Há sempre um ‘inédito viável’ à nossa disposição, dizia Paulo Freire, que só depende da nossa ousadia em não se submeter a um sistema que nos oprime
Dois fatos recentes, de extraordinária importância para o povo indígena e dos moradores de rua, protagonizados pelo Supremo Tribunal Federal, merecem ser lembrados no presente e no futuro dos direitos humanos fundamentais desses dois povos, como verdadeiros marcos históricos desses direitos.
O primeiro, o da entrega de exemplares da Constituição Federal, impressa em linguagem indígena Nheengatu, a um grupo ode representantes desse povo, feito pela Ministra Rosa Weber, presidente do STF, no dia 19 deste julho, conforme notícia destacada no próprio site desse Tribunal. O segundo, do julgamento liminar de uma ação judicial (ADPF nº 976), relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes na qual, além de se proibir remoções forçadas de moradoras/es em situação de rua, fixa-se um prazo de 120 (cento e vinte) dias para “os Poderes Executivos Municipais e Distrital”, realizarem um “diagnóstico pormenorizado da situação nos respectivos territórios, com a indicação do quantitativo de pessoas em situação de rua por área geográfica, quantidade e local das vagas de abrigo e de capacidade de fornecimento de alimentação.”.
No primeiro caso, a ministra Rosa Weber, na presença da Ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, denunciou: “Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero histórico.” Sem dúvida uma grande notícia, mas não se pode deixar de notar como foi preciso mais de 5 séculos para, só agora, o respeito à língua do povo indígena empodere o reconhecimento da sua cidadania, colocando na mão dele a Constituição Federal no seu próprio idioma comum. É o que se espera servir também para outra mudança maior, como a de enfrentar-se o escandaloso número das “mortes matadas” que esse povo sofreu e ainda hoje sofre em várias regiões do país, em grande parte sob completa indiferença dos poderes privados e públicos responsáveis por essa tragédia.
Porque a realidade atual sob a qual vivem as/os índias/os ainda é dramática. A Agência Brasil, por exemplo, publicou na última quarta-feira (26 deste julho) os dados do CIMI, sobre assassinatos de indígenas no país entre 2019 e 2022. Chegaram a 795 e a mortalidade infantil “abrange 835 casos”. “Conflitos relativos a direitos territoriais, invasões de terra, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio”, {…} “totalizaram 467, um aumento de 10,4% na comparação com o ano de 2021.” Isso comprova ainda existir no país uma profunda injustiça social e racista de tipo colonialista e branca perdurando por aqui.
No caso da decisão liminar do Ministro Alexandre de Moraes acontece a mesma coisa. Embora consista em uma ótima notícia, o mal que se fazia e ainda se faz ao povo da selva natural, pelas características semelhantes ao do povo pobre da selva de pedra, vai dificultar bastante os efeitos que dela são esperados. No meio da miséria, da sujeira, do abandono, milhares de brasileiras/os famintas/os e sem teto, dormem sob viadutos e pontes, ocupam áreas de risco, cortiços, criam favelas e, quando sobrevivem, ainda são expulsos dos seus precários abrigos, até por policiais militares sem mandado judicial, como já aconteceu em Porto Alegre, em 2018. com a violenta remoção das/os moradoras/es de rua que se abrigavam sob o viaduto do centro histórico da cidade, situado na Avenida Borges de Medeiros.
Contra a repetição dessa barbárie inconstitucional, o despacho do Ministro Alexandre tem grande chance de ser obedecido, mas vai ter de enfrentar uma verdadeira tradição contrária. Como acontece frequentemente com famílias de sem teto e de sem-terra, entende-se desconhecer abrigos do tipo referido na sua decisão, inclusive judicialmente em muitos casos, considerados “irregulares” como sendo “domicílio”, no sentido legal (permita-se a trágica comparação), como se moradoras/es de rua não estivessem aí por notória incapacidade de poder escolher outro lugar. Assim, pode a Força Pública agir, com a violência que julgar necessária, para desapossar quem ela encontrar nesses lugares. Gente pobre ou miserável que aí se encontre, a interpretação e a aplicação das leis contra ela, não cogita a possibilidade de sua defesa basear-se em “turbação” da sua posse, “esbulho” ou “ameaça”, hipóteses mais comuns previstas em lei para tanto.
