“A Paz de Jesus” e “Selva” no tuturubim tetê. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Tuturubim tetê, tique taque tambarola, teje dentro, teje fora.
(Fórmula de sorteio em jogos infantis. Manaus. Anos 1940-50)

Dois Projetos de Lei Ordinária – bem ordinária – aprovados por unanimidade na quarta-feira (24/05) pelos 24 deputados da Assembleia Legislativa (ALE-AM) decretaram as saudações “Selva’ e “A Paz do Senhor Jesus” como patrimônio cultural imaterial do Amazonas, o que é tão surreal e inacreditável que, para avaliá-lo, só mesmo recorrendo ao sorteio dos jogos infantis.

Muitas crianças que brincaram nas ruas de Manaus nos anos 1940-50 já subiram o antigo Boulevard, hoje Av. Álvaro Maia, e se encontram nos “verdes e floridos campos de Valhalla”, mas os sobreviventes que ainda não fizeram a grande viagem haverão de lembrar o  Tuturubim tetê usado antes de qualquer jogo para escolher quem ocuparia o lugar de destaque, quem ficaria na berlinda ou quem seria a “manja”.

Essa fórmula de sorteio – essa sim nosso verdadeiro patrimônio – nos permite decidir sobre o destino das duas leis indecorosas encaminhadas para a sanção ou veto do governador Wilson Lima (PSC vixe vixe). Apresentamos aqui o seu autor e sua justificativa e, no final, o tuturubim tetê.

Guerreiro da selva

O autor dos projetos 086 e 087/2023 é o deputado estadual Dan Câmara (PSC vixe vixe), coronel reformado da PM do Amazonas da qual foi Comandante Geral. Por isso, ficou conhecido como Comandante Dan.

Por requerimento dele, a ALE-AM celebrou o “Dia do Guerreiro na Selva” em sessão especial realizada na quinta-feira (01/06), data de nascimento do coronel Jorge Teixeira, o Teixeirão, criador do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Afinal, quem foi esse “guerreiro”? Ele protegeu a floresta, os rios, os ribeirinhos, os povos indígenas e impediu assassinatos como os de Dom e Bruno?

A guerra dele era contra outros “inimigos”. Teixeirão, prefeito de Manaus (1973-79) não eleito pelo voto popular, mas nomeado pela ditadura militar, declarou guerra aos habitantes da floresta. Não deixou uma única árvore em pé na cidade. Devastou tudo. Ameaçou indígenas, a quem chamou de “bobalhões parasitas”. Hoje é nome de um bairro, batizado assim pelos apagadores da memória popular. É dele a saudação “Selva”, segundo Dan, que contextualiza:

– “Selva” é uma linguagem criada no Amazonas – expressão que substitui ok e tudo bem. No início do CIGS não havia ficha de serviço, o que levava a sentinela a perguntar o destino de cada viatura que saia do quartel. O seu rumo era indicado pela resposta apressada: “Selva”. Curta e tão repetida, ”fez-se saudação espontânea e vibrante, alastrou-se, expandiu o seu significado, ecoou por toda a Amazônia, contagiando a todos com o mesmo ideal”. E bota “ideal” nisto.

Guerra e Paz

E a outra saudação “A Paz do Senhor Jesus”? Acontece que Dan pertence à Igreja Evangélica Assembleia de Deus, propriedade de sua família chefiada por seu irmão Silas Câmara, depufede (Republicanos vixe), réu confesso em ação penal pela prática de “rachadinhas”.

– Um dos costumes mais conhecidos dos evangélicos é o de se cumprimentar de uma maneira peculiar com a expressão: A paz do Senhor Jesus – explica Dan, mas silencia sobre a dívida das igrejas com a União, que dobrou no governo do Coiso, assim como sobre o julgamento do irmão, que quase prescreve graças ao pedido de vista do “ombro amigo” de André Mendonça, ministro “terrivelmente evangélico” do STF.

O resultado é uma paródia do romance Guerra e Paz, que pode muito bem ser reescrito por um Tolstói de igarapé. Uma saudação é um grito de guerra profano “usado na continência de militar do Exército na Amazônia”. A outra, anúncio de paz, usa o nome de Deus em benefício próprio, o que configura uma heresia, uma apostasia, a negação da fé.

Outro deputado evangélico, Wanderley Dallas, hoje sem mandato, também tentou patrimonializar o amazonês em 2015, mas pelo menos escolheu léxico apropriado, parte dele emprestado do Nheengatu, o que escandalizou seus pares: piroca, xibiu, fofobira, pinguelo, baitola, toba, pimba, cabaço.

Aliás, por que não decretar logo as línguas indígenas como patrimônio do Amazonas, em vez de avacalhar a cultura amazonense com projetos obtusos, medíocres e oportunistas, ofensivos à inteligência do eleitor? Deputados são pagos para contribuírem na melhoria de vida dos amazonenses e não para submeter-nos à galhofa e ao ridículo.

Teje fora

Quando o poeta Aldísio Figueiras e a historiadora Gleice Oliveira postaram a notícia no facebook, juro que atribui à imaginação brincalhona deles. Mas logo descobri que devaneios e delírios de um deputado vão mais além da poesia e da história, não têm limites.

Cabe agora ao governador Wilson Lima sancionar ou vetar o projeto encaminhado pela ALE-AM. Seguidor do José Melo Merenda e do melomerendismo, apostamos que o Wilson Bolachinha vai sancionar a lei de autoria do deputado de seu partido.

Só resta ao eleitor jogar o Tuturubim Tetê e na hora do Teje Fora ir eliminando cada um dos deputados na próxima eleição para recolocar lá dentro da ALE-AM candidatos comprometidos com os interesses populares como Serafim Corrêa, José Ricardo, Praciano. Mas serve também a outra fórmula, que invoca Santo Antônio:

– Fui no mato cortar lenha, santo Antônio me chamou, quando santo chama a gente, que fará o pecador? Anambu, Anambu, quem está fora és tu, Anabela, Anabela, quem está fora é ela.

Cabe ainda uma terceira fórmula inspirada no biólogo britânico Thomas Huxley, que ficou conhecido como o “Bulldog de Darwin” por ser defensor apaixonado da teoria da evolução. Para ele, “o segredo da alegria, da meiguice e da maturidade é carregar o espírito da infância na velhice”.

Iluminado por Huxley e considerando que os deputados fizeram merda, proponho adaptar para a ALE-AM a “Panelinha de Ioiô” usada pelas crianças para identificar o autor incógnito de um pum silencioso, mas fedido. Neste caso, o eleitor vai tocando na cabeça de cada deputado, ao pronunciar cada sílaba de forma destacada:

 Panelinha de Ioiô, foi ao mar encheu, vazou, três panelas, bolou fedor, casca de ovo pra quem peidou.  

Simulei várias vezes o sorteio com as fotos dos 24 deputados e a última sílaba – “dou” – caiu sempre no Dan, embora todos eles sejam cúmplices, o pum foi coletivo.

Permito-me concluir usando os dois novos patrimônios imateriais do Amazonas:

Selva, Leitor (a)! A Paz do Senhor fique contigo!

P.S. – Ver também:

1. A piroca é nossa https://www.taquiprati.com.br/cronica/1140-a-piroca-e-nossa

2. Teixeirão Bobalhão https://www.taquiprati.com.br/cronica/1401-midias-indigenas-e-radio-yande-teixeirao-bobalhao

 

 

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