“Como pode haver moradias vazias e pessoas sem casa? Essa é uma equação que não fecha”, adverte a pesquisadora
Por: Patricia Fachin, em IHU
A expansão do capital nas cidades brasileiras está acelerando os processos de urbanização e segregação e tem como consequência a reprodução das desigualdades nos territórios, diz Vanessa Marx, uma das organizadoras do livro “Reforma urbana e direito à cidade. Porto Alegre”, publicação do Observatório das Metrópoles, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Em Porto Alegre, por exemplo, as desigualdades sociais persistem e percebemos um outro fenômeno: as pessoas estão vivendo cada vez mais em condomínios, enquanto outras comunidades seguem sem moradias adequadas, sem saneamento básico”, informa.
Segundo ela, os primeiros dados do censo demográfico de 2022, divulgados pelo IBGE em 28-06-2023, ainda estão sendo analisados, mas indicam “um decréscimo da população e um aumento dos domicílios” em Porto Alegre. “Esse aspecto ainda está em análise porque estamos aguardando os próximos dados, mas a configuração das metrópoles brasileiras é diversa. Algumas populações estão decrescendo e, portanto, a relação entre população e domicílio deve ser analisada com maior profundidade. Uma questão que surge é para quem são esses domicílios. Frequentemente, a expansão do capital nas metrópoles não está atrelada à moradia adequada, mas à especulação imobiliária; enquanto uma pessoa tem três casas, outra não tem nenhuma. Essa mesma disparidade é vista, de um lado, no aumento dos condomínios fechados e, de outro lado, no crescente número de pessoas em situação de rua”, pondera.
Diante da construção acelerada nas cidades, do número de pessoas em situação de rua e da falta de moradia adequada, salienta, “a questão é: para quem são destinados estes imóveis? Quem vai comprar ou alugar estes imóveis? Essas são perguntas que fazemos porque estamos vendo uma construção acelerada nas cidades”.
Vanessa Marx é doutora em Ciência Política e Administração pela Universidad Autonoma de Barcelona, mestre em Integração Latino-Americana pela Universidad Nacional de La Plata. Ela leciona no Programa de Pós-graduação em Sociologia e no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Sociologia Urbana e Internacionalização das Cidades – GPSUIC, membro do Conselho Deliberativo do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo – CEGOV da UFRGS e coordenadora do Observatório das Metrópoles, núcleo Porto Alegre.
Confira a entrevista.
IHU – Qual é o retrato das metrópoles brasileiras hoje, pós-pandemia?
Vanessa Marx – As cidades brasileiras seguem reproduzindo as desigualdades sociais nos territórios. Sendo um dos países mais desiguais do mundo, o Brasil reflete essa situação nos territórios e na questão urbana. Por isso, o direito à cidade reivindica o direito à vida urbana, que significa ter acesso à moradia adequada e às condições básicas de saneamento. Quando essas necessidades não são atendidas, elas geram grandes desigualdades sociais nas metrópoles.
As metrópoles têm uma complexidade diferenciada entre elas. Estamos começando a analisar os dados do censo e percebemos que cidades como São Paulo têm um grau de complexidade maior do que outras metrópoles. Em Porto Alegre, por exemplo, as desigualdades sociais persistem e podemos perceber um outro fenômeno: as pessoas estão vivendo cada vez mais em condomínios, enquanto outras comunidades seguem sem moradias adequadas, sem saneamento básico.
As cidades médias, por sua vez, não têm a complexidade de uma metrópole, mas, em geral, estamos assistindo à expansão do capital nas cidades brasileiras, que vêm acelerando cada vez mais os processos de urbanização e de segregação. Assistimos à desigualdade social como um dos maiores problemas do Brasil e como isso é visível nas cidades brasileiras.
IHU – Entre os dados do censo, o que tem chamado a atenção em relação às metrópoles?
