“2023 não é 2013. A sociedade está, hoje, muito mais mobilizada e a ‘ameaça de Bolsonaro’ não será um salvo-conduto eterno para frustrações e trapaças”. Entrevista especial com Igor Mendes

Junho de 2013 é “um dos raros acontecimentos políticos não cooptado pelas classes dominantes”, diz o pesquisador

Por: Patricia Fachin, em IHU

Se as divergências interpretativas sobre o que foi e significou Junho de 2013, onda de protestos que ocorreu há uma década no país, seguem em disputa entre aqueles que pretendem explicar o fenômeno e suas consequências, de outro lado, uma sensação permanece: “um sentimento de divórcio entre as instituições ditas representativas e o povo se ampliou”, diz Igor Mendes na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Segundo ele, ao longo da última década foi recorrente “uma indignação contra o sistema político oficial, um forte sentimento de não se sentir representado por ele”. Entretanto, adverte, “associar isso à extrema-direita, como fazem os setores social-democratas, é um erro, porque é deixar nas mãos da extrema-direita o monopólio da crítica a instituições que são fortemente aristocráticas, que administram a repressão sobre as classes populares e são, por isso, desacreditadas por elas, e com razão”. E acrescenta: “Dois anos depois da ação policial mais letal da história, na favela do Jacarezinho, nenhum policial foi responsabilizado. Como dizer para as famílias das vítimas que ‘confiem na justiça’ ou nas leis?”

Igor Mendes é licenciado em Geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Mendes, juntamente com outros 23 participantes dos protestos de Junho de 2013, foi condenado pela Justiça do Rio de Janeiro à prisão por crimes como formação de quadrilha, dano qualificado, lesão corporal e corrupção de menores. Em “A pequena prisão” (N-1 Edições, 2017), ele relata a experiência da prisão em Bangu. Em “Essa indescritível liberdade” (Faria e Silva, 2020) e em “Junho Febril” (N-1 Edições, 2023), seu mais recente livro, Mendes aborda as manifestações de 2013 a partir da juventude periférica.

Confira a entrevista.
IHU – Como interpreta Junho de 2013, dez anos depois e à luz dos acontecimentos políticos da última década?

Igor Mendes – Junho de 2013 é um acontecimento capital na história recente do país, um divisor de águas, que inaugura o período, ainda em curso, de crise da nova República. Por isso, creio que é possível afirmar que ainda vivemos sob a égide de Junho de 2013.

IHU – O que as pesquisas que realizou sobre os eventos de 2013 indicam a respeito do que aconteceu no país naquele momento?

Igor Mendes – Um fato dessa importância e de tal ineditismo (porque protestos naquelas proporções, radicalizados e em âmbito nacional, foram inéditos em nossa história) não pode ser explicado por um único fator. Parece-se mais com um acidente de avião, que só ocorre devido a uma confluência de contradições. Para entender a explosão de indignação de Junho de 2013, deve-se pensar no contexto internacional, com a eclosão de diversos movimentos de massas, que naquele momento atingiu sobretudo os países da periferia do capitalismo, como foram os casos do Egito, da Turquia e da Grécia.

No Brasil, é muito importante pensar nos megaeventos, com efeitos como o das remoções – que desterritorializou comunidades inteiras, a favor dos interesses da especulação imobiliária –, o aumento do custo de vida e o impacto das grandes obras, parte das quais nunca foram concluídas; o problema crônico dos transportes públicos, que tem ensejado protestos populares de tempos em tempos em diversas cidades; a frustração com um governo dito progressista que, entretanto, em nome da “governabilidade”, apenas geria, em favor dos privilegiados de sempre, o status quo, incluindo a explosão do encarceramento e o incremento da dita “guerra às drogas”. De todo modo, o que nacionalizou os protestos foi, sem dúvida, a brutal repressão policial contra os manifestantes, que teve seu ápice na ação da Tropa de Choque na avenida Paulista a 13 de junho, o que causou uma enorme comoção e, por consequência, ampliou as pautas e o alcance dos atos.

