Corações de ferro. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Heitor sempre foi Totô. Apelido de infância que passou da casa à rua e dela à escola. Durou até virar o soldado Heitor. O semblante que harmonizava com a farda tornava esquisito para os amigos continuar chamando Heitor de Totô. Metido numas bermudas, quem sabe? Mas os amigos há muito não o viam mais de bermudas. Totô mudou. Sumiu sem mudar-se de rua. Transformou-se em Heitor, soldado Heitor.

Sempre foi aventureiro. Criança de subir e cair das árvores mais altas, de se arrebentar nas manobras mais ousadas de bicicleta e também de se levantar logo em seguida para tentar novamente a façanha e, novamente, estatelar-se. Corajoso, carinhoso e aventureiro, não foi surpresa para ninguém quando decidiu tornar-se policial. Mas surpreendeu até a seus pais quando, tornado policial, transformou-se. “Totô tem um coração de ouro!”, repetia com insistência sua mãe, Dona Helena. Agora, diz que é um bom rapaz.

Na formação, conheceu o sargento Aquiles. Especialista na arte de endurecer corações. “Na rua, se você vacila, morre”, dizia o tempo todo para justificar a brutalidade das lições. Num treino, Heitor cochilou. Acordou com um tapa e dois chutes do sargento Aquiles. “Animal que dorme é abatido, entendeu seu merda!”. “Sim senhor!”, disse maquinalmente enquanto se recompunha.

Os amigos de lá ele chama de companheiros. Irmãos de farda. De uma amizade que não é como a dos amigos da rua, surgida de brincadeiras e jogos, mas parida entre os tapas e suplícios do sargento Aquiles. Amizade forjada, como se tratasse de metalurgia e não de afetos. Forjada em corações de ferro, endurecidos para sobreviverem à dureza das ruas. Tornados indiferentes à brutalidade para serem brutais para com vagabundos.

Um destes companheiros era o soldado Páris. Um irmão, ele dizia. Dele e dos demais. Sujeito curioso cujo coração de ouro não se transformou em coração de ferro na forja do sargento Aquiles. Talvez tenha sido justamente seu coração de ouro mole que o fez vacilar e ser atingido fatalmente por um tiro. Morreu a caminho do hospital, entre os gritos de raiva e desespero de seus companheiros cujos corações de ferro foram endurecidos para tudo, exceto para a morte de um dos seus.

A notícia da morte de Páris espalhou-se rápido pelo WhatsApp da tropa. Mensagens cheias de tristeza e raiva inflamadas. Narrativas e especulações que terminavam sempre com a mesma conclusão. “Esse vagabundo tem que ir pra vala!”.

Os oficiais não perderam tempo em montar a operação. Heitor foi com seu coração de ferro vermelho. Quente como ferro de marcar a pele de escravos. Arremessou o cobre de seu fuzil com a concentração e indiferença de quem só vê o alvo preto pela frente. Sabe que matou, pelo menos, um. Que viu bem enquanto atirava. Em outros, não atirou sozinho. Ele e seus companheiros deixaram para trás 16 mortos e outros tantos com seus corações de ferro incandescentes de ódio, a espalhar mensagens de ódio aos policiais. Alimento de uma guerra sem fim.

Heitor sentiu-se estranho ao fim do dia. Aliviado e feliz pela missão cumprida e injustiçado por chamarem seu trabalho de chacina. Fez apenas o que seu coração fora forjado para fazer. O que os mesmos que em público vaiam, aos sussurros aplaudem. Mas isto o incomoda pouco. Acostumou-se com a hipocrisia e sabe que o espetáculo da notícia não durará mais que dois dias.

Mais do que isso, durará em seu peito um sentimento desgostoso. Ranger esquisito no seu coração de ferro. Endurecido para a morte, mas ainda regado pelo sangue que correu um dia pelo coração de ouro de Totô.

Ilustração: Mihai Cauli

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