A alucinação autoritária, militarizada e masculinizada é algo que nunca foi colocada em seu devido lugar
1.
Os homens que hoje estão próximos de completar os cinquenta anos de idade ou aqueles que já entraram na quinta década de vida são os meninos que, no início da década de 1970, davam seus primeiros passos. Esses meninos nasceram num país militarizado e fortemente repressor ao pensamento divergente às ideias autoritárias imposta pela ditadura militar-civil. O AI-5 reinava soberano e a repressão acumulava seus mortos e desaparecidos. O último governo presidencial, cujo ciclo se encerrou em 31 de dezembro de 2022, nos mostrou que a alucinação autoritária, militarizada e masculinizada é algo que nunca foi colocada em seu devido lugar.
Em relação à assombrosa desigualdade de toda ordem, o Brasil da época do nascimento desses meninos não é muito diferente do Brasil desta segunda metade do século XXI. Sim, avançamos em muitos aspectos, mas o retrocesso é algo que está sempre à espreita, esperando as oportunidades para nos (re)colocar no passado. A votação do Marco Legal na Câmara de Deputados na última semana do mês de maio de 2023 é um dos exemplos de como somos governados por oligarquias reacionárias e destrutivas, no caso, comandadas por um típico oligarca da região nordeste.
As cidades brasileiras do início da década de 1970 também não são muito diferentes das atuais cidades quando se pensa na precarização das condições de vida da população empobrecida e espoliada pelo neoliberalismo que nos assola e contra o qual é preciso se contrapor. Nas cidades dessa segunda década do século XXI, o que cotidianamente se faz recorrente é a presença dilacerante de uma massa de excluídos e marginalizados que cotidianamente são criminalizados.
De alguma forma, aqueles meninos da década de 1970 também se defrontaram com essa dura e persistente realidade nacional. Em termos gerais, bem generalizado, diga-se de passagem, podemos organizar, para fins de uma apreciação também geral, que aqueles meninos seriam representativos de três grupos sociofamiliares. Uns foram os filhos de estruturas familiares tipicamente burguesas que lhes garantia moradia em áreas nobres das cidades, educação de qualidade no Brasil – ao mesmo tempo em que puderam desfrutar de experiências de intercâmbio no exterior -, alimentação, saúde entre tantas outras oportunidades que as condições sociais e econômicas lhes possibilitavam.
Outros são os filhos de famílias que viviam em situação socioeconômica repleta de dificuldades, mas com alguma inserção de seus pais e mães no mercado de trabalho formal. Muitos dos seus pais e mães não tiveram formação profissional em nível superior, em inúmeros casos, o pai e/ou a mãe, nem mesmo terminaram o que hoje seria comparável ao ensino médio. Ainda assim, essa inserção laboral formalizada com a CLT (essa que os neoliberais querem destruir a todo custo) garantiu a esses meninos a possibilidade de nascer e viver seus primeiros anos de vida em habitações com alguma qualidade, mesmo no caso das moradias localizadas em bairros que foram construídos como produto de políticas habitacionais, como aquelas implementadas à época pelas COHABs. Esses bairros, geralmente localizado em áreas periféricas, eram constituídos com alguma infraestrutura urbana e equipamentos urbanos como escolas, postos de saúde e transporte público.
O terceiro grupo de meninos viviam na condição da extrema pobreza, seus pais e mães em sua maioria eram os migrantes que se deslocaram em grande parte para a região sudeste do Brasil, particularmente o estado de São Paulo. Esse processo é bem conhecido: industrialização, urbanização decorrente do movimento no sentido campo-cidade, desqualificação profissional, analfabetismo, desemprego, marginalização social, ausência de políticas de acesso à moradia – exatamente porque, a não formalização laboral os excluía do sistema financeiro da habitação – e impossibilidade de acesso e direito à cidade.
Sobre essas condições, os documentários Fim de semana e Loteamento clandestino, produzidos no âmbito de pesquisas realizadas pela professora Ermínia Maricato da FAU-USP, são um retrato da duríssima realidade de vida à qual milhares de meninos e suas famílias estavam submetidos. Outros milhares de meninos continuam submetidos às mesmas condições precárias, com seus futuros destruídos antes mesmo do próprio nascimento.
Partindo dessas três macro-generalizações sobre as estruturas socioeconômicas e familiares do Brasil da segunda metade do século XX, parece ser impossível tentar encontrar algo que coloque todos aqueles meninos em alguma condição de igualdade, tamanha a desastrosa desigualdade brasileira. No entanto, infelizmente, alguns aspectos desastrosos e maléficos, não só os tornam “iguais”, como conformam a estrutura de um país todo: os preconceitos de toda ordem, seja ele social, racial e sexual, que nos caracterizam como sociedade e, mais dramaticamente ainda, o estruturante machismo que nos foi transferido e legitimado por essa mesma sociedade como essência de nossas personalidades.
2.
Aqueles meninos, hoje os homens com seus cinquenta anos, somos produtos de uma construção social e cultural forjada pelo preconceito e pela noção de que o mundo é algo que está, sempre esteve, e deveria continuar, sob o controle dos homens, especialmente os homens brancos, heterossexuais e herdeiros de capital e propriedade privada de toda ordem, sejam elas urbanas ou os latifúndios rurais.
Se olharmos para a representação da atual legislatura no Congresso Nacional, constataremos que essa hegemonia masculina, rica, branca, preconceituosa, racista, machista é o que nos faz como sociedade. No entanto e felizmente, estamos em um momento de radicais questionamentos e tensionamentos, tão necessários às mudanças, fundamental para que se produza em nós, os que hoje somos os homens com seus cinquenta anos, um necessário e contínuo movimento dialético de desprendimento do que nos foi ensinado quando meninos, o que é, muitas vezes, incompreendido por nós mesmos. Romper e romper-se com o que se é, sempre será um caminho difícil, mas o caminho foi iniciado e ele não pode sofrer retrocessos.
Aqueles meninos, hoje homens adultos, estão passando por um profundo questionamento das condições que lhe fizeram e fazem reverberar condutas que subjugam, violentam, exploram, abusam as mulheres, todas elas. E não é demasiado lembrar, aliás, é necessário publicizar ainda mais, como as mulheres negras e pobres sofrem e sofreram ainda mais violência, pois ao machismo está incorporado o racismo que também nos conforma como sociedade.
Nesse momento da argumentação me vejo obrigado a formular uma indagação estruturante, talvez duas. Esses meninos nasceram machistas e preconceituosos? Se não nasceram, em que momento essa condição estruturante da personalidade masculina foi forjada? As respostas a essas duas perguntas não podem ser formuladas sem uma compreensão profunda da própria masculinidade machista, por isso, o caminho a ser percorrido a seguir está organizado como memória da construção da própria personalidade, como um exercício crítico de autoanálise.
Esse caminho parte de esforço profundo e honesto de muitos homens: um entre outros, entre tantos outros milhares de meninos, vem há tempos tentando se despir da educação machista que nos fez homens. Um entre tantos outros meninos, como outros meninos, teve a oportunidade de ser defrontar com as diferenças desde muito cedo. Diferenças de toda ordem, mas lá naqueles anos 70 e 80 do século XX, sobretudo as diferenças sociais e econômicas que também existiam no interior daquele segundo grupo sociofamiliar mencionado anteriormente. É nesse ponto que aquele exercício de crítica autoanalítica vai avançar como relatos de memória para, aí sim, elucidar um possível momento no qual a condição estruturante da personalidade masculina, machista e racista teria sido forjada.
3.
Nascido num conjunto popular de moradias construídas pelo IAPI numa cidade do interior de São Paulo localizada na região da alta mogiana, antes mesmo da primeira década de vida, já vivia pelas ruas e praças de outro bairro popular, este construído como parte das políticas habitacionais das COHABs. Sua casa nesse bairro, como outros bairros típicos das diversas COHABs existentes na cidade, por muitos anos ficou apenas no contrapiso de concreto, sem qualquer acabamento, por mínimo que fosse. Aos poucos e com muito esforço de sua mãe e seu pai, essa casa passava por melhorias.