IHU – A hermenêutica da esquerda político-partidária sobre Junho de 2013 contribuiu, em alguma medida, para arrefecer as manifestações e a emergência de novas lideranças políticas ao longo da década?

Igor Mendes – O ano de 2013 foi um movimento essencialmente político, que se chocou com todo o espectro da política oficial. Se lermos os jornais da época, assim como os noticiários da TV, veremos que, pelo menos até o dia 20 de junho, havia um consenso na condenação dos protestos, dos “vândalos” e da interrupção das vias, em nome do direito “de ir e vir” (ir e vir de carro, porque a luta contra o aumento das tarifas busca defender exatamente o direito de ir e vir dos mais pobres), que era o padrão da cobertura da imprensa até então. Esta visão, sintetizada na frase de Arnaldo Jabor, então uma espécie de ideólogo da família Marinho, de que “estes revoltosos de classe média não valem 20 centavos”, foi e é ainda hoje compartilhada pela esquerda institucionalizada, que era (e voltou a ser) governo.

A renomada filósofa Marilena Chaui disse, por exemplo, à época, em palestra para quadros da Polícia Militar do Rio, que os “black blocs agiam com inspiração fascista”. Imagine, palavras ditas para uma instituição que tem a prática diária do extermínio de jovens pobres nas favelas! E isso é mais perverso se pensarmos que ela não falava com intelectuais, mas com aqueles que apertam o gatilho, ou seja, justificava a sua ação repressora de um modo direto. Isso ocorre porque, para todas essas correntes, política é apenas o que ocorre no âmbito oficial.

Mesmo a sua visão de “classe trabalhadora” se restringe, na verdade, com raras exceções, aos setores mais organizados e hoje minoritários dos que trabalham, como funcionários públicos, operários qualificados etc.

Toda uma massa de jovens desempregados, sem-teto, semiproletários, que não são sindicalizados, não estão filiados nem se sentem representados por qualquer partido, e que formam uma espécie de maioria invisibilizada, segue à margem do debate público, eu diria, à margem da ordem inaugurada em 1988, e não têm qualquer identidade com as suas instituições. O ano de 2013 foi um movimento dessas pessoas, como se reclamassem que se lhes dessem voz. 2013 não foi antipolítico, mas político, e um dos raros acontecimentos dessa natureza que conseguiu não ser cooptado pelas classes dominantes.

IHU – Uma das críticas feitas às manifestações como as de 2013 é que elas são organizadas fora do âmbito político-partidário e, em decorrência disso, não geram mudanças concretas na política partidária. Como avalia esse tipo de crítica? Quais as consequências práticas de Junho de 2013 hoje, em termos de organização política e da emergência de novas lideranças e novas pautas sociais?

Igor Mendes – 2013 não buscava reformar a política partidária. Foi a Dilma quem propôs, em pronunciamento no dia 23 de junho, salvo engano, uma “reforma política”, que jamais saiu do papel. Quanto a isso, creio que é um erro absoluto restringir política à política partidária oficial (infensa, aliás, aos interesses e à participação popular). Essa identificação unilateral de política com as instituições de Estado é um dos sintomas mais eloquentes do apodrecimento ideológico de uma certa esquerda brasileira, que capitulou ao liberalismo.

Ao contrário de outros movimentos urbanos recentes, como o Fora Collor ou os atos pelo impeachment da Dilma, 2013 não elegeu nenhum deputado nem criou algum movimento com seu nome. Junho de 2013 dialogou com os governos tanto quanto os governos dialogaram com ele: nada. Essa não integração não representa fraqueza. É, pelo contrário, uma das forças de Junho de 2013 e o seu traço de ineditismo, como um movimento da plebe revoltada. As cenas da revolta diante do prédio da Assembleia Legislativa do Rio, em 17 de junho, quando os manifestantes descontaram sobre 30 policiais décadas de repressão, chegando quase a incendiar o prédio, ilustram bem isso. Querer que essa população marginalizada (que sofre na pele, todos os dias, as mazelas de uma sociedade tão desapiedadamente desigual como a nossa) se expresse de forma ordeira, pacífica e comportada é, na verdade, não querer que ela se manifeste.

