Lula não sobe a rampa de Raoni e é duramente cobrado por isso

Cerca de 54 povos de todos os biomas atenderam ao chamado da maior liderança indígena no Brasil, que deu respaldo ao presidente em sua posse em janeiro. Agora, eles querem respostas dos três poderes – e dão um prazo curto para isso

por RAFAEL MORO MARTINS, em Sumaúma

Como um recado direto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, notável ausência no evento convocado pelo Cacique Raoni Metuktire, representantes de 54 povos indígenas que vivem em todos os seis biomas brasileiros divulgaram uma carta nesta sexta-feira, 28 de julho. Vindos de diferentes partes da Amazônia, do Cerrado, da Caatinga, do Pantanal, da Mata Atlântica e do Pampa, elas e eles alcançaram a Aldeia Piaraçu, no estado amazônico do Mato Grosso. Em seu manifesto, exigiram respostas do Estado sobre temas como a demarcação e a desintrusão (expulsão de invasores) de terras indígenas, a anulação de contratos de créditos de carbono que envolvam os povos originários e a recusa à tese do marco temporal. Fixaram um prazo curto para uma resposta: – o próximo 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas.

“O Cacique Raoni já atendeu o seu chamado. E vocês, quando irão atender o nosso?”, diz o parágrafo final da carta. É uma menção a Lula, que convidou Raoni para subir com ele a rampa do Palácio do Planalto na posse de seu terceiro mandato, em janeiro. O cacique Mebêngôkre (povo também conhecido como Kayapó) aceitou o convite e foi a Brasília dar ao petista seu respaldo de maior liderança indígena no Brasil. A ideia de Raoni acompanhar o presidente na posse foi da presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, disse ela em entrevista a SUMAÚMA.

Meses depois, também em Brasília, durante o Acampamento Terra Livre (ATL), o indígena de mais de 90 anos de idade fez seu pedido: a presença de Lula no evento desta semana, que batizou de “Chamado do Cacique Raoni Metuktire – Grande Encontro das Lideranças Guardiãs da Mãe Terra”. Segundo auxiliares diretos de Raoni, Lula deu sua palavra de que iria. Mas faltou, o que não agradou – mesmo que a justificativa possa ser a artrose no quadril.

A ausência de Lula irritou Raoni – e a maioria das lideranças dos diferentes povos indígenas. O encontro, que termina nesta sexta-feira, pode ser marcado pelo anúncio do grande líder político dos Kayapó de quem deverá sucedê-lo à frente de seu povo. Este é um dos motivos pelos quais Raoni queria ver Lula presente.

O chefe do Poder Executivo dos “brancos”, contudo, não é o único alvo da insatisfação das lideranças indígenas: Supremo Tribunal Federal (STF) e Congresso Nacional também foram chamados à ação na carta. “Exigimos do Estado Brasileiro uma posição concreta sobre o Recurso Extraordinário [à Suprema Corte] popularmente chamado Marco Temporal”, escrevem, logo na abertura do documento. “Estamos muito preocupados com a situação territorial não somente dos povos indígenas que habitam a região amazônica, mas também das demais regiões do Brasil e do mundo.”

O marco temporal é citado algumas vezes no documento. As lideranças indígenas dizem “concordar parcialmente” com o ministro Alexandre de Moraes, que, em seu voto na retomada do que os indígenas chamam de “julgamento do século”, em junho passado, afastou a tese segundo a qual os povos indígenas só podem ter demarcadas as terras ocupadas (ou ao menos oficialmente disputadas) em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.

“Mas discordamos do argumento de indenização pela terra nua [aos fazendeiros ou posseiros que ocupam terras indígenas, ponto central do voto de Moraes]. Não consideramos justo compensar pessoas e empresas que são responsáveis pelo assassinato de nossas lideranças e massacre do nosso povo que historicamente lutam pelo nosso território. Nós é que deveríamos ser indenizados pelos anos de violências vividos e por receber uma terra devastada”, escrevem.

A carta ainda pede que “sejam destruídas todas as formas de garimpo, expulsos os invasores e responsabilizados seus financiadores”, e que “as atuais negociações existentes no mercado de carbono devem ser anuladas” até que os povos originários sejam esclarecidos sobre o que é esse mercado e de que forma ele funciona e é – ou será – regulado.

