No TaquiPraTi
Quando Braz de Oliveira França nasceu no Curicuriari, no baixo Rio Negro (AM), em 18 de outubro de 1946, o povo Baré, ao qual pertencia, estava oficialmente “extinto”. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) assegurava que no Brasil não havia um único baré. Assim, com o território usurpado, a língua decepada e a identidade eclipsada, Braz Baré já nasceu com seu “eu” e seu “nós” mortos. Precisava lutar para provar que estava vivo e para isso o seu avô, que o batizou, lhe ensinou a “guerrear sem armas de fogo”.
Guerreou. Conheceu as armas dos “brancos” no Internato Salesiano em São Gabriel da Cachoeira (SGC), onde estudou e depois no Colégio D. Bosco, em Manaus (1958-65). De lá, ganhou o mundo: Acre, Rondônia, Pará, Mato Grosso e trabalhou aqui e ali, no Paraná na construção da barragem de Itaipu como operador de trator. Retornou para fundar a Associação das Comunidades Indígenas do Baixo Rio Negro (ACIBRN) e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).
Sua vida foi dedicada ao movimento indígena e à luta pela demarcação das terras. Ele agonizava na UTI do hospital no momento em que a ministra Rosa Weber, presidente do STF, lançava a Constituição vigente traduzida ao Nheengatu, a sua língua de identidade, que substituiu o idioma baré. Quando faleceu na quinta-feira (27/07) em Manaus, aos 76 anos, o povo Baré antes camuflado somava 11.990 indivíduos, segundo o Censo do IBGE de 2010. Braz ressuscitou. Morreu Baré. Morreu vivo.
No velório e sepultamento, foi abençoado por dom Edson Damian, bispo de SGC, por sua mãe Isabel Baré, hoje com 105 anos e por Poronominaré, o mensageiro de Tupana, que ensinou os Baré a fazer canoa, remo, roça, armadilha para caça e pesca, machado de pedra, arco e flecha, além dos rituais, incluindo a festa do dabakuri.
Tiro pela culatra
Os Baré, antigos senhores do Rio Negro, resistiram desde o séc. XVII às tropas lusas que invadiam as terras, queimavam malocas e escravizavam indígenas. Sobreviveram aos missionários que retiravam as crianças do colo das mães para retê-las nos internatos, onde proibiam suas línguas, impunham uma religião estranha e satanizavam os heróis civilizadores, entre eles Jurupari e o controvertido Poronominaré – o Macunaíma Baré, “herói de aventuras tragicômicas e romântico-obscenas” – diz Nunes Pereira.
Os jesuítas levaram para o rio Negro a catequese e a a língua geral do tronco Tupi, que conviveu por um tempo em situação de bilinguismo com a língua Baré, da família Aruak. Ambas foram proibidas em abril de 1755 por Pombal, que tornou obrigatório o uso da língua portuguesa e, para que isso se efetivasse, premiou aqueles imigrantes lusos que casassem com índias. Vinte anos depois, o Ouvidor Sampaio no relato de suas viagens (1774-1775) registrou que o tiro saiu pela culatra:
– “Os casamentos têm sido pouco afortunados, porque em logar das Índias tomarem os costumes dos Brancos, estes têm adotado os daquellas”.
A resistência durou três séculos, mas no final os Baré foram apagados com a perda do território e da língua original. Curt Nimuendaju, que coletou um pequeno léxico baré, especialmente na toponímia da região por onde viajou, constatou, em 1927, que ninguém mais falava essa língua no Brasil, havia apenas alguns semifalantes em San Carlos, na Venezuela.
Os Baré se tornaram, inicialmente, monolingues em Nheengatu, para onde transportaram e arquivaram suas memórias, tradições, saberes, práticas culturais, danças, cantos, deidades, narrativas míticas e as histórias de Napirikuri sobre as origens da maniva, pupunha, fogo, água, noite compartilhadas com outros povos Aruak da região. No processo de deslocamento linguístico, com a aquisição do português e sua conversão ao catolicismo, se tornaram bilingues outra vez, mas agora em nheengatu x português. Foi nesse momento que Braz nasceu.
Quase “brancos”
– Os parentes tinham vergonha de se apresentarem como índio, e não podiam dizer que eram brancos. Eu mesmo tinha esse sentimento – confessou Braz.
Os Baré ficaram “no meio do caminho”, num estado transitório e incompleto entre o “indígena” e o “civilizado”. Eram vistos como “quase brancos”. Despojados da língua e da identidade, eram discriminados por um lado e pelo outro. Para a FUNAI, que substituiu o SPI, continuaram “extintos” até os anos 1980, quando ressurgiram alavancados pelo movimento indígena liderado pela ACIBRN e FOIRN. Nesse processo, o papel de Braz foi fundamental.
– Tive uma visão: a FOIRN era a arma que meu avô profetizou para mim – disse Braz que, para organizar a luta pela demarcação do território indígena, combateu mineradoras, garimpo ilegal, poluição dos rios, desmatamento e exploração da força de trabalho indígena. Sempre sem armas de fogo.
Efetivamente, Braz foi capaz de enfrentar assuntos delicados evitados por muitos, “sem gerar conflitos, o que é uma arte”. Ele dominava a legislação sobre movimentos sociais, a mitologia Baré e os saberes repassados oralmente por seus ancestrais e por seu território. “Conhecia cada pedra do alto rio Negro e, principalmente, era um mestre em fazer – disse o antropólogo Renato Martelli, assessor do Instituto Socioambiental (ISA).