A vida nesse bairro – que à época era um bairro periférico da cidade – era organizada entre idas ao colégio público localizado em outro bairro e as brincadeiras e jogos de futebol nas ruas – naquela época os meninos desenhavam com tijolo as linhas de um campo de futebol – e nas áreas de “mato” livre que serviam de “campinho”. Junto a outros tantos meninos, uns mais pobres e outros nem tanto, mas muitos meninos pretos, pardos, todos juntos, compartilhavam a vida livre regida exclusivamente pela luz do Sol a definir o momento de se recolher em casa. Naquele bairro conviviam meninos cujas famílias sobreviviam do trabalho nas mais diversas profissões, entre elas, mecânicos de automóvel, sapateiros, bombeiros, bancários, garimpeiros, pedreiros, comerciários, operários na indústria, lavadeiras e passadeiras, artesãos.
Por um acaso e felizmente, naquele bairro também tinha meninas que brincavam com esses meninos, seja descendo as ruas em “carros de rolimã” construídos pelos próprios meninos ou jogando “bétis” (para quem não sabe o que é isso, clique aqui) cujos tacos eram moldados com pedaços de madeira das construções e reformas das casas daquele bairro. Esses meninos e meninas viviam o cotidiano na mais absoluta inocência, a única coisa que importava era brincar, jogar, se divertir o máximo possível durante todos os dias da semana.
Evidentemente que nada disso apaga a típica formação social e cultural que desde os primeiros momentos de vida, já determina o lugar de cada um, meninos e meninas, na estrutura da sociedade. Tanto é assim que, quando meninos, esses que hoje são homens, ganhavam suas bolas de futebol, enquanto que as meninas ganhavam bonecas e aquelas típicas cozinhas de brinquedo. Ou seja, as meninas recebiam como determinação à sua vida o cuidado do “lar”, delimitando sua inserção pessoal exclusivamente no espaço doméstico.
Em sentido diverso, os meninos, desde sempre, recebiam como determinação o que os colocaria numa posição externa ao mesmo “lar”, o que os fez entender que sobre eles não deveria recair nenhuma responsabilidade sobre o que hoje se entende como “economia do cuidado”. Seus diversos lugares de inserção, no mercado de trabalho, sempre foram externos ao lar, afinal, “lar” é lugar de mulher e, como na música do poeta brasileiro, “todo dia ela faz sempre igual”. Esse é o enredo do samba social brasileiro, um samba de uma nota só: homens exercendo “seus podres poderes”.
Esses meninos e meninas levavam uma vida mais próxima dos meninos e meninas do terceiro grupo sociofamiliar quando se pensa nessa “vida na rua”, ainda que diferenças importantes em relação à realidade cotidiana em termos de alimentação, educação e, até mesmo, acesso a serviços de saúde, sejam marcantes e evidentes. Em relação a essa “vida na rua”, o futuro era algo, no máximo, sobre o que fazer no dia de amanhã. Pensar o futuro em termos educacionais e profissionais era então algo que não fazia parte do cotidiano.
A escola pública onde estudavam dava seus últimos respiros em termos de qualidade do ensino. Logo o ensino público entraria em processo de absoluto abandono por parte do poder público – um projeto de abandono, como sempre alertou Darcy Ribeiro –, seja ele municipal ou estadual. Uma situação muito diferente dos meninos e meninas do primeiro grupo sociofamiliar, cujos pais e mães, com formação superior e atuação profissional bem qualificada e bem remunerada, não só podiam, como desejaram oferecer possibilidades de aprendizado, incluindo – para essa parcela mínima da sociedade brasileira nos anos 1970 e 1980, oportunidade –, por exemplo, intercâmbio internacional para se aprender outro idioma, geralmente o inglês. Ou seja, o abismo entre aqueles grupos sociofamiliares em relação ao “capital cultural” só se fazia mais profundo.