Leia a seguir a íntegra do documento.

Manifesto do Chamado do Cacique Raoni Metuktire “Grande Encontro das Lideranças Guardiãs da Mãe Terra”

Aldeia Piaraçu, 26 de julho de 2023

Assunto: Posicionamento contrário ao marco temporal e a favor da defesa dos direitos dos Povos Indígenas

Nós, lideranças indígenas, representantes de 54 Povos Indígenas dos seis biomas brasileiros, atendendo o Chamado do Cacique Raoni Metuktire, na aldeia Piaraçu Terra Indígena Kapot-Jarina, MT entre os dias 24 a 28 de julho de 2023, exigimos do Estado Brasileiro uma posição concreta sobre o Recurso Extraordinário 10.17365/SC popularmente chamado “Marco Temporal”, estamos muito preocupados com a situação territorial não somente dos povos indígenas que habitam a região amazônica, mas também das demais regiões do Brasil e do mundo.

O marco temporal tem uma interpretação que desconsidera nossa realidade histórica e cultural, além de violar tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração dos Povos Indígenas da ONU, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a consulta livre prévia e informada, além de afirmar a obrigação do governo em reconhecer e proteger os valores e práticas tradicionais, culturais e espirituais próprias dos Povos Indígenas. Ao restringir a demarcação apenas as Terras Indígenas que estavam estabelecidas antes de 5 de outubro de 1988, ignora nossa memória e história por ações de colonizadores, latifundiários e empreendimentos econômicos de deslocamentos forçados, violências, massacres e expulsões vividos em nossos territórios tradicionais o que resultou em perdas irreparáveis para nossas culturas e modo de vida.

Por tempos imemoráveis, nós Povos Indígenas, temos sido guardiões e guardiãs das florestas, dos rios, do ar e dos animais das terras por onde nossos ancestrais caminharam. Essas terras representam não apenas nosso lar, mas também nossa identidade cultural, nossas tradições, ciência que sempre existiram de forma conjunta e equilibrada com a natureza. É fundamental compreender que a posse dessas terras não se trata apenas de um aspecto material, mas de um elemento essencial para a nossa existência.

A aplicação do Marco Temporal teria como consequência a exclusão de milhares de indígenas de nossos territórios tradicionais, comprometendo nossa subsistência, nosso modo de ser e nossa autodeterminação como Povos Indígenas violando nossos direitos já garantidos. Além disso, abriria precedentes para a invasão e exploração de nossas terras por interesses econômicos que afetam não apenas nós, mas que de acordo com pesquisa feita pelo IPAM, 55 milhões de hectares de áreas nativas serão destruídos e que 20 bilhões de toneladas de CO2 serão emitidos.

Diante dessa realidade, exigimos dos três poderes da República que:

1. O Ministério da Justiça cumpra com o seu papel de demarcar as Terras Indígenas, dando prioridade às Terras Indígenas judicializadas e em situação de risco, como por exemplo no caso dos territórios dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

2. [Façam] A desintrusão imediata de todas as Terras Indígenas já demarcadas e homologadas, não se restringindo apenas aquelas que se encontram na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, como por exemplo TI Urubu Branco, TI Rio dos Índios e tantas outras que se encontram na mesma situação. Demandamos que os órgãos competentes cumpram a legislação garantindo sua proteção, monitoramento e fiscalização.

3. [Façam a] Proteção permanente de nossos direitos que estão previstos em lei e tratados internacionais, de todas as Terras Indígenas independente do governo que esteja à frente do Estado.

4. Respeitem e cumpram o direito a Consulta Prévia, Livre e Informada, conforme os Protocolos Autônomos dos Povos Indígenas sobre todos os empreendimentos que afetam seus territórios. Queremos ser consultados em todas as suas fases, desde o planejamento, para evitar assédios, cooptação e geração de conflitos de interesses entre as comunidades indígenas e [evitar] que, como [ocorreu em] Belo Monte, as condicionantes [não sejam] cumpridas com os povos impactados.

