Justiça de transição: para MPF, direito a indenização por danos decorrentes de atos da ditadura é imprescritível

Em manifestação apresentada ao STJ, subprocurador-geral da República Antonio Carlos Bigonha defende direito de parentes de vítima em ação contra Carlos Alberto Brilhante Ustra

O Ministério Público Federal (MPF) defendeu, em parecer enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o entendimento de que são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar, conforme súmula do próprio STJ (Súmula 674). A manifestação do MPF foi em recurso especial contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que reconheceu a prescrição e extinguiu a ação de indenização movida contra Carlos Alberto Brilhante Ustra por parentes de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército (DOI-Codi), em São Paulo (SP).

O subprocurador-geral da República Antonio Carlos Bigonha ressalta no parecer que a súmula do STJ está em consonância com as normas do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Isso significa que, uma vez reconhecida a violação a direito protegido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), devem ser adotadas medidas para a reparação das consequências do ato lesivo praticado pelo Estado, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.

No acórdão que extinguiu a ação de indenização, o TJSP entendeu que pedidos de reparação dos danos decorrentes do estado de exceção se sujeitam às normas do Código Civil vigente à época dos fatos. Também considerou como marco para o início do prazo prescricional 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Para o MPF, no entanto, a decisão contraria jurisprudência do STJ, e o entendimento deve ser afastado, uma vez que, ainda que a ordem jurídica admita a prescrição, o objetivo fundamental de promover a Justiça impede a sua aplicação nas hipóteses de lesão aos direitos humanos, caso do recurso a ser analisado pelo STJ.

Para Bigonha, dada a importância dos valores abrangidos pelos direitos fundamentais, violações que afetam a dignidade da vítima e repercutem indefinidamente sobre a sua subjetividade são contínuas, permanentes e renováveis. Por perdurarem no tempo, perpetuariam também a responsabilidade de quem as deflagrou, até serem indenizadas. Para ele, admitir a incidência da prescrição em casos como esse “seria eximir o torturador de sua responsabilidade apenas pelo decurso do tempo em relação a uma lesão que nunca se apagará da memória, quer privada quer coletiva”.

Além disso,o subprocurador-geral ressalta no parecer que, conforme a norma geral que trata de prescrição, não é possível qualificar como desidiosa a inércia da vítima ou de seus familiares em acionar os órgãos judiciários após a prática dos atos atentatórios aos direitos humanos. “Tendo o Estado brasileiro optado pelo regime da anistia, contexto no qual os torturadores não foram punidos por seus atos, é justo que suas vítimas tragam sempre consigo o temor à represália, temor este que é contínuo e impede a fruição de qualquer prazo prescricional: a responsabilidade do devedor permanece hígida pois se renova continuamente, dia a dia”, escreve o subprocurador-geral da República.

Entenda o caso

Luiz Eduardo da Rocha Merlino era jornalista e militante político. Ele integrava o Partido Operário Comunista e foi morto em 1971, após intensas sessões de tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo.

Merlino foi preso em Santos em 15 de julho de 1971 e levado à sede do DOI-Codi. Lá, o então major Ustra, que comandava a unidade, e seus subordinados à época (Gravina e Calandra) submeteram o jornalista a práticas de tortura durante 24 horas, ininterruptamente. Eles queriam extrair da vítima informações sobre outros integrantes do partido, principalmente a companheira do militante, Ângela Mendes de Almeida. Após as agressões, Merlino tinha ferimentos por todo o corpo e não conseguia sequer se levantar. Apesar do quadro grave, ele não recebeu atendimento médico e só foi encaminhado ao Hospital Militar do Exército quando já estava inconsciente.

Consultado sobre a necessidade de amputação de uma das pernas do paciente, Ustra determinou que os servidores do hospital deixassem-no morrer para evitar que sinais da tortura fossem evidenciados. Merlino faleceu em 19 de julho, em decorrência das graves lesões que as sessões de tortura provocaram. O chefe do DOI-Codi ordenou ainda a limpeza da cela onde o militante foi mantido e criou uma versão falaciosa para ocultar as causas da morte.

Íntegra da manifestação no Resp 2054390/SP

Secretaria de Comunicação Social
Procuradoria-Geral da República

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