Chega a ser uma grande vitória para esse povo a possibilidade aberta por juízes/as. que julgam ações possessórias ou reivindicatórias de imóveis, a negociação conciliatória que lhe garanta, pelo menos, conhecer o destino para onde poderão ou serão obrigados a ir. As “tutelas de urgência” previstas pelas leis de processo judicial, como as deferidas pelo Ministro Alexandre de Moraes, comprovam, mais uma vez, o quanto de falsidade e hipocrisia existe no fato de nossas leis afirmarem que todas/os nós “somos iguais”.
Ao lado dessas duas e boas notícias do Supremo Tribunal Federal, portanto, se elas forem comparadas com os “direitos das mercadorias” (!?), a sua chance de execução e êxito talvez sejam bem frágeis. Esses já gozam há muito tempo de uma livre e festejada circulação de dinheiro, não raro ao abrigo da isenção fiscal, como condição para instalarem-se nos municípios que escolhem. Aí a interpretação e aplicação das leis não levam o criminoso tempo que as tutelas de urgência próprias dos direitos humanos, especialmente os sociais, sofrem para serem reconhecidos e, mesmo depois disso, garantidos.
A execução do despacho que o Ministro do STF prolatou encontrará certamente muita dificuldade de ser efetivamente respeitada em toda a sua extensão espacial e temporal. Não só pelas costumeiras desculpas das administrações públicas baseadas nos “limites do possível” orçamentário, que geralmente não existem quando estão em causa interesses do poder econômico de grandes empresas, mas também pelo que tais interesses já estiverem impondo modificações em Planos Diretores das cidades para garantir a remoção de gente pobre (gentrificação para usar o termo técnico desse trágico fenômeno). Se for para garantir espaço ao “direito das mercadorias” cobrar o seu preço, mesmo que esse custe até vidas alheias, não faltará argumento legal para sustentar “as exigências do progresso e do desenvolvimento” para que a transformação desejada se faça.
Por isso, vale muito todo o empenho de mobilização da militância popular que defende direitos humanos, divulgar ao máximo esses dois acontecimentos patrocinados pelo STF, especialmente junto ao povo indígena e ao povo morador de rua, suas lideranças e assessorias. Todo poder argumentativo de organização das possibilidades, que aqueles fatos abrem, pode continuar crescendo à luz do direito democrático à cidade, que encontra apoio sólido no que recomendou sempre Peter Haberle, de que o próprio povo se constitui em “comunidade aberta de intérpretes da Constituição”. E a nossa prevê expressamente esse direito à cidade, uma barreira forte oposta aos “direitos das mercadorias”.
Essa é uma tarefa complicada ou impossível para os povos que o STF acaba de reconhecer como cidadãos, “sujeitos de direito” ? Não é. Só não será se toda essa militância, livre de qualquer preconceito ideológico, perca a fé no que ensinava nosso querido e amado mestre Paulo Freire, quando ele desafiava nossa criatividade em pensar e agir: Há sempre um “inédito viável” à nossa disposição, dizia ele, que só depende da nossa ousadia em não se submeter a todo um sistema socioeconômico que nos oprime e aparenta ser “normal”, “natural”, inquestionável e invencível. Se até a besta do Apocalipse (Ap. 12, 16), dotada de um poder capaz de “varrer as estrelas”, sucumbiu à força da terra que salva o parto de uma simples e fraca mulher, aí se encontra um símbolo místico, uma poderosa inspiração para fazer-se o que parece impossível.
(*) Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e membro fundador da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e RENAP
–
Presidente do STF, Rosa Weber, ao lado da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF