Reforma Agrária Popular e tecnologia no campo: por um projeto de Brasil

Entenda e relação entre o projeto de Reforma Agrária Popular do MST e a necessidade de tecnologia no campo brasileiro, voltada para agricultura familiar camponesa, a partir do exemplo da China

Por Fernanda Alcântara, na Página do MST

Semear a terra, colher o fruto e promover a Reforma Agrária Popular: essa é uma bandeira de luta do MST que abrange diversas dimensões no Movimento. Afinal, uma Reforma Agrária abrangente e significativa vai além da simples distribuição de terras, buscando também transformar as relações sociais no campo. A luta é diária na promoção de uma agricultura sustentável, baseada em princípios agroecológicos, que valorizem a produção de alimentos saudáveis, a preservação do meio ambiente, o fortalecimento da cultura camponesa e a garantia dos direitos dos trabalhadores rurais.

No projeto de Reforma Agrária Popular para o campo e para a sociedade brasileira, a agricultura precisa se tornar um instrumento que contribua não apenas para o desenvolvimento, mas também para a resolução dos problemas estruturais que afetam toda a sociedade. E em um mundo em constante crescimento populacional e com desafios ambientais cada vez mais urgentes, a implementação de novas tecnologias na produção de alimentos tornou-se uma necessidade urgente.

A adoção de tecnologias avançadas no campo tem o potencial de impulsionar a segurança alimentar do país, combatendo a fome; aumentar a eficiência produtiva e garantir a preservação ambiental. Mas para isso, estas tecnologias também devem ser adaptadas e aplicadas em pequenas propriedades e na agricultura familiar camponesa, contribuindo para a inclusão social e o desenvolvimento agroecológico nas comunidades rurais.

“O desenvolvimento da agroecologia pressupõe a existência de máquinas agrícolas adequadas às necessidades e adaptadas a cada contexto socioambiental. Isso possibilitaria a redução do trabalho árduo, o aumento da produtividade e da renda, fruto de um trabalho mais equilibrado com a natureza”, explica Débora Nunes, da Coordenação Nacional do MST e do setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente.

Neste sentido, a desigualdade social e tecnológica no campo hoje é uma realidade presente no dia a dia Sem Terra de todo o Brasil. Hoje, a tecnologia rural muitas vezes está focada no setor do agronegócio, com destaque para o cultivo de commodities em larga escala. Enquanto na região Sul 44% dos pequenos produtores possui máquinas agrícolas, no Nordeste, região que concentra perto da metade dos camponeses do país, apenas 1,5% conta com esse apoio, embora sejam estes que desempenhem um papel crucial na produção de alimentos e na manutenção da diversidade agrícola, como lembra Débora.

“Entendemos que as máquinas precisam se adaptar às realidades da maioria, considerando que a topografia dos terrenos geralmente não é plana. Nesse sentido, a ciência, a tecnologia, as universidades e o conhecimento precisam ser utilizados para pensar em máquinas adaptáveis às diversas realidades. Devemos considerar a produção no Sul do país, bem como na região Amazônica, onde temos uma realidade de agrofloresta. Não podemos tratar as coisas de forma fragmentada, mas sim como um todo”, afirma.

O exemplo chinês

Agricultura é uma atividade fundamental na China, com uma história que remonta milhares de anos. A rica tradição agrícola do país está profundamente enraizada em sua cultura e desempenhou um papel crucial no desenvolvimento da civilização chinesa ao longo dos séculos, em especial por sua vasta extensão territorial e importância do setor agrícola para sua economia.

Nas últimas décadas, o país tem passado por uma revolução tecnológica na agricultura, impulsionada pela crescente demanda por alimentos, a necessidade de aumentar a eficiência produtiva e o compromisso com a sustentabilidade. Na China, a tecnologia agrícola abrange diferentes sistemas de produção, incluindo a agricultura familiar, buscando promover a sustentabilidade e a segurança alimentar.

Em recente entrevista ao Podcast “Flow”, João Pedro Stedile, da Direção Nacional do MST falou sobre os desafios que limitam o desenvolvimento e impacto no setor agrícola. Segundo ele, ao realizar uma comparação com a China, é possível identificar algumas lacunas e oportunidades perdidas no Brasil.

 Os chineses são os maiores produtores mundiais de máquinas agrícolas para camponeses. Aqui no Brasil há oito fábricas de tratores, na China, existem 8 mil. Cada município da China tem uma fábrica de trator. O trator não anda de caminhão o país todo, como vemos nas estradas aqui; o trator sai da fábrica e vai direto para a cooperativa, direto para o agricultor, porque tudo é perto. O filho do camponês trabalha na fábrica de trator, está tudo interligado”.