Com o passar dos anos e o avançar da idade, as relações entre meninos e meninas começaram a mudar. Surgiram os primeiros namoros, os primeiros desejos afetivos. A vida com a entrada na adolescência deixaria para trás uma parte daquele cotidiano típico de crianças de bairros populares que faziam uso intenso das ruas e praças.
E exatamente nesse ponto de inflexão se faz preponderante aquela condição que igualaria a todos os meninos em relação às suas formações masculinizadas, estruturalmente machista, moldando a formação da personalidade dos homens que hoje estão em sua quinta década de vida. Assim como dos homens que estão em todas as idades, pois todos eles receberam essa mesma educação, o que significa dizer e reconhecer que os homens continuam recebendo, em sua grande maioria, a mesma educação.
4.
E aqui estamos nós, cinquenta anos depois, diante de nós mesmos, dia dos profundos desafios que temos para nos despirmos da condição masculina, preconceituosa e machista que nos forjou. O princípio para isso, me parece, passa pela necessidade de nos entendermos no mundo que nos fez meninos e homens, afinal, não nascemos preconceituosos ou machistas. Esse princípio deve vir acompanhado de uma prática interna a nós mesmos, que é o de não sentirmos medo de nos despirmos, de não nos sentirmos agredidos ou ofendidos por sermos chamados pelas mulheres de machistas e preconceituosos, pois somos tudo isso, foi isso que nos foi ensinado.
O que está, portanto, formulado como título desse breve ensaio, “Eu, machista” e que carrega a interrogação “?” como dúvida, é algo sobre o qual não existe dúvida, não podem existir dúvidas: sim, somos machistas e devemos (nos) enfrentar a nós mesmos. Nós somos nossos próprios inimigos ou, em um sentido mais profundo, nosso inimigo é a educação que recebemos e que ao longo de nossas vidas até agora ainda não questionamos e não abolimos de nossas práticas. Nesse enfrentamento, as mulheres são nossas mais potentes aliadas, pois elas decidiram se opor e enfrentar o que a maioria absoluta de nós, homens, ainda não enfrentamos.
Tanto é assim que, o motivador desse ensaio foi mais um entre inúmeros tensionamentos que tive com minhas duas enteadas e minha filha, o último desses tensionamentos tendo ocorrido semanas atrás e que me motivou, enfim, a (re)pensar o que está naturalizado e é estruturante de própria personalidade. O mesmo, como minha companheira de vida, Denise, com quem, desde sempre, tratamos, não sem ruídos, de todos esses temas, o que reforça a importância do grupo familiar no processo de desconstrução das práticas machistas, mesmo aquelas mais subjetivas.
Ao olhar para o que elas sempre me falaram, tenho que reconhecer que demorei muito para, radicalmente, olhar para mim mesmo em meio a essa história de vida que me fez, como fez a todos os homens. O que está aqui narrado como memória, é minha própria história de vida, que agora exponho como catarse para tentar me despir do que me fez como pessoa.
Demorei muito tempo para entender que não precisamos ter medo ou vergonha de nos despirmos de tudo isso, que não precisamos ter medo de reconhecer e aceitar que sim, somos o que as mulheres estão dizendo que somos: machistas e preconceituosos. O que não pode mais acontecer é, e isso sim é vergonhoso, fingirmos que não somos o que somos, pois isso só faz ainda mais forte a própria prática masculinizada, tão arraigada e profunda em nossa identidade que ela está.
Reconheço que não é um processo fácil, seja ele individual, em relação a cada um de nós, seja como sociedade, mas felizmente o mundo está em movimento e em mudança. No entanto, é preciso reconhecer, e ao mesmo tempo lamentar, o fato de que essa mudança não vá ocorrer com todos os homens. Muitos, mais velhos ou mais novos, seguirão entoando seu brado masculino.
