Carta de um parente ameaçado de morte. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“I think that I shall never see / A poem lovely as a tree”.
(Joyce Kilmer. Trees and Other Poems. 1914) 

Manaus, 15 de julho de 2023

Prezado

Essa carta é um pedido de socorro. Minha vida virou um inferno, corro o risco de ser trucidado. Milicianos invadiram meu domicílio no Parque dos Bilhares e tocaram o terror. Encoberto pelas árvores que ainda não foram cortadas, consegui fugir de lá para me esconder numa ocupação irregular no bairro Coroado, tudo isso a pé, porque não recadastrei no Sinetram o benefício de meia-passagem estudantil. Espero tua ajuda.

Conto contigo porque, afinal, ambos nascemos em Manaus e compartilhamos os mesmos avós. Somos parentes, embora geneticamente afastados. Estamos unidos pelo sangue ancestral e por uma história comum, além de sermos quase-cunhados. Tua irmã Ângela, por quem estou perdidamente enamorado, diz que podes me ajudar por teres forte ligação afetiva com a tradicional Ponte dos Bilhares, parada final do bonde da tua infância.

Sei que moras em Niterói, mas continuas visceralmente ligado à Manaus. Por amor de Deus, denuncia os criminosos na tua coluna do Diário do Amazonas. Não tenho mais onde me esconder, porque a SEMMAS-Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade “limpou” a área para construir sua sede dentro do Parque dos Bilhares e já decepou mais de 100 árvores de pequeno e médio porte desde segunda-feira (10). Agora vão atacar as grandes. Onde me refugiar?

No meio das ameaças que sofro, aproveito para denunciar o crime ambiental contra a cidade cometido por quem devia nos proteger. Pode uma igreja destruir o altar para lá instalar um mercado? Ou uma sala de aula ser transformada em covil para traficantes, como quer o Eduardo Bananinha? Pois é. Quem está desmatando a área verde é justamente a entidade responsável pelo meio ambiente.

O desplante dos Bilhares

O prédio da SEMMAS vai ocupar o fundo do Parque, que é protegido pela Lei Orgânica do Município. O lugar, perto do Igarapé da Cachoeira Grande, alaga nas grandes enchentes. Ignoro o estudo ambiental que subsidiou as licenças de instalação e operação. Mas posso te mandar fotos de ipês, palheteiras, bacurizeiros, mognos, oitizeiros, palmeiras, que estão sendo cortados. Manaus, que já é um forno, vai virar fornalha para assar seus moradores.

A Secretaria alega que, para compensar, fará plantio em outras áreas do Parque, dentro do corredor ecológico do igarapé Mindu.  Conversa fiada. Lero-lero. Depois de cortar a raiz, não tem mais volta. Como restaurar um espelho, que foi estilhaçado em mil pedaços?

Já estão erguendo um tapume para esconder da sociedade este crime. Cadê o Ministério Público para exigir proteção às árvores frondosas que nos dão sombra? Enquanto outras cidades ornamentam seus jardins plantando, Manaus desplanta, o que é um desplante.

Fizeram isso na Praça da Saudade. Em 1962, o governador Gilberto Mestrinho mandou cortar árvores e caramanchões para construir lá o prédio da Secretaria de Educação, que depois de muitos anos foi derrubado graças à ação impetrada pelo saudoso Jefferson Peres. Igual destino terá o prédio da SEMMAS, se não conseguirmos impedir sua construção.

– O Parque Ponte dos Bilhares é como se fosse um filho – disse o ex-prefeito Serafim Corrêa (PSB), seu idealizador e construtor, em cuja gestão foi inaugurado. Ele criticou o desmatamento e com ele concordou o vereador Rodrigo Guedes, que cobrou da Prefeitura a construção em outro local da nova sede, orçada em R$ 18 milhões.

Floresta Manáos

O pior é que o desmatamento da SEMMAS afeta minha vida particular, porque eu residia em fragmentos da floresta do Bilhares que se conectam a outros através da calha de igarapé. Tive de fugir para uma ocupação irregular no bairro Coroado, que está cercado por conjuntos habitacionais na Área de Proteção Ambiental (APA) da Floresta Manaós.