Vanessa Marx – Ainda estamos analisando os dados do censo, mas observamos, em Porto Alegre, um decréscimo da população e um aumento dos domicílios. Esse aspecto ainda está em análise porque estamos aguardando os próximos dados, mas a configuração das metrópoles brasileiras é diversa. Algumas populações estão decrescendo e, portanto, a relação entre população e domicílio deve ser analisada com maior profundidade. Uma questão que surge é para quem são esses domicílios. Frequentemente, a expansão do capital nas metrópoles não está atrelada à moradia adequada, mas à especulação imobiliária; enquanto uma pessoa tem três casas, outra não tem nenhuma. Essa mesma disparidade é vista, de um lado, no aumento dos condomínios fechados e, de outro lado, no crescente número de pessoas em situação de rua.
IHU – A senhora declarou recentemente que “Porto Alegre é uma cidade que está sendo completamente fragmentada em planos especiais”. Em que consiste a fragmentação da cidade, como ela está ocorrendo e pode ser observada?
Vanessa Marx – Desde a revisão do Plano Diretor, em 2010, estão sendo desenvolvidos diversos projetos especiais, com exceção do plano, que vêm sendo implementados de forma acelerada na cidade. Nos últimos dois anos, assistimos à fragmentação da cidade em projetos nas diversas regiões. No livro “Reforma urbana e direito à cidade”, analisamos este tema detalhadamente em relação aos projetos para o Centro Histórico e o 4º Distrito [bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Humaitá, Farrapos]. Esses projetos estão sendo desenvolvidos em paralelo ao processo de gestão do Plano Diretor. Ou seja, está havendo um processo de revisão do Plano Diretor com alterações importantes no território, com planos específicos de negócios, de transformação e adensamento para a região.
No Plano Diretor, que é um instrumento de gestão urbana, conseguimos visualizar a totalidade da cidade, todas as regiões de gestão e planejamento. Para ter uma revisão democraticamente equilibrada, fazer uma leitura da cidade de forma total, buscando reduzir as desigualdades sociais, deveríamos ver a cidade de forma equilibrada. Ou seja, ver a sua totalidade. O que temos percebido é que a cidade está se fragmentando por planos para regiões específicas e, muitas vezes, essa fragmentação não conversa com o Plano Diretor, que é o instrumento por excelência para visualizar a cidade como um todo.
IHU – Em Porto Alegre, quais são os grandes projetos em curso e como, a partir deles, a cidade está sendo reestruturada?
Vanessa Marx – Por exemplo, o Programa +4D, no 4º Distrito, é um plano específico para aquela região, assim como há um plano para o Centro Histórico. Também foram feitas alterações na Orla do Guaíba e no Cais Mauá. São pontos específicos com projetos específicos para essas áreas, mas o Plano Diretor não menciona estes projetos. O 4º Distrito está na gestão de planejamento dois, assim como as ilhas. Isso tudo deveria ser conversado a partir do Plano Diretor, através do qual se consegue visualizar a região. A partir disso poderiam decidir qual é a vocação de cada região e quais temas poderiam ser priorizados. Mas não conseguimos visualizar a totalidade porque tudo está fragmentado.
IHU – Quais são as vantagens e as desvantagens da privatização de determinadas áreas da cidade que preservam espaços públicos e que podem ser utilizados pela população, como no caso do Pontal do Estaleiro?
Vanessa Marx – No caso do acesso à Orla e ao Pontal do Estaleiro, o problema é quando um espaço privado, que tem uma função privada e, ao mesmo tempo, uma função pública, é fechado para algum evento e se torna privado. O que temos que garantir na cidade de Porto Alegre são os acessos a espaços públicos, priorizando as pessoas frente às grandes construções. Quando as pessoas vão a esses espaços privados, elas vão consumir nesses lugares, mas é difícil estes espaços serem socialmente inclusivos porque vão dando outra cara para a cidade. Há pessoas que não se sentem confortáveis para irem a estes espaços e isso vai gerando uma exclusão social de alguma forma. Em Porto Alegre, há uma demanda por bairros privativos, inclusive nessa região, que está passando por transformações, com a construção do Pontal Shopping. Ali já existe o Barra Shopping e bairros privativos, fechados, que são mais do que condomínios porque as áreas são muito maiores.
IHU – Como vê a adesão de uma parcela da população a este modelo de gentrificação ou de projetos nas cidades? Em quais estratos sociais estes modelos são reproduzidos? Como a população tem reagido?