Eu estou em processo de mudança, inclusive há tempos, especialmente a partir do momento em que me defrontei com o preconceito que eu mesmo carregava em relação ao hoje mundo LGBTQIA+. Eu era um jovem adulto pós-adolescente que vivia um mundo masculino de jovens garotos dos bairros populares e periféricos que sonhavam com a vida profissional como jogadores de futebol. Não tinha como apagar esse registro, eu fui forjado nele, carregava isso comigo, carreguei por muito tempo. E hoje, como parte das mudanças que procuro preservar, está a de reconhecer que aquilo era a mais pura e absoluta homofobia, ainda que lá naqueles anos da década de 1980, a homofobia não era um tema de discussão na sociedade tal como ocorre hoje. Estava, ao contrário, lamentavelmente naturalizada entre os homens.
Qualquer pessoa que tinha como horizonte cultural o padrão televisivo de programas como “Os Trapalhões” da Rede Globo sabe perfeitamente que o que mais se expunha em seus quadros era a homofobia como “piada” – que de “piada” não tinha nada – e a diminuição da mulher como objeto erotizado por homens de todo. Eu não conhecia outro mundo, não poderia ser diferente, quero dizer, a mim e a nós homens, à época meninos-adolescentes com seus 15 anos, só nos restava reproduzir essas práticas.
Entre esse período de meados dos anos 1980 e o início da formação superior em Arquitetura e Urbanismo no ano de 1994, pouco coisa tinha mudado, ainda que uma experiência teatral na Oficina Cultural Cândido Portinari em Ribeirão Preto, entre 1992 e 1993, começaria a me impor alguma mudança. Aquela homofobia adolescente dos anos 80 foi defrontada e colocada em questionamento ao ter que compartilhar as experiências cênicas na Oficina com homens que, felizmente, não tiveram qualquer receio em se expor em relação às suas sexualidades.
Foi meu primeiro grande e profundo aprendizado, foi quando comecei a me despir, ainda que não de tudo, não do machismo no seu sentido mais estrutural e profundo, mas tive a felicidade de iniciar algum processo de mudança. Hoje, com meus cinquenta anos, pude acolher, apoiar e compartilhar a sexualidade de minha filha, pois lá no início da década de 1990 eu tive a oportunidade de mudar. Quantos homens tiveram essa oportunidade? E entre os que tiveram, quantos entenderam que era preciso iniciar alguma mudança?
5.
Em relação às mulheres, trago comigo as inúmeras experiências, por exemplo no âmbito profissional, com importantes mulheres com as quais eu compartilhei e compartilho desafios, projetos, experiências e, o mais importante, o fato de ter aprendido e seguir aprendendo muito com todas elas. Meu trabalho de formação superior foi orientado por uma mulher. No mestrado e no doutorado foi orientado por uma mulher. Realizei, até o momento, três pós-doutorados, dois deles supervisionados por mulheres. Todos os meus vínculos interinstitucionais em grupos de pesquisa são coordenados por mulheres. São, todas elas, Ritas, Denises, Cristinas, Stellas, Josiannes, Nilces, Rosas, Varletes, Veras, Darianes, Silvanas, Joanas, Margareths, Fernandas, Carolinas, Ana Lúcias, Sarahs, Eulálias, Ana Castros, Maribels, Virgínias, Elanes, Célias, Marias, Ana Patrícias, Elisângelas, Anas Fernandes, Anas Barones, Alejandras, Gugas e tantas outras, mulheres com as quais meu cotidiano profissional se estrutura desde meados da década de 1990.
A realidade brasileira, no entanto e lamentavelmente, nos coloca diante de um quadro pavoroso: muito pouco mudou. Ódio, preconceito, violência contra as mulheres, violência homofóbica, machismo, obscurantismo, negacionismo, misoginia, tudo está aí, diante de nós, dentro de nós, dentro de nossas casas, no espaço público, no espaço da política, dentro do Congresso Nacional e, até poucos meses atrás, confortavelmente acomodado na cadeira presidencial dentro do Palácio do Planalto. Um sinal explícito e inquestionável de que não mudamos, de que nossa cordialidade falaciosa é o que nos faz como sociedade: o preconceito e o machismo são as forças estruturantes desse país complexo e contraditório.