No entanto, nem mesmo nessa outra floresta me deixaram em paz. A Câmara Municipal de Manaus (CMM) aprovou na quarta (21/6) um projeto do vereador Diego Afonso (União Brasil, vixe vixe) para reduzir a APA, alegando que ela havia sido invadida pelo comércio local e já estava totalmente desfigurada. Seu raciocínio é: o que é um pum pra quem já está todo cagado? Ele, que é dono de um posto de gasolina, quer instalar outro dentro da Floresta. Não pensa na cidade, mas no seu bolso.

Para onde fugir agora? Os únicos parentes que tenho foram ameaçados e se esconderam em cafofos no Rio Preto da Eva e em Itacoatiara. Sabes do que estou falando, porque das tuas nove irmãs, duas residem nas imediações da Floresta Manáos: Regina, no Conjunto Acariquara, e Teca, no Atílio Andreazza.

Os vícios jurídicos desta agressão à Floresta Manaós – assim grafada para evidenciar sua antiguidade – foram tão gritantes que a Procuradoria Geral do Município deu parecer contrário. Soube que na quarta (12/7), o prefeito David Almeida vetou este Projeto de Lei e o remeteu de volta à CMM, que vai submetê-lo outra vez à votação. Portanto, a luta continua.

Na defesa da biodiversidade, devemos convocar o general Welton Yudi Oda, professor de Biologia da UFAM, e as tropas do Coletivo Floresta Manáos que, ao contrário do Grupo Wagner, não é composto por mercenários, mas por forças militantes e voluntárias. Chamem o Serafim, sua secretária Luciana Valente, a geógrafa Ana Rita Pelicano, a historiadora Gleice Oliveira e o general Ademir Ramos, que estão em todas as frentes de combate.

Uma cidade na floresta

– Uma rica biodiversidade ajuda a equilibrar a sensação térmica nas suas imediações. Se sempre cedermos a caprichos privados, uma área verde considerável pode desaparecer e já estamos sentindo suas nefastas consequências – disse Ana Rita.

Sempre me pergunto por que Manaus, no centro da selva amazônica, não segue o exemplo de Freiburg? Esta cidade, a mais ecológica da Alemanha, incorporou grandes fragmentos de floresta e tem 60% de seu espaço urbano tomado por jardins, bosques, parques, onde as crianças brincam.

Lá, ninguém corre risco de morte, como acontece comigo em Manaus, onde o espaço verde está cada vez mais reduzido. Disso resulta, primeiro, uma crueldade com as crianças: Where do the children play? – como canta Cat Stevens. Depois, “o desmatamento destrói o habitat de várias espécies, incluindo o Sauim-de-Coleira” – diz Ana Rita, que citou meu caso.

Se tinhas algumas dúvida, agora já sabes que quem te escreve sou eu, o Sauim-de-Coleira, daqui do único lugar do planeta onde podemos ser encontrados: Manaus e seus arredores. Por isso somos conhecidos no mundo inteiro como Sauim-de-Manaus.

Ocorre que cerca de 80% dos meus parentes foram para o beleléu nos últimos 18 anos, segundo a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). Se nos exterminarem, c’est fini, o planeta nunca mais verá em carne e osso minha pelagem branca em torno do pescoço semelhante a uma coleira.

Esta tragédia foi bem representada pelo poeta Manoel de Barros quando disse que é possível reconstruir uma central nuclear destruída, mas “o homem ainda não foi capaz de recriar o cu de uma formiga, se ela for extinta”.

Já fui cantado em prosa e verso. Lê para teus filhos e netos o livro infantil “O Sauim Isso e Aquilo”, escrito pelos biólogos Mauricio Noronha, Dayse Campista e Marcus Pimenta, cujo protagonista é o papaizinho aqui. As milícias arboricidas odeiam poesia e temem a literatura em defesa das árvores sem as quais não sobrevive este pequeno primata amazonense que te escreve.

O poeta Joyce Kilmer, se te conhecesse, acrescentaria a seu poema: – Creio que nunca verei um poema tão lindo como uma árvore habitada por um sauim-de coleira.

Ah, diz pra Ângela que mando para ela um beijo apaixonado. Das tuas irmãs é a que mais se parece com minha quase-sogra.

P.S. – Quem tem sobrinho, não morre pagão. Agradeço as ilustrações de Amaro Junior e Marcelo Cabral Freire.

VER TAMBÉM:

1. Avisa que estão matando o mindu (2010) – https://www.taquiprati.com.br/cronica/858-avisa-que-estao-matando-o-mindu

2. Resiste, João (2007)   https://www.taquiprati.com.br/cronica/113-resiste-joao

 

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