5. Que a mineração no entorno e dentro dos nossos territórios respeitem todos os direitos dos Povos Indígenas e não seja licenciada antes da construção e aprovação do Plano Base Ambiental (PBA) do Componente Indígena. Exigimos que os empreendimentos que atropelaram os processos legais de licenciamento, sejam embargados e, nos casos de PBA autorizados, as organizações indígenas devem ser as executoras desses recursos. Exigimos que sejam destruídas todas as formas de garimpo, expulsos os invasores e responsabilizados seus financiadores. Que seja garantido aos Povos Indígenas impactados pela exposição ao mercúrio a testagem em massa, o acesso ao tratamento da saúde e a segurança alimentar.

6. Que todo e qualquer arrendamento ou parceria agrícola dentro de nossas Terras Indígenas seja condenado por ser inconstitucional e foge do modelo de sustentabilidade cultural, fortalecendo o agronegócio que causa destruição dos nossos territórios, conflitos internos, expulsões e mortes do nosso povo. Exigimos que o arrendatário, o maior responsável pela destruição de nossos territórios, seja punido de acordo com todos os crimes praticados.

7. Sejam assegurados aos povos indígenas o conhecimento e os entendimentos sobre o que é o Mercado de Carbono no Estado Brasileiro e os impactos aos nossos territórios. As atuais negociações existentes no mercado de carbono devem ser anuladas, pois não respeitam a especificidade e os direitos dos povos indígenas e a biodiversidade de seus territórios. É necessário à garantia da participação dos povos indígenas dos seis biomas brasileiros na construção de uma legislação justa, obedecendo nossos direitos originários, constitucionais e internacionais.

8. Fortaleçam e estruturem institucionalmente, garantindo a ampliação do orçamento para o Ministério do Povos Indígenas (MPI); a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); o Instituto de Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Ibama); o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); a Defensoria Pública da União (DPU); o Ministério Público Federal (MPF); e a Secretaria de Especial de Saúde Indígena (Sesai), e que seja criada a Secretaria Especial de Educação Escolar Indígena no Ministério da Educação (MEC).

9. Sejam realizados em caráter de urgência concursos para servidores da Funai e da Sesai, para uma reestruturação da equipe que realmente atue a favor dos direitos dos Povos Indígenas, garantindo vagas para indígenas.

10. Sejam revogadas as portarias que afetam os nossos direitos e que não tiveram a consulta devida, como por exemplo a 60/2015.

11. Sejam destinadas para os Povos Indígenas as florestas públicas não destinadas, de acordo com uso e costumes de cada povo.

Concordamos em parte com o ministro Alexandre de Moraes, que reconhece os direitos indígenas constitucionais sobre os nossos territórios, mas discordamos do argumento de indenização pela terra nua. Não consideramos justo compensar pessoas e empresas que são responsáveis pelo assassinato de nossas lideranças e massacre do nosso povo que historicamente lutam pelo nosso território. Nós é que deveríamos ser indenizados pelos anos de violências vividos e por receber uma terra devastada.

Vale destacar que os povos indígenas não se opõem ao desenvolvimento da nação brasileira, pelo contrário, estamos dispostos a contribuir com nossas perspectivas, ciência e saberes para o desenvolvimento do Brasil, desde que sejamos convidados, consultados, ouvidos e respeitados, especialmente quando o Estado pretender implementar obras que afetem nossas terras e nosso modo de vida tradicional.

Exigimos que o Estado brasileiro nos responda até dia 9 de agosto de 2023, como marco do dia internacional dos povos indígenas. Nossos ancestrais há muitos anos vêm avisando que a saúde da terra não é responsabilidade só nossa, ela é responsabilidade de todos, se o céu cair, a terra incendiar e as águas subirem, todos nós iremos morrer. Não há dinheiro que compre outro planeta.

Os espíritos da terra estão ficando furiosos. Quantos manifestos, cartas e protestos serão necessários para que vocês tomem uma atitude humana para proteger o planeta e as futuras gerações? Não estamos apenas falando da vida de nossos povos; estamos também falando de suas vidas e de seus herdeiros. Vocês não se importam?

O Cacique Raoni já atendeu o seu chamado. E vocês, quando irão atender o nosso?

RAONI, A PRESIDENTA DA FUNAI, JOENIA WAPICHANA, E LIDERANÇAS DE SEIS BIOMAS SE REÚNEM NA ALDEIA PIARAÇU, NO MATO GROSSO, NA AMAZÔNIA BRASILEIRA, E EXIGEM MEDIDAS DOS TRÊS PODERES. FOTO: PABLO ALBARENGA/SUMAÚMA

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