As jornadas de rebeldia progressista ocorridas no ano de 2013 colocaram o Brasil numa encruzilhada histórica decisiva. Confrontaram, de um lado, a trajetória econômica da estabilização capitalista administrada pela integração neoliberal na globalização em 1990 como um país primário-exportador associado ao poder do rentismo de altos juros e, de outro lado, a orientação política pactuada na Constituição de 1988 pela viabilidade do desenvolvimento nacional.
Isso porque a longeva estagnação secular na qual a economia brasileira se encontra em marcha desde o final dos anos 1980, salvo períodos excepcionais, produziu a insuportável ruína da sociedade urbano-industrial, cujos sinais de regressão socioeconômica parecem inegáveis.
Com isso, o descontentamento social se tornou crescente e explosivo, não fossem as providenciais medidas de emergência governamentais, operando como se fossem uma espécie de compra do tempo a postergar os riscos crescentes da catástrofe e desintegração nacional. Desde então, ocorrem de tempos em tempos surtos de rebeldia e motins, como os determinados por setores específicos associados ao sistema prisional, polícias militares, estudantes, trabalhadores, entre outros.
Mas os eventos de natureza política que apresentam caráter geral no interior da sociedade foram mais significativos a partir da década de 2010. Tomando como referência o cenário de insatisfações que produziram a explosão de manifestações no ano de 2013, percebe-se o salto inicial das greves de trabalhadores que foram multiplicadas por quase cinco vezes entre 2010 (446) e 2013 (2.050), segundo o Dieese.
Da mesma forma, ocorriam as tensões e disputas por terras indígenas, as desocupações em solos urbanos, a carestia nos transportes públicos; enfim, uma série de demandas que apontavam para a piora das condições gerais de vida e trabalho. Paralelamente, as denúncias de custos dilatados impostos pela padronização de equipamentos esportivos às arenas futebolísticas da Copa do Mundo de 2014, que se contrapunham ao discurso oficial de austeridade fiscal por superávit primário e às demandas coletivas por melhora nos transportes coletivos, educação e saúde públicas, trabalho e renda, e outros a serem comparados ao “modelo Fifa” fundado na realidade de países do norte global.
O choque produzido por horizontes de expectativas distintas terminou por revelar o problema da legitimação e dominação na segunda década do século 21, o que levou à inflexão substancial do ciclo político da Nova República (1985-2014). A contradição crescente entre as vítimas e os beneficiários do processo de modernização consumista neoliberal gerada pela forma rebaixada e subordinada de adesão do Brasil na globalização havia produzido um antagonismo político de complexa solução pacífica.
Por um lado, porque a modernização no padrão de consumo posta em marcha com a estabilização monetária alcançada pelo Plano Real, em 1994, alcançou o limite destrutivo dos postos de trabalho da classe média assalariada e o endividamento das famílias de menor renda. Além disso, a viabilidade da estabilização monetária dependia de juros reais elevados, necessários para internalizar capitais externos, em geral especulativos, e permitir a valorização cambial (doença holandesa) fundamental à inundação de bens importados no mercado interno a preços inferiores.
De outro lado e, por consequência, ocorreu a artificial elevação na taxa de juros promovida pelo Banco Central que, ao onerar as finanças públicas, promoveu o déficit público a ser financiado pelo maior endividamento do Estado e/ou austeridade fiscal, a elevação da maior carga fiscal, a privatização e o teto de limite aos gastos públicos não financeiros. Ao mesmo tempo, o patamar da taxa de juros reais passou a inibir os investimentos produtivos internos, alimentando o rentismo e a “maquiagem” da montagem e empacotamento de insumos e componentes importados, travestidos de bens finais comercializados no mercado interno.
O resultado era o cortejo do sepultamento da industrialização nacional, com a crescente dependência externa, sobretudo de ingresso das divisas internacionais de caráter especulativo, bem como o alastramento do modelo econômico primário-exportador. Com isso, o emprego possível da mão de obra se assentou sobre a dimensão produtiva nos pequenos negócios e pejotização, cuja contida produtividade tornou dependente da flexibilização social e trabalhista, capaz de evitar o esmagamento da taxa de lucro empresarial.
Não só as ocupações de nível intermediário foram sendo cada vez mais asfixiadas, como o emprego de classe média assalariada encolheu, não compensado pelo avanço da pejotização da classe média proprietária. O estreitamento do horizonte das melhores ocupações próprias da sociedade urbana e industrial ficou para trás, acrescido da intensa competição instalada no interior do mundo do trabalho frente à ampliação da oferta de mão de obra qualificada exposta à inflação das certificações no ensino superior e de pós-graduação.
Neste contexto nacional de insatisfações generalizadas ocorridas há dez anos, o aparato de dominação política perdeu legitimidade, passando por significativa racionalização, própria da reação de sobrevivência e de autodefesa da ordem, com o fechamento do sistema de representação popular. Assim, o impulso rebelde e democratizante das jornadas de junho de 2013 foi sendo submetido ao requisito autoritário e asfixiante que o neoconservadorismo de extrema direita soube muito bem canalizar.
Para tanto, houve a urgente e necessária contenção do poder executivo federal às demandas populares. Movido pela inovação de uma espécie de parlamentarismo sem partidos, o poder legislativo inchou e se debruçou sobre o governo central. Em sequência, ocorreu a convergência das ações de intermediação do exercício da “função de poder moderador” da República em disputas entre as cúpulas do judiciário e das forças armadas. Como expressão disso, três ações basilares terminaram por rapidamente impor o novo patamar da dominação política que resultou no esvaziamento dos progressistas na cena política nacional.
A primeira delas ocorreu no âmbito das emendas parlamentares, seguida da ampliação dos fundos públicos a irrigar substancialmente determinados partidos e as disputas eleitorais e, por fim, da cláusula de barreira partidária introduzida desde as eleições de 2018. O resultado disso tem sido o esvaziamento da militância partidária, acompanhado da queda dos filiados. Entre os anos de 2018 e 2023, por exemplo, o conjunto dos partidos oficialmente legalizados no Brasil perdeu um milhão de filiados, o que equivaleu ao declínio na taxa de filiação de 11,4% para 10,1% no total dos eleitores do país.
A compensação veio pelo fundo público no financiamento da campanha eleitoral de 2022, multiplicada por 2,9 vezes em relação ao valor do ano de 2018, bem como o aumento de 33% no recurso público direcionado ao fundo partidário. No mesmo sentido, o valor do orçamento público executado por emendas parlamentares pagas foi multiplicado em quase 12 vezes, saltando de R$ 2,3 bilhões, em 2017, para 27,5 bilhões, em 2022 (Luciana Timm, Alocação do gasto público via Poder Legislativo: a visão do TCU sobre as emendas parlamentares, 2023). Para o ano de 2023, o total do recurso orçamentário autorizado para emendas parlamentares atinge R$ 36,5 bilhões.
–
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Dez anos de impacto da ‘revolução colorida’ derivada de junho de 2013“, de Ricardo Dathein.