Consequências de Junho de 2013
Quanto às consequências práticas, 2013 remexeu toda a sociedade brasileira. Pensemos, por exemplo, na própria generalização dos protestos, com barricadas e corte de vias, que se generalizaram desde então; na politização da sociedade, que passou a debater as questões da política no almoço de domingo; nos muros das cidades, que passaram a ser ocupados por pichações e manifestações artísticas em geral com caráter reivindicativo, de denúncias e tudo mais.

O ano de 2013 viu um pico no número das greves, em comparação com os anos anteriores, porque os trabalhadores, ao assistirem a juventude tomar as ruas, com ampla repercussão, se sentiram encorajados a atropelar as velhas lideranças sindicais burocratizadas. Um exemplo vivo disso foi a greve dos garis, no carnaval de 2014 no Rio.

Em 2015, os estudantes secundaristas ocuparam escolas em todo o país. Voltaram a ocorrer assembleias em bairros e mesmo uma retomada das praças públicas, como espaço de produção cultural e de luta política. Outro dia, assisti a uma resistência contra uma reintegração de posse em Rondônia em que os camponeses usavam escudos contra a tropa de choque. A luta dos sem-teto, desde então, ganhou uma repercussão que nunca tivera antes. Todas essas são contribuições das Jornadas de Junho para a mobilização e a ação políticas a partir de uma perspectiva popular.

IHU – Entre as reivindicações de 2013 destacavam-se a redução no preço da tarifa dos transportes e a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação. Qual é a situação do país, hoje, em relação a essas questões?

Igor Mendes – Quanto ao preço e à situação dos transportes, bem como dos serviços públicos como saúde e educação, estamos piores do que estávamos em 2013.

IHU – Quais os sentimentos que moveram Junho de 2013 e qual é o sentimento da sociedade hoje, uma década depois?

Igor Mendes – Sobre os sentimentos, creio já ter respondido acima. Apenas como síntese, uma indignação contra o sistema político oficial, um forte sentimento de não se sentir representado por ele. Associar isso à extrema-direita, como fazem os setores social-democratas, é um erro, porque é deixar nas mãos da extrema-direita o monopólio da crítica a instituições que são fortemente aristocráticas, que administram a repressão sobre as classes populares e são, por isso, desacreditadas por elas, e com razão. Dois anos depois da ação policial mais letal da história, na favela do Jacarezinho, nenhum policial foi responsabilizado. Como dizer para as famílias das vítimas que “confiem na justiça” ou nas leis?

Portanto, uma década depois este sentimento de divórcio entre as instituições ditas representativas e o povo se ampliou.

IHU – Dez anos depois, o PT retorna à presidência. Quais as expectativas em termos políticos, mas também em relação às demandas sociais?

Igor Mendes – A ameaça de Bolsonaro levou muitas pessoas que se separaram do PT em 2013, ou mesmo antes, a voltar para sua órbita em 2022. Ocorre que, para o PT e para o Lula, pessoalmente, aquele modelo de toma lá dá cá, pragmático, personalista, mesmo corrupto – pomposamente chamado de “governabilidade” pelos seus ideólogos –, é a forma certa e mesmo a única de fazer política. De modo que os mesmos caminhos levarão aos mesmos resultados, com uma ressalva: 2023 não é 2013, porque a sociedade como um todo está, hoje, muito mais mobilizada e a “ameaça de Bolsonaro” não será um salvo-conduto eterno para frustrações e trapaças, ainda mais dada a sua iminente inelegibilidade. Portanto, a expectativa é de que veremos uma enorme intensificação da luta popular nos próximos anos.

Igor Mendes (Foto: Reprodução)

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