Vanessa Marx – É difícil falar, porque teríamos que ter dados sobre locais específicos. Mas, em geral, o que precisamos verificar é quem está adquirindo estes imóveis. Uma hipótese é que estes imóveis estão sendo adquiridos por pessoas que não moram em Porto Alegre. Se é assim, eles poderiam ser destinados para aluguel ou para aluguel de temporada. Não sabemos. Algumas cidades do mundo, como Paris e Barcelona, criaram políticas para frear o aluguel especulativo por temporada porque as pessoas não tinham onde viver. Claro que Porto Alegre não é uma cidade tão turística como essas, mas o crescimento de construções de imóveis para aluguel de temporada freia a capacidade das pessoas de poderem adquirir um imóvel a longo prazo. Então são políticas locais que as próprias prefeituras criaram para frear este tipo de iniciativa. A questão é: para quem são destinados estes imóveis? Quem vai comprar ou alugar estes imóveis? Essas são perguntas que fazemos porque estamos vendo uma construção acelerada nas cidades.
IHU – Hoje, quais são as regiões mais periféricas de Porto Alegre e em que aspectos precisam ser revitalizadas?
Vanessa Marx – Em algumas regiões falta acesso ao transporte público. Nos bairros Restinga, Bom Jesus, Mario Quintana e mesmo no 4º Distrito, região que pesquiso mais, uma parcela da população vive de forma precária e reivindica melhorias, como na Vila Santa Terezinha. Precisamos olhar para essa população porque o território é diverso. Os dados mostram que a renda é maior na Região 1 de Gestão e Planejamento, na região Centro. Mas tem regiões com diversidade enorme de renda na mesma região. Ou seja, bairros com renda alta e média alta, como o Chácara das Pedras e o Três Figueiras. Mas na mesma região tem pessoas com renda menor. Por isso, é importante o Plano Diretor, para olharmos para a diversidade que existe em uma mesma região. No momento em que estamos fragmentando a cidade por projetos, estamos pensando no Centro como Centro, mas há uma diversidade de pessoas aí. O Centro e o bairro Floresta são os lugares que mais têm população de rua hoje. Como tratamos isso? Temos que olhar para essa diversidade que acontece na cidade e não podemos homogeneizar as soluções.
IHU – Na pandemia, aumentou o número de pessoas e famílias morando nas ruas. Como está essa realidade em Porto Alegre hoje?
Vanessa Marx – A população em situação de rua tem sido muito afetada desde o início da pandemia, que trouxe à tona a questão da pobreza e da desigualdade, que aumentaram. A moradia social é um tema muito importante e deveria ser tratado com mais atenção, principalmente para essa população. No livro, tratamos da questão sobre desemprego e pobreza, sobre a redução da renda média nos estratos mais baixos e sobre o aumento da população de rua por causa da vulnerabilidade econômica. Isso tem relação com outro tema, que é a questão do despejo.
A pandemia destacou o fato de que muitas pessoas não têm uma casa para morar. Não têm também acesso à higiene, à água, e várias foram despejadas. Nesse sentido, a campanha Despejo Zero foi fundamental em relação à questão humana, dos direitos humanos, além da questão da moradia, por ter trabalhado para tentar frear o despejo. Essa iniciativa conseguiu sensibilizar o poder judiciário a respeito da importância de as pessoas terem moradia. Ao terem moradia, reduz-se a população em situação de rua. Com o despejo, aumenta o número de pessoas em situação de rua.
IHU – A que atribui a morosidade no tratamento da questão habitacional, seja da moradia social, seja do acesso à moradia no país?
Vanessa Marx – Tivemos quatro anos de retrocesso das políticas públicas em relação a isso. Para enfrentar esta questão, primeiramente precisa haver investimentos, ou seja, tem que ter políticas públicas que priorizem essa pauta. Faltam programas de investimento para moradia e habitação de interesse social. Também é importante reduzir a violência nas cidades, que é outro problema das metrópoles. Enfrentar isso depende de políticas públicas. Seria importante ter uma articulação federativa de enfrentamento dessas questões. Hoje, a política local vai para um lado, enquanto a política estadual vai para outro, e a política nacional para um outro ainda.