Devemos desistir de seguirmos pelos caminhos das mudanças? De forma alguma, e quem nos ensina que não podemos desistir, são as próprias mulheres a enfrentar o machismo, é o mundo LGBTQIA+ a enfrentar a homofobia, a transfobia, a todo tipo de preconceito e ódio. Infelizmente não vamos mudar o que hoje está constituído de inúmeras causalidades historicamente persistentes, muitos homens, ao contrário, estão aprofundando suas práticas masculinizadas, reforçando seus preconceitos e homofobias.
Um caminho possível, me parece, foi lançado pelo roteiro do radicalmente belo e angustiante filme Entre mulheres (no original em inglês Women Talking), dirigido por Sarah Polley e baseado no livro homônimo Mirian Toews. Vítimas de crimes sexuais praticados pelos homens da comunidade, elas organizam uma assembleia entre elas para decidirem se deixariam a comunidade ou se ficariam e enfrentariam aquela situação. E ficar trazia consigo a insuportável situação de lidar com o fato de que a maioria dos homens adultos se dispuseram a pagar a fiança para os homens que cometeram esses crimes.
Como as mulheres não sabiam ler ou escrever, foi escolhido um jovem homem adulto, o professor da comunidade, a única pessoa que sabia ler e escrever, para registrar todas as discussões e deliberações. Como metáfora ao avesso, esse jovem homem não poderia fazer qualquer consideração, seu papel era o de registro das decisões, em especial, a decisão de abandonar a comunidade, tal qual acontece no filme.
Mas, se mais uma vez, as mulheres são as responsabilizadas pelos homens diante das consequências dos crimes realizados por outros homens, na medida em que abandonaram tudo o que haviam construído, qual o caminho possível que o filme nos apresenta? O caminho é, certamente, a mais profunda e potente decisão que essas mulheres tomaram em relação ao jovem professor: ele não as acompanharia, pois ele teria que cumprir um papel de profunda relevância, qual seja, educar os outros tantos meninos que ficaram na comunidade com os homens. Seu papel era educar esses meninos para que, diferentemente dos meninos da década de 1970, não recebessem a educação machista, violenta e preconceituosa que forjou os homens adultos da comunidade.
E é interessante observar como ambas as decisões, a de ir embora do vilarejo e a de que o professor deve ficar para educar os meninos, são a única representação do exercício da liberdade e autonomia para decidirem o que elas, mulheres, entenderam como o certo. A ideia da “metáfora ao avesso” é a que traz exatamente ambas as contradições às quais elas se depararam no único momento de liberdade em relação aos seus desejos e interesses: confiar ao único homem alfabetizado o papel de educador das futuras gerações de homens, mas, sobretudo, a liberdade para decidirem que o melhor é abandonar a vida que levavam ao se verem esmagadas pela reciprocidade e apoio que os homens da vila ofereceram aos homens que cometeram os crimes contra elas.
Em resumo, a clássica e estrutural situação em que as vítimas de violência são responsabilizadas pela violência que sofreram. Nada mais próximo do que pensa a maioria dos homens adultos, quero dizer, das práticas machistas.
Ainda assim, educar os atuais e futuros meninos me parece ser um caminho possível, talvez não o ideal, mas é um caminho. Até que a mudança ocorra integralmente, não nos resta outra coisa que não seja, cotidianamente, nos defrontarmo-nos contra o que somos, pois é como fomos educados e criados. Sim, “Eu, machista”, é o que somos todos os homens, e essa luta é de todos e todas nós que desejamos a mudança. A única interrogação possível é aquela que nos questiona a nós mesmos, sem medo, sem vergonha, sem receios.
–
*Rodrigo de Faria é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB).
Mulheres fazem ato contra cultura do estupro, na Igreja da Candelária, centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil