A reforma tributária era uma pauta sobretudo dos empresários, não dos trabalhadores nem da esquerda
Vi comentários sobre o suposto caráter neoliberal da reforma tributária. Não sou economista, mas, trabalhando com teoria política, conheço algo do neoliberalismo. Não o vejo na reforma tributária.
Esta, por tudo o que li, é razoavelmente neutra quanto à distribuição de renda. Não podemos dizer, portanto, que seja progressista. Ela é progressista sim, em dois pontos ao menos: a tributação de jatinhos e iates; o pagamento de cashback em certas compras (cesta básica?) pelos mais pobres (o que por sinal é melhor do que desonerar a cesta, que também é comprada por não pobres).
Obviamente, o mercado preferiu mudar o imposto sobre o consumo antes de mexer no imposto de renda ou de criar um sobre grandes fortunas. O que faz que essa reforma tributária não seja um projeto propriamente progressista.
O que a reforma tributária traz, por tudo o que li, é uma simplificação administrativa. Isso é bom, claro. Vai reduzir os gastos com a administração. Se isso vai criar milhões de empregos, não acredito. Criará sim, mas não tantos. Porém, meu ponto é: nada disso torna essa reforma neoliberal. Neutra, apenas moderadamente progressista, não quer dizer neoliberal. Só isso.
Agora, que a reforma tributária era uma pauta sobretudo dos empresários, não dos trabalhadores nem da esquerda, é verdade. Mais uma vez um governo progressista se vê na situação de fazer o que querem aqueles que votaram e até financiaram o outro lado. Mas por quê?
Vejo duas razões:
(i) O poder de fogo do capital e de sua mídia. Eles criam uma pauta. A pauta do risco Brasil, das dificuldades de empreender etc e tal. Cobram. E quando recebem (por exemplo, Dilma Rousseff baixando juros e contendo preço da energia), não agradecem. Ao contrário. Eles são como aquele dragão do Disney, que devora pão de ló sem parar.
(ii) A inépcia de nossa burguesia. Ela não tem consciência de classe, no sentido de pensar qual seu verdadeiro interesse, o que sempre inclui o longo prazo. É imediatista. Pensa que sacaneando trabalhadores e meio ambiente consegue mais lucro. O caso das Lojas Americanas é ilustrativo. Mas, ao mesmo tempo, ideologicamente nosso povo foi tão alertado contra o “cumunismo”, como brincava Henfil, que acaba sendo solidamente pró-capitalismo.
Uma esquerda que proponha algum socialismo morre em alto mar, nem chega à praia. E por isso a tendência, nos anos 1960 como nos governos Lula, da esquerda é tentar esclarecer essa burguesia e, além disso, criar condições materiais para ela cumprir seu papel. Entram o mercado nacional, uma relação decente com o trabalho, o respeito aos biomas. Mas ela é a “droite la plus bete du monde”, para retomar a frase de Guy Mollet sobre a direita francesa. E agindo assim a esquerda corre riscos, porque a bestice dessa direita a faz correr para o colo da extrema direita e do golpe sempre que se sente não paparicada. Ou seja, justamente por ser inepta em termos de um projeto nacional, ela dá nisso.
Tenho vontade de falar mais do projeto nacional. Tarso Genro era quem mais falava dele. Estou participando do Forum Interconselhos em que o governo escuta os movimentos sociais para desenhar um projeto de Brasil. Economia totalmente ausente das reivindicações, embora o Ministério do Planejamento esteja aqui, ouvindo. Movimentos sociais pedem dinheiro para políticas justas, mas têm forte aversão ao que chamam de capitalismo.
Mas lembro que no tempo de FHC, em que pesem seus méritos democráticos, a ideia de projeto foi alcunhada como getulista, atrasada, e se apostou no mercado. Este definiria tudo. Não sei se voltarmos a ter estaleiros é bom ou mau, mas os argumentos contra eles (e contra a fábrica brasileira de chips, a CEITEC, que Jair Bolsonaro tentou destruir e Lula está recriando) são bem do complexo de vira-lata.
Quando se tenta sair dele, leva-se chumbo da mídia e dos economistas do capital. Não sou economista, como sabem, mas sei reconhecer a retórica política, e ela é exatamente essa: a do gozo na condição de subalternos (um pequeno aceno a Lacan, aqui).
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*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade).