Ciclo de reuniões finda sem definição de compensações da pesca. Fase 4 das obras terá pico de 4,2 mil trabalhadores
Por Fernanda Couzemenco, Século Diário
O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) finalizou o ciclo de doze reuniões públicas sobre a chamada Fase 1 de instalação do Porto Central sem apresentar o valor e as medidas de compensação socioeconômica e ambiental para a pesca. A constatação foi exposta por pescadores e ambientalistas que participaram dos encontros, especialmente do último, realizado nesta quinta-feira (20) em Presidente Kennedy, município onde o empreendimento irá construir sua megaestrutura, na foz do Rio Itabapoana, na divisa com o Rio de Janeiro.
“Os investidores do Porto Central já sabem quanto vão ganhar. Mas os pescadores daqui não sabem quanto vão perder. Por que não se faz essa conta para o pescador?”, questionou o professor e vice-coordenador da ONG Reflorestamento e Ecodesenvolvimento do Itabapoana (Redi), Carlos Freitas.
“Sou contra dar a licença enquanto os pescadores não souberem o que eles vão efetivamente levar de prejuízo. Não pode ser dessa forma. As pessoas que estão aqui sofrem, vocês enchem o bolso e o prejuízo e o passivo ficam para nós. Aí é fácil instalar e ganhar dinheiro. Ibama, ouça as pessoas, vocês estão ouvindo só os empreendedores. O rapaz da empresa veio falar da pesca, mas não falou de uma forma completa e em linguagem que o pescador entende”, protestou o ambientalista, ao final da reunião, quando os microfones foram abertos para a população, com o espaço já esvaziado pelo avançar das horas e excessivas explicações muito técnicas e pouco palatáveis para as pessoas simples que estão no alvo dos enormes impactos do megaempreendimento.
“Um dos empreendedores que vai atuar junto com o Porto Central é a Vale. É um perigo muito grande para nós”, alertou, com base na informação da própria Licença de Instalação (LI), de que serão dragados, para a construção do quebra-mar e primeiras estruturas dos terminais, 64 milhões de metros cúbicos de sedimentos, o que equivale a cerca de uma vez e meia o volume vazado da barragem da Samarco/Vale-BHP em 2015, o maior crime socioambiental do país.
“O quintal é de quem? Invadiram a área de vocês e vocês ainda não sabem quanto vão ganhar ou perder?”, reforçou, dirigindo-se diretamente aos pescadores ainda presentes no espaço, e fazendo coro às palavras do presidente da Federação de Colônias e Associações de Pescadores do Espírito Santo (Fecopes), Carlos Belonia. “Esses Fóruns não estão adiantando”, lamentou.
Também presidente da Colônia de Pescadores Z-14, em Presidente Kennedy, que engloba uma comunidade pesqueira marinha e quatro ribeirinhas, Belonia elencou vários questionamentos feitos aos representantes do Porto Central e ao Ibama que ainda não foram respondidos, a despeito do cronograma já prever início das obras ainda este ano.
“O que o porto quer é fazer um plano de compensação pesqueira. Mas não existe um valor definido para isso”, ponderou o presidente da Fecopes em entrevista a Século Diário. “Questionamos ao Ibama que o pescador ribeirinho não foi citado nem na licença prévia nem na de instalação. A colônia cobrou que as comunidades pesqueiras ribeirinhas de Presidente Kennedy sejam reconhecidas conforme as marítimas foram. Deixaram uma falha no estudo de viabilidade de campo, onde diz quem vai ser impactado, as ribeirinhas não estão lá”, pontuou.
Sobre a navegação dos navios de grande porte que serão atraídos para o Porto, Belonia também continua sem respostas, pois, do que pôde apreender das exposições até o momento, “não tem nenhum planejamento sobre isso”. Na área de manobra dos navios, pontua, “vai ser proibido, já sabemos”. Outro ponto obscuro é o descarte da dragagem: “não foi explicado para a gente o impacto para a pesca. O saldo da audiência, afirma, foi ruim. “Saímos frustrados. Ficamos até meia-noite na reunião, sem as respostas que precisamos. Mas o Ibama abriu a possibilidade de mais diálogos. Precisamos de mais transparência”, afirmou.
Impactos
Assistindo a um vídeo caseiro com a fala do técnico a que Carlos Freitas se refere, a explanação dele sobre “qual o impacto do porto central sobre a pesca dessas comunidades” elenca quatro pontos: a dragagem, o canal de navegação, o bota-fora e as áreas de fundeio.
“Com a dragagem do canal, vai ter diariamente um navio carregando com lama e descarregando na área de bota-fora. Vai ter restrição de navegação temporária”, expõe, sobre o primeiro ponto. “Quando a dragagem estiver pronta, o porto vai ter o canal e as boias. Na área posterior às boias, onde vai ser o canal de navegação do porto, vai ser proibida a pesca. São 26 km de distância e uma pequena largura, onde vai ser proibida a pesca. Pode navegar, mas é proibida a pesca”, prossegue. “Na área de bota-fora também vai ser perdida a pesca”, acrescenta.
“Durante a operação, é basicamente a restrição à navegação que vai acontecer. E periodicamente, quando tiver que fazer a dragagem de manutenção, na área onde vai ser lançado o material dragado, vai ser temporariamente proibida a pesca. E nas aras de fundeio, onde os navios ficam esperando para atracar, nessas áreas também tem restrição à pesca; pode navegar, mas não pode pescar”, conclui o técnico, cuja identificação não foi incluída no vídeo enviado à reportagem.
As fases
Um outro vídeo caseiro enviado ao jornal refere-se a uma das reuniões realizadas dias antes, com a presença de pescadores de Itaipava, importante comunidade pesqueira no município de Itapemirim. Nela, o gerente de projetos do Porto Central, engenheiro Fábio Cretton de Souza, apresenta as cinco fases em que foi dividido o licenciamento e afirma que o empreendimento “assumiu”, junto ao Ibama, a “premissa” de conseguir no início de setembro a autorização para iniciar os trabalhos em terra e, no final do mesmo mês, os trabalhos no mar.
Com isso, prossegue, em outubro será feita a supressão de vegetação, logo após o “resgate prévio de fauna”, ação que durará dois meses. “Depois começa a terraplanagem e a montagem do canteiro de obras terrestres para edificações para fase de operação da fase 1”. Em mar, a previsão é de iniciar entre dezembro e janeiro a dragagem e a construção do “tombolo de areia”, seguida da construção da parte rochosa do Quebra-mar sul e, por último, o jetty do píer. A previsão é de concluir essa fase em outubro de 2025.
Fábio Cretton de Souza disse que a Licença Prévia do masterplan do Porto, ou seja, o projeto inteiro, foi obtida em 2014, e, em 2018, a Licença de Instalação. Esta última, porém, foi revogada e substituída pela emitida em maio, com o número 1436/2023, referente apenas à Fase 1.
Devido às alterações do cenário econômico mundial, em decorrência da Covid-19 e outras crises, explicou, os investidores decidiram alterar também o projeto de instalação, sendo então reapresentado ao Ibama um novo planejamento, com divisão do licenciamento em cinco e não nas em três fases previstas inicialmente. “Continuamos com a licença prévia do masterplan e recebemos a licença de instalação da fase 1 em maio. A cada fase, vai submeter um pedido de licença de instalação para o Ibama”.
Na fase 1, descreveu, serão construídas as estruturas para transferência de óleo entre navios (ship to ship), para o terminal de líquidos e para o Centro de Defesa Ambiental (CDA). A previsão é de atingir um pico de 1,3 mil trabalhadores durante essa fase das obras.
Na fase 2 será construído o terminal de gás, com previsão de conclusão em 2027 e pico de 450 trabalhadores nas obras.
A fase 3 prevê a construção de um terminal de minério de ferro, um de grãos e um segundo de líquidos. Para que ela seja viabilizada, é preciso garantir a implementação de um projeto externo, que é a construção de duas ferrovias, uma ligando o terminal de Cariacica, na Grande Vitória, a Ubu, em Anchieta, e, outra, ligando este até o Porto Central.
O coordenador de projetos do Porto Central informou que uma das ferrovias está tratada em um acordo entre o governo do Estado e a Vale, onde a mineradora se comprometeu a doar o projeto básico de engenharia entre Anchieta e o Rio de Janeiro. “Precisa da ferrovia até 2029. Se não fizer o trecho até Ubu, não adianta o trecho de cá, porque o minério vem de Minas Gerais”, pontuou.
Ainda sobre a fase 3, ele informou que o tombolo de areia feito na fase 1 será retirado e, em seu lugar, será construído um quebra-mar norte. “O solo nos primeiros 600 metros é muito mole e tem um custo maior para o estaqueamento e a parte rochosa do quebra-mar. O engordamento [tombolo de areia] faz-se em três meses, o que reduz o custo e viabiliza as fases 1 e 2. Na fase 3 o tômbulo de areia sai, e recompõe o quebra-mar sul parte rochosa e constrói o quebra-mar norte”, resumiu.
