A urgente reafirmação do SUS e da saúde como um direito
De 2016 a 2022 o SUS foi alvo de ataques contra sua viabilização financeira, seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. No primeiro governo pós-golpe de 2016, com o impedimento de Dilma Roussef, por meio da desconstrução do SUS: mantinha-se o seu arcabouço, mas o corroía por dentro, como no jogo dos palitos da infância de muitos de nós.
O jogo consistia em retirar palitos de um conjunto jogado aleatoriamente sem mexer os demais, para que se lembrem. Asfixia-se orçamentariamente o SUS com o teto de gastos no orçamento federal, e em consequência se precarizam as relações de trabalho dos profissionais de saúde e privatiza-se a administração direta dos serviços estatais de saúde. Programas de saúde são excluídos ou drasticamente reduzidos, tudo em nome da eficiência do mercado versus ineficiência do Estado, e da responsabilização privada das famílias pela sua saúde, segundo a clássica cartilha neoliberal.
A partir de 2019 o jogo político embrutece, e a saúde torna-se um dos seus principais alvos, seja pelo volume de recursos que envolve, pela capilaridade social do SUS, pelos interesses econômicos abarcados pela saúde, o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) ataca a saúde, historicamente objeto dos desejos dos governantes. O ataque é frontal e brutal contra o SUS. E justamente quando somos atingidos (e não de surpresa, pois teríamos tido três meses “de vantagem” com relação aos países desenvolvidos para nos prepararmos) pela epidemia do SARS-CoV 19. A tragédia foi avassaladora. Mais de 700 mil mortos. E que seriam milhares a mais, não fosse exatamente a resistência e a capacidade do SUS, mesmo sucateado e boicotado, reagir.
Esse sucateamento durante a gestão de Jair Bolsonaro não ocorreu somente no que diz respeito à supressão de boa parte dos programas, do esvaziamento de outros, mas também no que tange à demolição virulenta do Ministério da Saúde. Seus quadros técnicos foram expurgados e no seu lugar foram nomeados, em sua imensa maioria, militares ignorantes na área da saúde, mas com fortes convicções privatistas e lucrativas do que deveria ser a política desse ministério.
Por exemplo, saúde da mulher, nem pensar, pois era contrária aos valores do modelo “da família exemplar”. Educação sexual de crianças e adolescentes tampouco, pois isso incitaria ao sexo precoce dos adolescentes, e por aí vai. Em nome da moral e dos bons costumes, um ministro da saúde que só ouviu falar e foi ver do que se tratava o SUS após sua nomeação, um militar da área de logística do exército, toma as rédeas da saúde em plena pandemia.
O desastre não se faz esperar e os resultados catastróficos são bem conhecidos. O ministro seguinte segue a mesma política, mas talvez por ser formado em medicina e ter que preservar seu diploma não permanece muito tempo no governo. E vem então um outro ministro, também médico e dono de poderosa rede de saúde em um estado do Nordeste, e aprofunda a política de destruição do ministério da saúde e do SUS, chegando a propor em 2022 que fosse criado um outro formato de atendimento na assistência médica, a Open Health, que disponibilizaria todas as informações dos usuários dos serviços de saúde, públicos e privados, entre si, visando “maior eficiência” do subsetor privado de saúde. Significativo que fosse uma proposta inspirada do Open Banking, em vigor desde 2021 no país.
No setor da política científica, incluída aí a da área da saúde, o mesmo foi feito. Não só via desfinanciamento do ensino público, da pesquisa e da formação de pesquisadores, mas também via promoção do descrédito da ciência em prol da crença. E com isso campanhas de boicote à vacinação – contra Covid e demais enfermidades contagiosas – e a promoção de utilização de medicamentos ineficientes para o combate do vírus. Destrói-se o PNI, Programa Nacional de Imunizações, que pela sua excelência fez o país ser reconhecido internacionalmente como modelo de cobertura vacinal da população. Cloroquina e ivermectina, recusadas até pelas emas do Planalto, são distribuídas entre os yanomamis. E o Brasil passa então a ser reconhecido internacionalmente não pelos êxitos e conquistas graças aos 30 anos de construção do SUS, mas pela letalidade das políticas de saúde a partir de 2016, e aprofundada a partir de 2019.
