Uma armadilha para Nísia Trindade

Ministra inaugura hoje, no Piauí, maior maternidade pública do país. Mas há uma nódoa no ato. Ele marca a transferência dos hospitais do estado para OSs, feita à revelia do Conselho de Saúde, com precarização do trabalho e em nome de políticas neoliberais

por Gabriela Leite, em Outra Saúde

Um dos elementos mais importantes da infiltração do setor privado no SUS são as Organizações Sociais (OSs). Estas entidades, que fazem a gestão de unidades de saúde, têm forte presença em especial nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas seu modelo se espalha – muito embora sejam intensamente questionadas por sanitaristas e movimentos de saúde, inclusive por promoverem precarização dos trabalhadores. Um estado onde estão começando a se proliferar, a despeito da posição do Conselho Estadual de Saúde (CES-PI) é o Piauí. A inauguração da nova Maternidade Dona Evangelina Rosa, em sua capital Teresina, que acontece hoje, 28/7, é emblemática como marca desse processo.

Está sendo considerada a maior maternidade pública do Brasil, com 293 leitos, e será a única referência de alta complexidade no estado. Sua inauguração, que colocará em uso o equipamento que recebeu maior investimento do governo do Piauí em 50 anos, contará com a presença da ministra da Saúde, Nísia Trindade, e do ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias. A ida de Nísia é vista com decepção por movimentos de saúde do Piauí. Eles  enxergam o importante papel da ministra, como defensora de um SUS público e com participação popular ativa, como ficou marcado na 17ª Conferência Nacional de Saúde, no início do mês de julho, em Brasília. Mas avaliam que todo o processo de entrega da maternidade para a gestão da OS Reabilitar foi concluído sem qualquer consulta ou explicação ao Conselho Estadual de Saúde, uma surpresa para seus integrantes.

“Quando soubemos, o processo já estava andando”, denunciou Emidio Matos, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e primeiro secretário do Conselho Estadual de Saúde. O fato aconteceu em meados de 2022, ainda no governo do petista e hoje ministro Wellington Dias. “Ao tomarmos conhecimento, fizemos uma ampla discussão, com a presença do Ministério Público, dos conselhos de classe. Todos se posicionaram contrários à medida, e o Conselho aprovou uma resolução por meio de um ato normativo”, explicou. Foram ignorados pelo governo do estado – o que fez com que o Conselho acionasse o Ministério Público e judicializasse o processo.

Com a chegada do novo governo estadual – de Rafael Fonteles, que deu continuidade à gestão de Dias –, pouca coisa mudou. “Em março, o Conselho Estadual de Saúde recebeu, da Secretaria Estadual de Saúde, pauta para uma reunião ordinária em que apresentaria a ‘intenção de transferir a gerência dos Hospitais Públicos’ do Piauí para OSs”, contou Flávio Furtado Farias, presidente do Conselho Municipal de Parnaíba e professor da Universidade Federal do Delta do Parnaíba. Segundo ele, o tema não havia sido mencionado em nenhum momento, nem durante a campanha eleitoral de Fonteles e nem com o Conselho.

Rapidamente, diversos movimentos se organizaram e escreveram uma nota de repúdio. Argumentavam que “ao terceirizar a gestão dos hospitais, o Governo do Estado está transferindo a responsabilidade da saúde dos piauienses para entidades privadas, que muitas vezes buscam atender aos seus próprios interesses financeiros em detrimento da qualidade do atendimento à população”. Embora tenha sido assinada até pelo setorial nacional de saúde do Partido dos Trabalhadores, o governador petista não pareceu se comover.

Ester Melo, do Cebes do Piauí, explica que esse processo de privatização envolveu a entrega a OSs de três hospitais importantes do estado: o hospital de Mocambinho, em Teresina, de pequeno porte; o Hospital Estadual Dirceu Arcoverde, com sede em Parnaíba, a segunda maior cidade do estado, que é referência de toda a região de saúde; e o hospital de Campo Maior, próximo à capital. Ela conta que o processo acarretou demissões em massa dos funcionários, que já eram contratados de maneira instável. É notório, em estados como São Paulo, onde há ampla participação de OSs na gestão do SUS, que a precarização dos trabalhadores é uma marca.

Emídio Matos conta que o Piauí já passou por uma experiência fracassada de gestão de um hospital por uma OS na cidade de Picos, na região do semiárido. “Foi um desastre total, tanto que depois o estado retomou a gestão – inclusive com com questões trabalhistas que até hoje estão na justiça”, explicou. O Conselho Estadual de Saúde também argumenta que a literatura científica mostra com quase unanimidade que a gestão por OSs não melhora o acesso e nem o serviço.

Na nota de repúdio, há também uma explicação contundente: “Infelizmente, experiências malsucedidas de gestão hospitalar por Organizações Sociais não são raras. Escândalos de corrupção denunciados na mídia são um exemplo claro dos problemas que podem surgir quando a gestão hospitalar é entregue a entidades privadas. O desvio de recursos, a falta de transparência na gestão e a priorização do lucro em detrimento da qualidade do atendimento podem prejudicar gravemente a saúde da população”.

Por que, então, um governo petista, supostamente comprometido com a defesa do SUS, leva à frente esse processo – e o faz de costas para a sociedade? Emídio ensina que há ao menos uma explicação: a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ela, aliás, foi aprovada em 2000, apenas dois anos depois da lei que regulamentou as Organizações Sociais. Ambas rezam pela mesma cartilha neoliberal que buscava reduzir o tamanho do Estado brasileiro. “No Piauí, há inclusive um termo de conduta para o Ministério Público, para que o estado possa realizar concursos públicos. Mas há mais de dez anos eles não ocorrem na área da saúde. É um meio de contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal: contratar uma OS. Aí você precariza o serviço, precariza os direitos do trabalhador, mas foge da tranca”.

Já a participação da ministra no evento de inauguração é vista com estranheza pelo professor. “Até pela construção histórica da própria Nísia como pesquisadora, como presidente da Fiocruz, ela não compactua com isso. É um fato que existe a independência: o ministério da Saúde não manda nas secretarias estaduais. Mas a sua presença tem uma forte simbologia. Na prática, ela está referendando a atitude em ato público”. Ester Melo acredita que a ministra pode não ter conhecimento dos meandros desse processo – afinal, sua presença terá uma repercussão negativa para os movimentos sociais e para a própria luta em defesa do SUS.

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