IHU – Quais as lutas urbanas que ocorrem em Porto Alegre hoje, pós-pandemia? Embora existam tais movimentos locais, essa não é uma pauta que gera pouca sensibilidade na sociedade?
Vanessa Marx – As lutas urbanas são uma constante em Porto Alegre. Nos últimos quatro anos, a campanha Despejo Zero articulou, de alguma forma, diversos movimentos sociais e coletivos que tentavam discutir os projetos que vão sendo aprovados. Os projetos do 4º Distrito tiveram resistência no fórum do 4º Distrito. Isso quer dizer que os próprios moradores locais e os movimentos sociais tentaram discutir estes projetos. O Cais Mauá também foi discutido por movimentos sociais, culturais, assim como o destino dos armazéns e a necessidade daquele espaço ser público.
Em cada lugar desses onde há uma expansão do capital para a especulação das áreas, vemos movimentos de resistência que tentam propor projetos alternativos, como o Cais Mauá e o fórum do 4º Distrito, que sensibilizam sobre a importância de populações vulneráveis nos territórios. O Coletivo Atua Poa também reúne diversos movimentos que sempre buscaram reivindicar a participação social na revisão dos planos diretores.
Recentemente, estamos assistindo à concessão dos parques e praças de Porto Alegre, como o Parque da Redenção e o Parque Harmonia. Estamos na contramão da preservação. Ao mesmo tempo que essas reestruturações estão acontecendo em Porto Alegre, também existem coletivos que tentam resistir e sensibilizar a comunidade e a população. Não podemos deixar que a cidade se torne totalmente privatizada. Precisamos ter uma cidade em que as pessoas possam circular livremente. Porto Alegre não pode ser a cidade do consumo, onde as pessoas só entram em lugares privados. Essa é uma discussão importante a ser feita.
IHU – Quais são os desafios de transformar as metrópoles brasileiras em cidades mais justas e sustentáveis, de modo que todos tenham acesso à cidade?
Vanessa Marx – São muitos. Um deles é trabalhar a moradia social e olhar para as áreas de interesse social da cidade. Precisamos verificar que espaços são estes. Por exemplo, no Uruguai foram feitas experiências de cooperativas de moradia e de autoconstrução. Apoiar esse tipo de iniciativa é importante. Por sermos um país muito desigual, os movimentos sociais bem muito expressivos e são eles que vêm nos mostrando os caminhos de superação das desigualdades pronunciadas no Brasil, como a questão da moradia em áreas centrais. Existem moradias vazias em áreas centrais. São os movimentos sociais que chamam a atenção para a função social da propriedade que está prevista pelo Estatuto da Cidade. Como pode haver moradias vazias e pessoas sem casa? Essa é uma equação que não fecha. É uma questão muito complexa, mas precisamos olhar, primeiro, para a moradia e o saneamento básico.
Ter um sistema de saúde como o SUS, que garante o acesso à saúde, também é importante. Foi isso que nos ajudou na pandemia. Assim como também ter acesso à educação. Todas essas questões estão vinculadas ao direito à vida urbana. Outra questão que também temos que enfrentar é a ambiental, que está entrando na agenda tardiamente. Tem movimentos sociais que estão reivindicando essa pauta a partir do desenvolvimento de hortas urbanas, da alimentação. Mas também é preciso ter segurança nos espaços de moradia, para as pessoas não viverem em áreas de risco, como assistimos há pouco nas situações das pessoas que foram atingidas pelo ciclone. As pessoas estão muito vulneráveis. Além de sofrerem com a vulnerabilidade social, sofrem nos momentos em que há efeitos climáticos.
Para enfrentar essas questões, é preciso haver política pública e investimento social. É preciso reivindicar essa porção do orçamento. Por isso, a questão do orçamento é central para saber o que está sendo investido. Precisamos de investimento público porque não é o investimento privado que vai alterar a situação. É o Estado quem tem uma função importante na redução das desigualdades. Outra coisa que precisamos considerar são os dados produzidos a partir de gênero e raça. Na pandemia, assistimos à situação de mulheres que trabalham três turnos. Precisamos olhar esses dados para reduzir as desigualdades dessas populações mais vulneráveis.
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Imagem aérea do Guarujá. Foto: Johnny Miller