O que restou desses anos de políticas de abate social? Ao lado de altas taxas de mortalidade durante a pandemia, a aguda falta de cobertura vacinal, a ignorância sobre a violência advinda das agressões sexuais, no geral de origem doméstica, que redundam em altas taxas de gravidez dentre nossas adolescentes, da alta da mortalidade materna, a visibilidade do SUS pelo seu lado positivo e afirmativo: a resistência de nosso sistema público de saúde no atendimento aos acometidos pela Covid, sobretudo por parte não só de iniciativas estaduais e municipais exemplares (o governo federal fez-se presente pela sua ausência e irresponsabilidade diante dessa “gripezinha”), mas sobretudo dos recursos humanos, que demonstraram seu compromisso com a saúde enquanto um bem público.
É oportuno registrar um fato inédito: enquanto no Amazonas faltava oxigênio nos hospitais por absoluta inoperância (proposital?) do Estado nacional, os ricos da região alugavam aviões para serem transportados para as capitais do sudeste do país, sobretudo São Paulo, para serem tratados pelo setor privado. Até que este, superlotado, avisa que não atenderá mais esses pacientes potenciais; e ainda é levado a pedir socorro ao SUS porque sua infraestrutura não estava mais dando vazão à sua demanda. Pela primeira vez que se tem notícia o setor privado recorre ao SUS.
Mas diante desse quadro de horror, tem-se a vitória de Lula, e em 2023 tem início o novo governo. Evidencia-se então um giro de 180o na direção da política de saúde no país. É nomeada Nísia Trindade, historiadora de formação, e primeira mulher a ocupar o posto na história brasileira. Embora importante, não se trata aqui de enfatizar a questão de gênero aí implicada, e sim o seu perfil profissional, que em termos de definição das políticas de saúde que o ministério está e irá definir, revela-se estratégico.
Nísia Trindade desenvolveu sua trajetória profissional com a experiência de ensino em escola pública, e posteriormente como pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz. Destacou-se por seus trabalhos acadêmicos, mas sobretudo por seu perfil de “construtora” de instituições. Destacou-se como militante institucional na Fiocruz, conseguindo até ser nomeada a primeira presidente da instituição mesmo com a ferrenha oposição do então chefe de governo, e consolidou as ideias, fundamentos e propostas da Reforma Sanitária a partir dessa instituição.
Não se poupou de participações em encontros e eventos da saúde e em defesa do SUS, mas deles participou com um mescla de expertise no campo e militante institucional com enorme capacidade de “costura” (o termo pode pegar mal por ser uma mulher…) entre distintos interesses e disputas de poder sem, no entanto, se identificar como uma personalidade da política do sistema brasileiro. Não disputou cargos eletivos por partidos políticos, nem executivos em governos da administração direta.
E por que esse seu perfil é trazido à baila? Exatamente porque é ele que, associado à sua habilidade na micropolítica, permite que a ministra avance na agenda da reconstrução do SUS, uma vez que não disputa forças políticas no interior do campo político que compõe o governo, e com isso fazendo com que, de um lado, as disputas pela pasta se situem fora do campo de sua atuação, e de outro, libera-a para enfrentar as grandes questões e disputas de interesses econômicos no interior do próprio setor.
Mas tem mais: Nísia Trindade inicia sua gestão já com atuações imediatas de reconstrução e de retomada de programas de saúde caras ao movimento sanitário e aos defensores do SUS. Mesmo quando, após a lei 8080/1990 se tratava de começar a construir o SUS, talvez não se tenha visto anteriormente uma experiência no Ministério da Saúde de tantas ações imediatas após a posse do titular da saúde.
