Desnudar o poder numa sociedade violenta

Sociologia como coragem: quando novos atores alcançam condições de agir, as elites respondem com violência. Há pouco, vimos isso no Brasil. Cabe aos sociólogos buscar esquemas analíticos que realcem os modos do controle, explícitos ou sutis

Por Elide Rugai Bastosna coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), em Outras Palavras

O tema que me propõem – A sociologia como o quê? – é intimidante, porque obriga a repensar nossa própria atuação como docentes, orientadores e pesquisadores na área específica da sociologia. Ainda mais, na formulação da questão a ser debatida, temos a ilustração de respostas de grandes autores formuladas anteriormente.

Primeiramente, Florestan Fernandes, no II Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em 1962, define a sociologia como afirmação. Segundo, depois de 25 anos de ditadura, com a repressão proibindo esses encontros, no III Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em 1987 – ano importante para a sociedade brasileira, pois marca a instalação da Constituinte –, Gabriel Cohn define a sociologia como interrogação, o que seria fundamental para a elaboração de um diagnóstico da sociedade brasileira e para proposta de questões a serem abordadas no debate da nova Constituição, embora muitos delas não fossem consideradas e discutidas.

É importante salientar que tanto a formulação sobre o que é a sociologia quanto a temática dela decorrente estão fortemente enraizadas nos dilemas de seu tempo. Nesse sentido, qual a prioridade da abordagem que nos permite definir hoje os problemas muitas vezes aparentes, mas cuja naturalização ao longo da história fez com que não se tornassem eixo das reflexões? Ousar trazê-los para lugar urgente da análise muitas vezes foi motivo para “legitimar” a repressão sobre a sociologia e seus estudiosos. Florestan Fernandes, afastado em 1968 da Universidade de São Paulo pelo AI-5, ilustra o procedimento de controle da mudança social, no caso pela ditadura militar, que usou essa estratégia para coibir não só a difusão de informações como a própria produção de novos conhecimentos sobre a sociedade brasileira.

Florestan Fernandes definiu a sociologia como afirmação em um momento no qual a questão da modernização está, principalmente, enfeixada no debate sobre o desenvolvimentismo, marcado pela visão econômica. Nessa discussão, várias das atuações desse autor estão referidas à recusa de um projeto de desenvolvimento formulado para o conjunto da América Latina desacompanhada do debate sobre como as mudanças programadas afetariam os diferentes setores da sociedade. Mais ainda, adianta perguntas incômodas: que camadas sociais seriam beneficiadas por essas mudanças? Elas dariam prioridade a interesses dos setores tradicionais que sempre impuseram sua agenda político-social ou aos novos atores que emergirão nesse processo trazendo novas reivindicações? Já consciente dos acontecimentos que avançam em direção ao golpe de 1964, afirma o lugar da sociologia na luta contra o obscurantismo.

25 anos depois, Gabriel Cohn aponta as novas tarefas da sociologia. Mostra que, se a necessária luta contra o autoritarismo centralizou os debates durante aqueles anos, naquele momento caberia à sociologia não estacionar na análise da crise, mas interrogar a sociedade de modo novo e inteligente, indagando que novas questões se colocam. No cenário das transformações que ocorreram naquelas duas décadas e meia, que operaram uma “modernização pelo alto”, ou seja, sem a participação do conjunto da sociedade, aponta que o dilema afirmação/negação, constitutivo da análise sociológica, configura a temática que se nos impunha naquele contexto. Assim define a sociologia como interrogação.

Ao retomar as exemplares colocações sobre dois períodos importantes que redimensionaram a produção sociológica, nos parece claro que o tempo e o atual contexto histórico nos colocam diante de situações prementes. Não é sem razão que o tema “mudanças sociais” é a sombra, ou até mesmo o fantasma, que acompanha nossas reflexões. Agora é nossa vez de retomarmos a tarefa de Sísifo, que sofreu castigo aplicado por Hermes, deus das trevas, de buscar a pedra no fim da ladeira e trazê-la até o topo, até que ela role novamente e tenha que ser apanhada outra vez e por outros. E, mais ainda, conservar a esperança de que ela não tenha rolado para o abismo, impedindo sua retomada.

O quadro atual permite que eu ouse afirmar o que é a sociologia, longe de achar que acrescento algo muito diferente das definições anteriores propostas pelos meus mestres. Defino sociologia como coragem.

Os últimos anos nos puseram, não só no Brasil como no mundo, frente a vários problemas que já existiam, mas eram naturalizados e, por isso mesmo, não definidos claramente como conflitos a serem superados. Constato hoje a existência de um eixo a que os articulo: trata-se da questão da desigualdade. A sociologia representa, do meu ponto de vista, a coragem de denunciá-la, desnudá-la em seus vários aspectos e visualizar futuros possíveis para superá-la. Apresento alguns que parecem óbvios, por serem claramente visíveis e abordados pela mídia.

A crise sanitária que ainda enfrentamos desnudou a não igualdade entre as classes e camadas sociais, entre as diferentes regiões dos países e o brutal esquecimento das condições de vários continentes. Não por acaso, o Sul do mundo mostrou claramente a negligência de consideração, pelo hemisfério norte, da igualdade e da solidariedade como princípios políticos. Igualdade tem sido definida formalmente, apoiando-se na letra da lei e não na realidade da assimetria social, econômica, política e cultural. Solidariedade, substituta do termo fraternidade, que perdeu o sentido semântico que lhe foi conferido no contexto de sua formulação como princípio transformador, sendo confundido com caridade, ainda corre o risco de sofrer a continuidade desse equívoco. Exemplifico no mesmo quadro da pandemia. A Organização Mundial de Saúde tem alertado e denunciado a carência de vacinas contra o vírus nos países pobres, como os da África. Sabemos que em locais onde a meta de vacinação já foi cumprida, estoques maiores que a necessidade imediata correm risco de serem perdidos. Assim, alguns países doaram àqueles necessitados parte do excedente. Ação meritória, sem dúvida, mas as palavras dizem muito: doar significa favor e não direito ancorado em um princípio político. Diante dessa situação, a sociologia deve representar a coragem de revolver e retirar da lama a que foram alijados esses princípios que moldaram a modernidade, ao lado da liberdade, que também é principalmente entendida em seu plano individual e não social.