-João Pedro Stedile

O acesso desigual às tecnologias rurais no Brasil também está diretamente ligada a esta defasagem no campo brasileiro, uma vez que pequenos produtores muitas vezes enfrentam dificuldades para adquirir e utilizar tecnologias modernas devido a restrições financeiras. Na China, programas governamentais têm sido implementados para promover o acesso igualitário às tecnologias no campo, beneficiando pequenos agricultores e aumentando sua produtividade.

“Uma máquina que colhe o nosso arroz custa um milhão de reais. A cooperativa que compra, porque ninguém tem esse dinheiro, trabalha por dois meses só, que é o tempo da colheita. Depois tem que guardar no galpão, e tratar ela com muito cuidado, porque se estragar, já era. Na China, eu vi máquinas colheitadeiras de arroz do tamanho de uma Kombi. Por que nós não temos essa fábrica aqui? Porque eles só querem lucro, com “os grandes”, eles não pensam no desenvolvimento do país”, lembra Stedile.

Débora Nunes coloca também na equação as abordagens agroecológicas que não recebem a devida atenção em termos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. “É importante pensar em máquinas de pequeno e médio porte, acessíveis e com financiamento possível para a agricultura familiar. Ao invés de grandes máquinas que impactam a terra e compactam o solo, precisamos de máquinas que possam contribuir efetivamente para a agroecologia”, ressaltou.

A partir do Programa Mais Alimentos, lançado em 2008 e re-lançado agora no Plano Safra para a Agricultura Familiar, o governo visa estimular o acesso dos agricultores a crédito, assistência técnica e tecnologias para modernização da produção, lembrou o Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Paulo Teixeira. “O censo agropecuário de 2017 mostra que apenas 18% dos estabelecimentos rurais têm acesso a tratores e maquinários para ajudar na produção. A ausência de tecnologia aumenta a penosidade do trabalho no campo e, desde o primeiro dia do seu governo, o presidente Lula determinou que queria a volta do programa Mais Alimentos para melhorar essa situação”.

Ainda assim, Débora Nunes contrapõe esta promessa, lembrando que há um desenvolvimento desigual devido à priorização, por parte do Estado, de investimentos, políticas públicas e legislação favoráveis ao agronegócio, enquanto a agricultura familiar camponesa é penalizada. Para isso ela usa também o próprio Plano Safra, destacando que serão destinados recursos cinco vezes maiores ao agronegócio do que à agricultura familiar camponesa. Além disso, as leis, normativas, portarias e acesso aos pequenos agricultores, camponeses e assentados da Reforma Agrária são mais favoráveis ao agronegócio ainda hoje.

Reforma Agrária Popular como solução

A superação da desigualdade social e tecnológica no ambiente rural requer uma abordagem transformadora e abrangente, o que inclui políticas públicas que promovam a redistribuição de terras, o acesso a crédito agrícola, a capacitação técnica, a infraestrutura básica e a conectividade digital em áreas rurais. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias adaptadas às necessidades das agricultoras e agricultores também são fundamentais para reduzir essa disparidade.

Devemos caminhar em direção a um modelo de agricultura e tecnologia produtiva que leve em conta o meio ambiente e as questões ambientais e tecnológicas, sem contradizer nosso objetivo. Para isso, é necessário que o Estado, como a Embrapii [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial], uma empresa brasileira encarregada de pensar em máquinas, e as universidades, estejam disponíveis”.

– Débora Nunes

Stedile, por outro lado, ressalta as parcerias entre governos, organizações e instituições de pesquisa. “Os chineses vão doar para nós 40 máquinas, que vão chegar no início da safra agrícola. Vamos distribuir pelo Brasil essas máquinas, para testar, porque precisamos considerar o solo. Quem irá testar são as universidades, a Emprapii, vamos testar com quem tem conhecimento científico para avaliar. A partir de uns seis meses e desta avaliação, vamos tentar montar fábricas aqui no Brasil, em sociedade com eles. Eles entram com a tecnologia, nós com a mão de obra”, conclui.

*Editado por Solange Engelmann

As tecnologias no campo tem o potencial de impulsionar a segurança alimentar, o combate à fome entre outros benefícios para agricultura familiar camponesa. Foto: Fernanda Correia/MAB

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