Numa longa conversa em SGC (04/11/2003), com a participação da educadora norueguesa Eva Johannessen e do linguista colombiano Francisco Ortiz, Braz nos contou sua história de vida, sua militância, as parcerias com o ISA, os projetos de Piscicultura e Arte Baniwa, a escola indígena, o Nheengatu e a necessidade de alternância no poder. Discorreu sobre a ação de militares e empresários na criação da Foirn, em 1987, e a luta por uma organização autônoma, sem controle de agentes externos.
Nojo do beijuzinho
Eleito e reeleito presidente da Foirn até 1996, conseguiu demarcar terras, fez convênios, construiu a sede da entidade, montou um sistema de transporte entre comunidades tão distanciadas geograficamente, além de redes de comunicação. “Na época existiam 16 organizações, por isso instalamos 16 rádios e 16 barcos. Quando sai da direção, já havia 30. Hoje [2003] estamos beirando 50”. Dessa forma, é possível promover ações atuais no campo dos direitos e do desenvolvimento sustentável de 750 comunidades.
Braz saiu da diretoria (mas não do movimento) “porque não queria me viciar. Quem fica muito tempo no poder, se deslumbra e prejudica o movimento. O poder corrompe, por menor que seja, você esquece a comunidade, fica com nojo do beijuzinho, da quinhapira, se acostuma com consumo fora do nosso padrão, começa a viver como branco. Devia ter um alerta nos cursos de capacitação de liderança para advertir sobre esses riscos. Saí da direção e passei um ano só trabalhando na roça”.
Depois disso, ele alternou a roça com outras tarefas: foi administrador-adjunto da Funai (1999 e 2002) e logo coordenador-geral do DISEI – Distrito de Saúde Indígena. Manteve distanciamento crítico declarando sabiamente:
– “Não quero ser Governo para não ser governado, quero governar fora do Governo”.
Considerando que crianças Baré, sobretudo nas cidades, estavam se tornando monolingues em português, perguntei a ele, pai de duas filhas, uma delas adotiva:
– Braz, elas falam Nheengatu?
– Claro que falam, senão eu não seria o pai delas. Em casa, a gente só fala Nheengatu.
Informou ainda que ele escreve em Nheengatu, mas usa um alfabeto próprio para uso pessoal, “que só eu mesmo entendo”.
Escola Baré
Sobre a política de línguas nas escolas indígenas, defendeu a autonomia da instituição para desvinculá-la do Estado, com a manutenção de um currículo intercultural e bilíngue, que permita um diálogo entre os saberes milenares indígenas e o conhecimento científico contemporâneo. Considerou que era muito cedo para avaliar a co-oficialização do Nheengatu, ocorrida um ano antes, em 2002: “Se a gente planta a semente hoje, não pode colher frutos imediatamente”.
Três anos depois da conversa com Braz, as escolas começaram a mudar. A Escola São Pedro, de Tabocal, passou a ser em 2006 Escola Indígena Baré Napirikuri, com todo o respeito ao porteiro do céu. E não foi apenas uma troca de nome, mas do próprio projeto político-pedagógico, que enfatiza a identidade Baré. Acho que o Pedrão entendeu e não tomou como uma desfeita.
– Hoje – ele disse – quem estava escondido, apareceu. Até mesmo mestiços, filhos apenas de pai ou apenas de mãe indígena, estão se assumindo como Baré e buscando a tradição, incluindo o ritual sagrado do Kariamã – um rito de passagem que purifica o espírito e dá orientações de como viver bem na floresta e no qual circulam conhecimentos culturais e mitológicos.
Agora, Braz está lá, na sua floresta, no meio das árvores, pássaros, igarapés e cachoeiras da Serra do Ba´sebó conhecida como Bela Adormecida – patrimônio da biodiversidade, que ele soube tanto defender. Deve estar entoando os cantos Ben Un e Marié, gravados em janeiro de 1963 por Ettore Biocca, na festa do Dabakuri – o único registro disponível de canções em língua baré.
Aquele menino que se banhava no rio Curicuriari e contribuiu para recolocar o povo Baré no mapa do Brasil, permanece vivo nos nossos corações. Seu irmão, Abrahão França, ex-presidente da Foirn, reconhece seus ensinamentos. Na cerimônia de despedida, Marivelton Baré, presidente da FOIRN e seu herdeiro político, lembrou a trajetória de Braz com a exibição de um vídeo de corpo presente. Depois de tanta luta, que descanse em paz!
Referências bibliográficas
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- Marina Herrero e Ulysses Fernandes (orgs): Baré: povo do rio. São Paulo. Edições SESC/SP. 2015. 331 pgs. São vários autores, com destaque para Paulo Maia Figueiredo, Eduardo Góes Monteiro, Guillermo David, Beto Ricardo e Pisco del Gaiso (fotos), além de Braz França, Marivelton Baré, Eduardo Viveiros de Castro e este locutor que vos fala, os quatro últimos participantes de uma roda de conversa no lançamento do livro em 2015 no SESC Pompeia, depois da exibição do documentário dirigido por Tatiana Toffoli.
- Eva Johannessen, Francisco Ortiz e José R. Bessa: Entrevistando Braz França Baré. 04/11/2003. São Gabriel da Cachoeira. Caderno de anotações.
- Resenha Baré, o povo do rio. Diário do Amazonas. 05 de Abril de 2015 https://www.taquiprati.com.br/cronica/1136-bare-povo-do-rio
- Tatiana Toffoli: Documentário Baré, o povo do Rio. 1h:02min33s – https://www.youtube.com/watch?v=nd69jnE35uA
- Homenagem do ISA a Braz França com depoimentos de Abraão França, Marivelton Baré, Aloisio Cabalzar, Marcio Meira, José Bessa, Carla Dias e Renato Martelli. https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/adeus-braz-franca-bare-lideranca-da-luta-por-direitos-indigenas-no-rio
- Fotos de Cláudio Tavares/ISA, Pisco del Gaiso e Marivelton Baré.
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