Volto a dar um exemplo simples, decorrente da desigualdade: a pobreza, presente no mundo desde sempre, constatada por estatísticas e, até mesmo, centro de políticas públicas para amenizá-la em várias regiões. Essa opção da sociedade é saudável e necessária para nos apontar os problemas e sua gravidade, tentando solucioná-los eventualmente. Mas simplesmente levantar dados não é fazer sociologia, embora esse diagnóstico tenha função de alerta e de base para a reflexão. Sociologia é coragem de indagar e denunciar a respeito do processo de reprodução da pobreza; seus efeitos na distribuição de poder na sociedade; as razões da exclusão desses setores da agenda política voltada a discuti-la; o descaso e/ou a repressão às mobilizações sociais que a denunciam, e, ainda, a desqualificação ou perseguição aos intelectuais que a tomam por objeto de reflexão crítica.

Outro exemplo óbvio é o da discriminação, não apenas a racial e a de gênero, mas também a sofrida pelos pobres. Todo comportamento discriminatório deve ser recusado veementemente numa sociedade democrática. No entanto, além da recusa total à discriminação, fazer sociologia é ter coragem de demonstrar que a atitude ou o comportamento discriminatório traduzem um princípio fortemente naturalizado na sociedade: trata-se da afirmação, sem pudor, da existência de setores populacionais inferiores, portanto incapazes de se beneficiarem dos mesmos direitos que têm a considerada “boa sociedade”, ou “os bons”. Acrescente-se a isso que parte substantiva “da boa população” considera que a “situação inferior” é produto da incapacidade desses setores de se equiparar aos “de nível superior”. Cabe hoje à sociologia a coragem de mostrar as diversas situações de vida dos setores discriminados, vivendo em grande parte na periferia das cidades e operando como trabalhadores mal remunerados, enfrentando um cenário social que não lhes permite ter as mesmas condições de competição do restante da população que se beneficia nas várias esferas da sociedade – a social, a econômica, a política e a cultural. Assim, restaria “naturalmente” a essa parcela da sociedade as tarefas e as profissões que não lhes abre espaço para a mobilidade social ascendente, ou usando expressão do senso comum, “melhorar de vida”. Assumindo a coragem que configura a sociologia, ao sociólogo cabe refletir sobre os efeitos de tendências ou políticas que visam apagar o avanço que algumas políticas públicas alcançaram no sentido de atenuar essa diferença competitiva. Vemos, hoje, propostas como corte de cotas na universidade ou bolsas de estudo que permitem a subsistência a alunos ou pesquisadores; descaso com a educação ou má distribuição de verbas para a escola pública; má informação propositada sobre a saúde, educação, economia e muito mais.

Até então falei sobre a sociologia em geral, mas passo a pensar na sociologia em relação ao que vivenciamos aqui e agora no Brasil. A sociologia como coragem entre nós significa admitir que não podemos aplicar, por modismo ou conforto, as reflexões que dão conta das sociedades hegemônicas. Temos que assumir corajosamente, como Florestan Fernandes apontou, que fazemos sociologia em um país que se encontra na periferia do capitalismo. Assim, a análise de nossa estrutura social e as possibilidades de agência, embora sem renunciar às grandes reflexões teóricas, deve considerar o modo como se organizaram as classes sociais, seu lugar histórico no poder, e como as elites sempre se organizaram para manter o controle das mudanças sociais. Em cenários de mudança, em vários momentos de nossa história, novos atores alcançaram condições de agência que antes lhes era negada, ou mesmo algum papel na formulação da agenda político-social. Sabemos o resultado dessa “ousadia”: forte repressão, golpes de Estado, ditaduras direcionadas à restrição da participação desses atores. Esse controle das mudanças sociais é bem claro atualmente. Assistimos a intervenções paralisadoras nas áreas da cultura e da educação; perseguição a artistas e intelectuais; cortes de verbas para pesquisas e avanço do conhecimento; fortes recuos nos já alcançados avanços históricos, para ser modesta nos exemplos. Nesse quadro, a sociologia deve assumir a coragem de não só denunciar esse controle, mas buscar esquemas analíticos que permitam mostrar as formas explícitas e as mais sutis – pois há a crença quase generalizada de que vivemos, no país, uma situação democrática, já que as instituições estão “plenamente em vigor” –, de modo a desnudar as formas pelas quais ele se exerce. Vale a pena nos dedicarmos a repensar o sentido da autocracia.

Poderia me estender sobre situações concretas, cuja superação seria possível pela força de uma sociologia como coragem. Mas fico por aqui, desejando que ao assumir tal posição tenhamos a ousadia de expressar da melhor forma possível o fato de que nós, sociólogos, nos sentimos desconfortáveis com as condições que são oferecidas à população considerada inferior e sem direitos, neste mundo e neste país.

Fragmento de AgitProp, de Aline Albuquerque, como parte da exposição Brasil Futuro: as Formas da Democracia, no Museu Nacional da República, em Brasília, 2023

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