações responsáveis pela manutenção da ordem, sobretudo a polícia militar. Um padrão que tem no seu DNA o racismo que carrega consigo uma presunção de culpabilidade histórica sob toda e qualquer pessoa negra, pelo fato dela ser quem é: uma pessoa negra.

Não há mais desculpas possíveis para esse tipo de ação. Ou melhor dito, para esse tipo de política pública. A frequência com a qual a população negra é desrespeitada em seus direitos básicos por órgão públicos que deveriam garantir a sua segurança é a prova cabal de que essas instituições foram e continuam sendo organizadas para garantir a cidadania de um grupo específico de brasileiros.

Não sei e nem quero saber os nomes dos polícias militares de São Paulo que desrespeitaram e humilharam um cidadão brasileiro que roubou duas barras de chocolate, tratando-o da mesma forma que os traficantes tratavam os africanos escravizado, ou que a Polícia do Rio de Janeiro tratava a população negra, mesmo porque esse não é um problema localizado ou individual. O que sei, é que as heranças nefastas da escravidão ainda se fazem ouvir em muitas brechas da nossa vida republicana. E que é preciso reconhecer essa herança, para transformá-la.

Por aqui, nesse Brasil de 2023, todo camburão ainda tem um pouco de navio negreiro.

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*Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022)

Foto: Fabio Teixeira/AA/picture alliance

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