A previsão é de entrar em operação em 2029 com as estruturas da fase 3, havendo um pico de 2,6 mil trabalhadores. E é somente nessa fase, a princípio, que se prevê chamar os pescadores ribeirinhos para negociar as condicionantes socioeconômicas relativas aos impactos que sofrerão em seu território tradicional de pesca artesanal.
A fase 4 prevê construir: um terminal de cargas geral; um terminal de contêineres; um segundo terminal de minério de ferro; um segundo terminal de grãos; uma base de apoio offshore para atender demandas de plataformas de petróleo, como construção naval; e um terminal de carvão e combustível. A previsão é de entrar em operação em 2035, com pico de 4,2 mil trabalhadores nas obras.
A fase 5 completaria o masterplan, com a construção de um estaleiro, um terminal de fertilizantes, um segundo terminal de carga geral, e uma área industrial e de armazenagem, com previsão de operação em 2040 e pico de 3,6 mil trabalhadores nas obras.
Novo boom do petróleo
O engenheiro ressaltou também algumas peculiaridades do projeto, como o fato de ter um calado de 24 a 25 metros de profundidade, bem maior do que os 16m do Porto de Vitória, onde “os maiores navios do mundo não conseguem entrar”, e de oferecer “mais de 19 tipologias de serviço nesse condomínio portuário”.
Sobre o mercado petroleiro, salientou que, segundo o plano de negócios da Petrobras, “a partir de 2025, o Brasil vai ter uma crescente relacionada à produção de petróleo” e que o Porto Central visa atender à demanda de transferência de óleo, que hoje só acontece em três portos do Atlântico Sul: Porto do Açu, em São João da Barra, no norte do Rio de Janeiro; Porto de Santos, em São Paulo; e “um porto no Uruguai”.
“Então a fase 1 do Porto Central se tornou uma necessidade para o país, porque se não tiver mais portos para atender à transferência de óleo abrigado [ship to ship], ela vai acontecer em mar aberto, que é um risco muito maior”, salientou.
O Masterplan é projetado sobre uma área de 2 mil hectares, com 70 berços. A Área de Influência Direta (AID) abrange os municípios capixabas de Presidente Kennedy e Marataízes e a comunidade de Barra de São Francisco no município fluminense de São Francisco de Itabapoana. A Área de Influência Indireta (AII) envolve Cachoeiro de Itapemirim e Itapemirim, no Espírito Santo, e Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro.
Para concluir toda essa megaestrutura, “precisa de apoio de governos, federal, estaduais e municipais e da população”, rogou Fábio Cretton de Souza. Apoio que, conforme afirma a comunicação institucional do empreendimento, já vem acontecendo, pelo menos por parte dos governos. “Desde 2012, o Estado do Espírito Santo, a Prefeitura de Presidente Kennedy e o Porto Central vem renovando os compromissos assumidos no Memorando de Acordo (MdA) com o objetivo de definir as ações de cooperação para viabilizar a implantação do Porto Central”.
Formas de contestação
Já os Fóruns de Participação Social (FPS), que também integram a chamada “governança social” do empreendimento, conforme se pode perceber a partir dos relatos dos pescadores e ambientalistas, não estão atendendo às necessidades de informações, transparência e compensações socioeconômicas e ambientais das populações das comunidades impactadas, especialmente em relação à cadeia produtiva da pesca e à saúde e segurança das mulheres e meninas. Os apelos foram feitos em viva voz, resta saber se serão incluídos pelo Ibama no processo de licenciamento ou se precisarão ser protocolados formalmente para terem algum atendimento prático.
Segundo consta na LI de maio, “O Ibama, mediante decisão motivada, poderá modificar as condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar esta Licença, caso ocorra: a) Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais; b) Omissão ou falsa descrição de informações relevantes, que subsidiaram a expedição da licença; c) Superveniência [algum fato jurídico novo] de graves riscos ambientais e à saúde”.
Questionado sobre as demandas não atendidas, segundo relatos das comunidades, o Ibama respondeu por meio de sua assessoria de imprensa: “Entende-se que, a partir deste momento, as comunidades impactadas poderão entrar em contato e cobrar o empreendedor por meio do canal de ouvidoria ou entrar em contato com o canal de ouvidoria do próprio Ibama para cobrar ou acompanhar o andamento das ações de mitigação ou compensação dos impactos previstos pelas atividades pretendidas na fase 1 do projeto do empreendimento Porto Central”.