Não são somente os programas que são retomados; essa retomada se dá a partir de uma nova linha sistemática de sua articulação: tendo como carro chefe o Complexo Econômico Industrial da Saúde enquanto vetor de desenvolvimento, esses programas são retomados com o traço de se buscar a transversalidade entre eles, e deles com os demais programas, econômicos e sociais. Isso, embora sempre buscado na construção do SUS, agora não se trata mais de adendos ao acesso à saúde, mas de como articulá-los entre si. Toma-se como exemplo, aqui, a Farmácia Popular, que ao disponibilizar acesso gratuito às mulheres de medicamentos anticonceptivos, por exemplo, estreita as relações das usuárias do SUS com o programa Saúde da Mulher. Esse é somente um exemplo.
De fala mansa, mas de atitudes firmes e ações consistentes, a ministra da saúde vai avançando na busca da governabilidade e da governança com os principais sujeitos envolvidos – representantes do legislativo e do executivo – no que diz respeito diretamente à saúde e ao SUS. Já no que diz respeito ao fato de a pasta da saúde ter sido historicamente sempre o objeto do desejo das forças políticas privatistas e retrógadas, essa questão fica por conta da macro política, das negociações entre Executivo e Legislativo. O presidente Lula tem dado sinais de apoio à ministra em vários momentos; não há, porém, como fazer com que esse apoio explícito se garanta sem uma forte mobilização social de apoio ao SUS e ao que ele representa em termos de avanço na ordem democrática do país.
O que a experiência desses quase seis meses de governo Lula mostra é que negociar a saúde em nome da governabilidade é dar tiro no pé, pois a direita é insaciável, e o próprio setor privado da saúde, não fosse a sua financeirização, também está vendo sua lucratividade, no que diz respeito estritamente à assistência médica, diminuir. E segundo, e fundamental, a saúde é um bem público de consumo coletivo inegociável. O terceiro ministério em termos orçamentários, com a capilaridade que conquistou na construção do SUS, sobretudo nos governos petistas, será sempre objeto do desejo das forças políticas retrógadas. Mas é necessário que fique claro para a sociedade que a saúde é inegociável!
O desafio, portanto, consiste em como fazer com que o SUS e o direito à saúde, sobretudo neste momento que passam a ser alvo da ganância insaciável do que há de mais retrógado em nosso país, mobilizem a sociedade em sua defesa, tornando também os movimentos sociais transversais em suas demandas. No período mais recente o país foi palco de forte mobilização social pela saúde, haja vista as mais de 100 conferências livres realizadas a partir da iniciativa Frente pela Vida, e em breve haverá a realização da 17a Conferência Nacional de Saúde. Eventos promissores em termos da mobilização social. Mas que não impediram, por exemplo, que no “Conselhão”, dos 11 representantes da área da saúde indicados somente uma represente os ideais do SUS e da saúde como um direito, os restantes sendo do setor privado.
É inegável que a saúde aumentou sua mobilização nesse período. Resta agora estourar a bolha e fazer com que ela seja apropriada também pelos demais movimentos sociais e suas lideranças. Somente com forte apoio da sociedade e das lideranças dos distintos movimentos sociais poderá a ministra da saúde seguir os passos que vem dando de forma competente, e o executivo resistir aos avanços gananciosos dos representantes do mercado da saúde. E que os não pobres da classe média alta para cima não se fiem no mercado da saúde para garantir assistência médica para si. Esse já dá fortes mostras de ser incapaz de cobrir as necessidades da saúde mesmo dos 25% da população brasileira coberta por ele! Suas filas de espera para a realização de exames de média e alta complexidade já competem com aquelas do SUS.
Mais que nunca, o SUS para todos representa garantia do direito à saúde de toda a população! Nísia Trindade fica!
Amélia Cohn, socióloga, é professora aposentada da Faculdade de Medicina da USP.